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PESQUISA NA QUARENTENA

“Houve momentos em que pensei em desistir da pesquisa”

A bióloga Dayse Ferreira teve percalços no monitoramento da fauna em área da Amazônia e arrecadou alimentos para moradores locais

Durante a pandemia, o trabalho de campo para monitoramento de fauna deixou de ser possível

Arquivo pessoal

Depois que instalei 38 câmeras automáticas acionadas por movimento para gravar os animais que vivem na Reserva de Desenvolvimento Sustentável (RDS) do Rio Negro, na Amazônia, a 40 quilômetros (km) de Manaus, o local fechou devido à pandemia. Com isso, eu não podia mais voltar à floresta para retirar as máquinas, o que gerava uma angústia dupla: a possibilidade de perder aparelhos caros e os dados que estavam gravados neles, e não conseguir remover os equipamentos no tempo certo: adotamos uma metodologia que estabelece uma amostragem de 60 dias, e eu tinha prazo para a entrega da tese.

Leva dez dias para instalar as câmeras, que devem ficar a uma distância de 2 km entre si. No meio da mata fechada, com terreno acidentado, carregando equipamento pesado e embaixo de muita chuva, é um trabalho exaustivo. Se ocorresse algum problema com as câmeras, todo esse esforço seria perdido.

Logo surgiram novos riscos. Invasores atrás de caça e extração ilegal de madeira poderiam vandalizar as câmeras, prejudicar o ambiente e contaminar com o coronavírus as pessoas que vivem ali, que são atores locais na conservação e colaboradores do projeto. Tudo o que podíamos fazer era denunciar aos órgãos oficiais.

Nesse período, lideranças ribeirinhas morreram de Covid-19, o que implica uma perda enorme de conhecimento e capacidade de mobilização para essas populações. Uma delas foi Raimunda das Chagas, conhecida como Dona Saracá, uma das fundadoras da comunidade Saracá. Era uma mulher alegre, forte e muito ativa aos 80 anos. Foi uma das primeiras professoras da comunidade. Dona Saracá foi conselheira e atuou na elaboração do plano de gestão da unidade de conservação. Ajudou a formar novas lideranças que lutam pela proteção da RDS do Rio Negro e incentivava as pessoas a participar das atividades de conservação realizadas em parceria com órgãos oficiais.

Arquivo pessoal Anta e cachorro-vinagre: alguns dos animais detectados pelas câmeras instaladas na florestaArquivo pessoal

O equipamento só foi retirado em agosto de 2020, quatro meses depois do previsto, com a ajuda de guias locais, já que os pesquisadores ainda não podiam entrar na área. A reserva está fechada por tempo indeterminado para pesquisa e não foi possível fazer a quarta e última viagem a campo, entre agosto e setembro. A metodologia adotada só permitia coletas até agosto, então perdemos essa etapa.

Quando finalmente recebi as máquinas, tomei um susto: só 27 delas funcionaram direito. Uma foi roubada e 10 não funcionaram por serem modelos antigos e com muito uso.

No entanto, ao analisar o material, tive boas notícias: um registro novo para a área, com vídeos de uma família de quatro cachorros-vinagre, animal muito raro e em risco de extinção, além de onças-pintadas, antas, tamanduás-bandeira, queixadas, tatus-canastra, veados-vermelhos e muitos outros. Fiz uma compilação de vídeos para compartilhar com os moradores. Eles ficaram admirados porque raramente conseguem ver algumas espécies, e conhecê-las ajuda a valorizar a fauna e sua preservação.

Sem poder ir a campo, cursei disciplinas on-line e me concentrei em triar e analisar o material coletado. Meu sobrinho Vicente, de 4 anos, me fez companhia nesse processo de ver os vídeos de campo. Isso tornou menos pesado o período pandêmico. Minha irmã e eu nos revezamos para cuidar dele e de nossa mãe, que precisa de atenção médica. Muitas vezes só conseguia trabalhar entre 22h e 3h.

Com meu cunhado Marconi Silva, que é ilustrador, e minha irmã Olívia Ferreira, que trabalha com design gráfico, desenvolvi uma coleção de camisetas estampadas com esses bichos. A ideia era promover o engajamento das pessoas para conservação, levantar fundos para custear meu último trabalho de campo entrevistando moradores e garantir nossa renda em Manaus. Mas nosso planejamento foi por água abaixo, porque a empresa fica em São Paulo e ficou muito tempo fechada. Ainda não recebemos todas as camisetas.

Arquivo pessoal Com a irmã e o cunhado, a pesquisadora desenvolveu camisetas com espécies da região para reforçar o orçamentoArquivo pessoal

Parte do meu projeto consiste em entrevistar os moradores da reserva, os únicos que podem caçar para subsistência. Minha hipótese inicial era de que as famílias com mais assistência social do governo caçavam com menor frequência. Quando a pandemia começou, eu e colegas da equipe nos mobilizamos principalmente em campanhas para arrecadar dinheiro e comida para três famílias que colaboravam muito no trabalho de campo e conseguimos fornecer cestas básicas por três meses. Em dezembro de 2020 recebi autorização para entrar na reserva e consegui entrevistar alguns moradores e obter informações sobre caça e o impacto local da pandemia. Consegui o mínimo de dados de que precisava para fechar a análise.

Minha bolsa terminou há dois meses. Quando pagar as contas parecia impossível, fui contratada por quatro meses pela Wildlife Conservation Society Brasil, uma organização não governamental (ONG) com núcleo na Universidade Federal do Amazonas (Ufam), como consultora para estudar a composição de fauna na RDS do Rio Negro. A ideia é usar inteligência artificial para aprimorar a identificação de espécies, o levantamento de dados e a tomada de decisão sobre gestão e conservação da reserva.

Fazer pesquisa não é fácil, faltam recursos e com a pandemia tudo ficou mais difícil. Teve momentos em que pensei em desistir, mas sou apaixonada pelo estudo da relação entre mamíferos silvestres e pessoas, tentando entender as necessidades das populações locais e sua interação com a fauna. Adoro o trabalho de campo. Já investi tanto tempo e esforço, que sinto que preciso seguir em frente.

Apesar das dificuldades, vou terminar o doutorado em abril de 2022, ainda que com dados incompletos. Estudando o contato entre a fauna e as populações locais, sempre me preocupei com a transmissão de novos vírus para seres humanos. No futuro, quero incluir na minha pesquisa esse tema que se revelou tão fundamental com a pandemia do coronavírus.

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