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Genética

Identidade sem ambigüidade

Laboratório da USP descobre as causas genéticas e as formas de tratamento de alterações hormonais raras

Um prêmio concedido nos Estados Unidos pela primeira vez a um pesquisador brasileiro, a endocrinologista Ana Claudia Latronico, de 39 anos, chamou a atenção para a produtividade científica de uma equipe da Universidade de São Paulo (USP) que lida com um material riquíssimo. Todos os meses, o grupo da Unidade de Endocrinologia do Desenvolvimento do Hospital das Clínicas da USP atende 400 pessoas vindas de todo o país com distúrbios hormonais que impedem o crescimento normal de crianças, interferem na puberdade de adolescentes ou geram anomalias no desenvolvimento dos órgãos sexuais, como o hermafroditismo, em que o indivíduo nasce com ovários e testículos, além de genitais externos mal definidos.

Tamanha diversidade de pacientes – e a oportunidade de tratá-los e acompanhá-los – transformou a unidade em um centro de pesquisa de referência internacional. É ali que, sob a orientação de Berenice Bilharinho de Mendonça, Ana Claudia participa há 12 anos de uma série de estudos pioneiros que descrevem novas mutações genéticas causadoras de doenças hormonais. O conjunto desses trabalhos é que rendeu a Ana Claudia o Prêmio Richard E. Weitzman, concedido em junho pela Sociedade Americana de Endocrinologia a pesquisadores com menos de 40 anos de idade.

A equipe de 25 pesquisadores liderada por Berenice – mulheres, na maioria, como é comum na área de endocrinologia – enfrenta diariamente o desafio de mostrar a quem aparece por lá em busca de atendimento que em geral é possível tratar esses problemas genéticos marcados por um forte preconceito. É o caso da identificação do sexo de indivíduos que nascem com genitais ambíguos – com estruturas masculinas e femininas completas ou não. Esse problema compreende três grupos de doenças diferentes.

Um é o hermafroditismo verdadeiro, em que o indivíduo apresenta ovários e testículos e os órgãos genitais externos com estruturas masculinas e femininas, a chamada ambigüidade genital. Geneticamente, a maioria dos hermafroditas verdadeiros tem em cada célula dois cromossomos X – os homens normais têm um cromossomo X e um Y e as mulheres, dois X. Portanto, eles deveriam ser mulheres. Mas como explicar o desenvolvimento dos testículos? Provavelmente,isso se deve a alterações em genes ainda desconhecidos que atuam como o gene SRY do cromossomo Y, responsável pela formação dos testículos.

O segundo grupo é o pseudo-hermafroditismo masculino: do ponto de vista genético, o indivíduo é um homem (XY), mas o pênis não se desenvolve completamente e a abertura da uretra fica em posição anormal. “Os pseudo-hermafroditas deveriam ter sido homens normais, mas não foram completamente virilizados, por causa de defeitos ocorridos ao longo do desenvolvimento sexual embrionário”, diz Berenice. Até os dois meses de gestação, lembra ela, os homens e as mulheres têm a genitália idêntica – o que os diferencia, a partir desse momento, é a ação do hormônio sexual masculino, a testosterona.

As mulheres pseudo-hermafroditas constituem a terceira categoria: apresentam dois cromossomos X e possuem o aparelho reprodutor feminino completo, como toda mulher qualquer, mas durante a vida intrauterina sofreram um processo de virilização dos genitais: o clitóris cresce excessivamente e se apresenta como uma estrutura semelhante ao pênis. Desde 1976, chegam a 500 os casos de ambigüidade genital diagnosticados nessa unidade do Hospital da Clínicas da USP. A causa mais freqüente – responsável por um em cada três casos – é uma doença de nome complicado, a hiperplasia adrenal congênita virilizante. Mutações no gene CYP21A2 resultam na deficiência de uma enzima, a 21 hidroxilase.

A escassez dessa enzima impede a síntese do hormônio cortisol, produzido nas glândulas supra-renais. Numa reação em cadeia, a falta desse hormônio aciona uma glândula da base do cérebro, a hipófise, que intensifica a produção de outro hormônio, o hipofisário corticotrófico, estimulante da atividade das supra-renais. Em resposta a esse estímulo, as supra-renais aumentam de tamanho e produzem mais hormônio masculino, a testosterona. Nos fetos do sexo feminino, o excesso desse hormônio provoca virilização: as mulheres nascem com um clitóris hipertrofiado, que lembra um pênis, e uma bolsa escrotal sem testículos, que recobre completamente a vagina.

Mas o aparelho reprodutor interno e os cromossomos são de uma mulher, caracterizando um caso clássico de pseudo-hermafroditismo feminino. “Às vezes, mesmo em berçários de maternidades grandes, esse tipo de bebê é registrado como menino”, diz Berenice. Sem o auxílio de exames hormonais e da determinação dos cromossomos sexuais, médicos se confundem e imaginam que se trata de um bebê do sexo masculino cujos testículos só irão descer para a bolsa escrotal mais tarde. Nos fetos do sexo masculino, a mutação desse gene faz com que haja apenas o crescimento anormal das supra-renais, sem alterações nos genitais externos.

Duas pesquisadoras dessa equipe, Tânia Bachega e Ana Elisa Billerbeck, descobriram, nos últimos quatro anos, cinco novas mutações do CYP21A2, como parte dos resultados de dois projetos temáticos apoiados pela FAPESP. Desse modo, a análise de mutações genéticas ligadas a doenças sexuais integrou-se ao diagnóstico pré-natal, permitindo assim às mulheres que já tiveram uma filha pseudo-hermafrodita evitar que o problema se repita. No terceiro mês de gestação, a futura mãe submete-se a um exame de um fragmento da placenta que revelará se o embrião é do sexo feminino e se apresenta alguma alteração no gene CYP21A2.

Se o teste indicar mutações, a equipe de Berenice sabe como evitar as conseqüências: a mãe deverá tomar um medicamento, o corticóide sintético dexametasona, que evita que os órgãos sexuais da menina se apresentem como os de um menino. Chegando ao feto por meio da corrente sangüínea, a dexametasona ingerida pela mãe inibe a produção excessiva do hormônio adenocorticotrófico (ACTH), que impede a produção exagerada do hormônio sexual masculino. Nesse caso, a equipe brasileira desenvolveu os estudos moleculares e atestou no Brasil a eficácia desse tratamento, criado em meados dos anos 70 na França.

Puberdade precoce
A identidade sexual se cristaliza por volta dos 2 anos de idade e, depois disso, é muito complicado mudá-la. Por essa razão, lembra Berenice, identificar precocemente a disfunção é essencial para evitar traumas nos pais e na criança. Mas, lamentavelmente, o diagnóstico tardio ainda ocorre com freqüência no Brasil. Metade dos casos de ambigüidade genital que chegam a esse ambulatório do HC é de pessoas adultas. Nesses casos, definir o sexo torna-se uma questão que não se resume à genética. Pode estar escrito no núcleo de cada célula se um indivíduo é uma mulher, se apresenta dois cromossomos X, mas o que fazer se foi criado como homem e desenvolveu uma identidade masculina? A equipe de Berenice enfrentou um caso desse tipo em junho, quando apareceu um hermafrodita verdadeiro, de 20 anos, com genitais masculinos e femininos.

Havia sido registrado como mulher, mas criado como homem. Ele (o nome não pode ser divulgado, em respeito à privacidade) chegou ao HC depois de cumprir um calvário de constrangimentos públicos. Nascido no interior de Pernambuco, veio a São Paulo em busca de tratamento e foi parar num desses programas de televisão vespertinos que tratam anomalias como atração de circo. O programa lhe ofereceu tratamento médico, mas ele deveria dizer para a namorada, ao vivo, que era hermafrodita – ela não sabia.

Aproveitando a exposição no programa, um médico disse que se disporia a tratá-lo, de graça. A violência moral só terminou quando o rapaz fez os exames para iniciar o tratamento e outro médico – um herói anônimo – encaminhou-o para o Hospital das Clínicas. A análise cromossômica, embora apresentasse genitais ambíguos, identificou dois cromossomos X. Portanto, geneticamente era do sexo feminino. Por opção própria, como apresentava identidade masculina, submeteu-se à retirada do útero, ovários e vagina e à chamada masculinização (a uretra foi transposta para a glande) dos genitais externos.

Com freqüência, as pesquisas desse grupo da USP desvendam a origem de doenças raras ou que se confundem com outras, desse modo incentivando a busca de novos tratamentos. Por exemplo, um estudo conduzido pela médica Sorahia Domenice, publicado em setembro de 2001 no Journal of Clinical Endocrinology and Metabolism , mostrou que uma mutação já conhecida do gene DAX1 produzia manifestações mais amplas do que se acreditava. Os principais sintomas da doença eram o funcionamento precário da supra-renal e o atraso da puberdade.

A equipe do HC descreveu há dois anos outra mutação no gene DAX1, encontrada em um menino, que, em vez do atraso, provocou puberdade precoce, com o surgimento de caracteres sexuais antes dos 3 anos de idade. Em um estudo de grande repercussão publicado em 1996 no New England Journal of Medicine , os pesquisadores do HC descreveram um defeito genético no receptor do hormônio luteinizante (ou LH, na sigla em inglês), produzido pela hipófise, que estimula a fabricação de testosterona pelos testículos. Com a mutação no receptor do LH, o organismo não produz testosterona em quantidades adequadas e os fetos, embora apresentassem cromossomos masculinos, nasciam com genitália feminina ou ambígua.

Um ano depois de pesquisadores do Hospital Universitário de Nijmegen, da Holanda, terem publicado a primeira descrição de uma mutação no receptor de LH causando pseudo-hermafroditismo masculino, o estudo brasileiro mostrou que o espectro dessa anomalia era maior, ao descrever um menino com micropênis e um efeito até então desconhecido: as irmãs dos portadores de pseudo-hermafroditismo masculino, devido à mutação do receptor do LH, são inférteis, com menstruação irregular ou ausente.

A médica Regina Martin comprovou este ano a origem genética de outra moléstia rara, o excesso de aromatase, uma enzima que transforma testosterona em estrógeno, o hormônio feminino. Essa disfunção genética resulta do excesso de produção de estrógeno e faz os meninos apresentarem micropênis e desenvolverem seios, enquanto as meninas sofrem aumento do útero e crescimento exagerado dos seios. Em todos os casos, a síndrome provoca baixa estatura. O estudo que descreve a quinta família encontrada no mundo com essa doença – e a primeira no Brasil – saiu em junho no Journal of Clinical Endocrinology and Metabolism .

Baixa estatura
Um mês antes, Maria Cândida Fragoso publicou nessa mesma revista uma pesquisa sobre a identificação de duas mutações genéticas que podem causar a síndrome de Cushing ACTH-independente, doença caracterizada pelo aparecimento nas supra-renais de nódulos que produzem em demasia o hormônio cortisol, regulador do metabolismo do açúcar e da pressão arterial. O excesso desse hormônio na circulação provoca uma série de efeitos colaterais, como obesidade localizada no centro do corpo, a face em forma de lua cheia, atrofia da pele e hipertensão arterial.

Segundo Berenice, a descoberta das mutações genéticas não altera os rumos do tratamento – que consiste na retirada das supra-renais seguida de reposição hormonal -, mas ajuda a entender essa doença, que pode ser causada por vários mecanismos diferentes. Até então, só se conhecia uma causa da moléstia: alguns pessoas produziam cortisol em excesso, devido, por exemplo, ao peptídeo chamado GIP, secretado pelo pâncreas em resposta à chegada de alimentos ao aparelho digestivo.

Outra especialidade do grupo do HC é o estudo de doenças endocrinológicas que levam à baixa estatura, que afeta 3% da população. Nessa área, um trabalho de grande repercussão, devido à sua aplicabilidade, foi feito no ano passado pelo douto-rando Alexander Jorge, que mostrou a fragilidade do teste mais usado no diagnóstico de casos em que as aplicações do hormônio de crescimento parecem não funcionar para corrigir a baixa estatura. Jorge verificou que não havia reprodutibilidade: dois testes com amostras idênticas não apresentam os mesmos resultados.

Este ano, em outra pesquisa, Eveline Gadelha, ex-aluna de Berenice e hoje professora na Universidade Federal do Ceará, avaliou a precisão dos exames que embasavam o diagnóstico de deficiência de hormônio de crescimento e concluiu: o diagnóstico laboratorial, muitas vezes, pode estar equivocado. As pesquisadoras, que publicaram os resultados deste estudo em maio na Hormone Research , avaliaram 30 crianças normais e 26 com deficiência de hormônio de crescimento para definir o ponto de corte para os métodos mais modernos: a deficiência hormonal só pode ser realmente atestada quando a concentração de hormônio está abaixo de 3,3 nanogramas por mililitro de soro sangüíneo.

Segundo Berenice, os médicos ainda utilizam o corte de 7 nanogramas, válido para métodos de dosagem mais antigos, com sensibilidade menor. “Há crianças com diagnóstico de baixa estatura que tomam hormônio sem nenhum problema endocrinológico”, alerta a pesquisadora. “São mais baixas que a média devido à herança genética dos pais.” Para meninos ou meninas de 4 ou 5 anos, por exemplo, deficiência de hormônio de crescimento significa ter 7 a 8 centímetros abaixo da média da altura esperada. Luciani Carvalho, aluna de doutorado de Ivo Arnhold, do mesmo laboratório, descobriu recentemente uma nova mutação no HESX1, gene que interfere no desenvolvimento da glândula hipófise.

O defeito já era associado a uma manifestação gravíssima, a displasia septo-ótica: as vítimas nascem cegas e com alterações no sistema nervoso central. A contribuição desse estudo, a ser publicado no Journal Clinical Investigation , foi a descoberta de uma manifestação mais branda da mesma doença, quando o erro ocorre numa região diferente do gene. O caso que deu base à pesquisa pioneira é um exemplo típico da rotina do HC.

Em 1985, a equipe de Berenice atendeu uma garotinha de 5 anos vinda de Recife com deficiência de crescimento – tinha 87 centímetros, 20 a menos do que deveria. Era uma deficiência grave na produção de hormônios, que pôde ser tratada com reposição. Para crescer, a menina tomou hormônio de crescimento e hoje, aos 23 anos, alcançou 1,65 metro de altura. Desenvolveu o útero e seios e menstrua regularmente. Os pesquisadores descobriram agora na amostra de DNA dessa menina a origem exata da doença: uma mutação no gene HESX1.

Sua versão alterada só se expressa quando é herdada tanto do pai quanto da mãe, o que raramente ocorre, mas se deu nesse caso porque a menina era fruto de um casamento consangüíneo – os pais são primos. Antes dessa descoberta, seu caso se perdia em meio a centenas de outros. Na última década, a equipe de Berenice acumulou cerca de 300 amostras de DNA de brasileiros com baixa estatura de origem desconhecida e sabe que tem em mãos um tesouro genético que esconde histórias como a da garotinha do Recife.

Os projetos
1. Diagnóstico Molecular de Distúrbios da Diferenciação Sexual (nº 97/01196-1); Modalidade Projeto temático; Coordenadora
Berenice Bilharinho de Mendonça; Investimento R$ 648.094,20
2. Diagnóstico Molecular das Alterações do Eixo GHRH, GH, IGF1 (nº 00/14092-4); Modalidade Projeto temático; Coordenador Ivo Jorge Prado Arnhold – USP; Investimento R$ 1.565.450,00

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