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História

Jogos de poder nas telas

Pesquisador recupera interesses políticos e econômicos nos cinejornais da era desenvolvimentista

Entre meados dos anos 1930 e 1980, todo espectador de cinema no Brasil, cada vez que foi assistir a um longa-metragem estrangeiro, teve também a oportunidade de ver uma compilação de atualidades, o cinejornal. Segundo o pesquisador Rodrigo Archangelo, da Cinemateca Brasileira, em São Paulo, os cinejornais correspondem quase à metade de tudo o que foi filmado no Brasil até a época em que deixaram de ser produzidos – mais de 13 mil entre os 40 mil títulos registrados na Cinemateca, somados à estimativa de coleções conhecidas mas ainda não incorporadas à sua base de dados.

Entrevista: Rodrigo Archangelo
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“Os cinejornais são uma fonte histórica muito importante que nunca recebeu a devida atenção”, afirma Maria Luiza Tucci Carneiro, professora do Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo (FFLCH-USP) e orientadora de Archangelo em suas  pesquisas de mestrado e doutorado. Nesses estudos, o pesquisador revelou as marcas dos jogos de poder envolvendo políticos do primeiro time, entre eles os presidentes Juscelino Kubitschek, Jânio Quadros e João Goulart.

...o governador Cid Sampaio com o senador Ted Kennedy...

ReproduçãoO governador Cid Sampaio com o senador Ted Kennedy…Reprodução

A constância da produção dos cinejornais se deve às leis de obrigatoriedade de exibição de um “complemento nacional” nas sessões cujo programa principal era um filme estrangeiro. O espaço era destinado a curtas-metragens de qualquer espécie, embora os noticiosos rapidamente tenham se tornado o prato principal, por diversos fatores, entre eles o custo relativamente baixo e a oportunidade de assumir funções de propaganda de interesses políticos e econômicos. A demanda pelos cinejornais também vinha a calhar para que as empresas produtoras se exercitassem e se mantivessem na ativa. “Eles garantiam uma arrecadação segura e faziam os técnicos praticarem para os filmes de ficção, que eram o grande objetivo”, diz Eduardo Morettin, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP.

Archangelo, que começou na Cinemateca como estagiário e hoje é pesquisador no Centro de Documentação e Pesquisa, conjuga em seus estudos a investigação do conteúdo dos cinejornais com a verificação do material arquivado na instituição. O baixo número de estudos históricos feitos com base nos cinejornais no Brasil se deve às dificuldades de acesso e preservação de todo e qualquer arquivo em filme – mais o imediatismo com que eram tratados pelos próprios produtores. A deterioração dos negativos e cópias, dificuldade de armazenamento, falta de mão de obra para catalogação e de verbas para recuperação, além de disputas judiciais, são alguns dos obstáculos que dificultam o acesso dos pesquisadores.

...Jango com os militares...

Reprodução…Jango com os militares…Reprodução

Propaganda
No entanto, estão ali testemunhos de pelo menos meio século de história do Brasil, incluindo as imagens de si próprios que os governantes gostariam de passar para a posteridade. O potencial propagandístico dos cinejornais foi percebido por líderes políticos antes mesmo da lei de obrigatoriedade. No início dos anos 1920, o governador de São Paulo e futuro presidente Washington Luís encomendou ao pioneiro realizador Gilberto Rossi a produção de noticiosos. Outro político paulista – o prefeito e governador Adhemar de Barros – e sua imagem promovida pelo cinejornal oficial Bandeirante da tela (1947-1956) foram objeto da dissertação de mestrado de Archangelo, que está sendo publicada em livro pela editora Alameda com o título Um bandeirante nas telas: o discurso adhemarista em cinejornais. Nesse caso, tratava-se de um acervo menor, com variadas lacunas, mas que se encontrava relativamente bem conservado, até por ter chegado à Cinemateca a tempo (no início dos anos 1970), e o pesquisador pôde realizar sua intenção de analisar o modo como Adhemar era apresentado em seu “ritual do poder” – expressão cunhada pelo crítico e professor Paulo Emílio Salles Gomes, fundador da Cinemateca Brasileira, para se referir à imagem dos homens públicos nos filmes de “cavação” (material de propaganda paga) nos primórdios do cinema no país.

Em seu doutorado, Archangelo fez uma pesquisa inédita sobre os cinejornais Notícias da semana e Atualidades Atlântida, que estão guardados na Cinemateca desde 2009 e foram produzidos pelo Grupo Severiano Ribeiro (GSR), muito atuante nos ramos de distribuição e exibição cinematográficas. O pesquisador estudou o período entre 1956 e 1961. Além de analisar o ritualismo em torno dos presidentes Juscelino, Jânio e Jango, a pesquisa abordou o modo como o GSR trabalhou o noticiário de modo a oferecer visibilidade a homens públicos e entidades que representavam seus interesses de distribuidor e exibidor. “O pano de fundo são as escolhas do produtor pelas melhores oportunidades políticas e econômicas no ápice do período nacional-desenvolvimentista e também no seu esgotamento e no rearranjo das forças decisórias em 1961”, diz Archangelo.

...e Carlos Lacerda numa recepção: pauta conservadora

Reprodução…e Carlos Lacerda numa recepção: pauta conservadoraReprodução

Os cinejornais do GSR apresentam similaridades com o Cine Jornal Brasileiro, produzido pelo Departamento de Imprensa e Propaganda (DIP) da ditadura de Getúlio Vargas – hoje uma das coleções mais conhecidas entre as arquivadas na Cinemateca, por ser também a mais bem preservada. “A presença de Juscelino nos cinejornais retoma do Estado Novo a imagem de um país e de um herói nacional que caminhavam para a modernidade e a emancipação econômica”, observa Maria Luiza Tucci Carneiro. “Mesmo sendo uma iniciativa privada, os cinejornais do GSR lidam com o ritualismo da agenda presidencial de modo semelhante ao dos cinejornais do período getulista”, prossegue Archangelo. E a apresentação ganhava credibilidade pela presença de Herón Domingues na locução, famosa voz que comandava o radiofônico Repórter Esso e que seria chamada para narrar a inauguração de Brasília à frente de um consórcio de emissoras de rádio, então o meio de comunicação de maior alcance do país.

Nos cinejornais produzidos pela GSR, destacam-se em particular os Estados Unidos e sua cultura. Como distribuidor e exibidor, o grupo precisava manter boas relações com a produção de Hollywood, que na época mantinha um “embaixador” (hoje se diria lobista) no Brasil, Harry Stone – representante da Motion Pictures Association of America. “Num contexto de ambição de modernidade, o GSR cobria inaugurações de fábricas e dava ênfase à presença de convidados internacionais e do seu próprio presidente, Luiz Severiano Ribeiro Jr., nos festejos oficiais da inauguração da nova capital”, diz Archangelo. As atividades da Associação Comercial do Rio de Janeiro, cujos dirigentes eram referidos como “classes produtoras”, recebiam cobertura jornalística com regularidade. E a presença do governador do estado da Guanabara, Carlos Lacerda (1961-1965), um dos principais opositores de João Goulart, tornou-se cada vez mais frequente no final do período estudado. “O GSR mobilizou cinegrafistas para acompanhar Lacerda numa viagem a Miami, onde falou para famílias cubanas fugidas do comunismo”, relata o pesquisador.

Cópias e negativos de filmes marcados pelo tempo

Eduardo CesarCópias e negativos de filmes marcados pelo tempoEduardo Cesar

O elemento popular, ao contrário, pouco foi documentado. “Na abertura da fábrica da Volkswagen, os operários não aparecem e, na inauguração de Brasília, menciona-se um desfile dos candangos que não é mostrado em imagens”, diz Archangelo. Uma reportagem sobre a “feira do candango”, onde moradores de cidades distantes sofriam com a falta de transporte para comprar mantimentos na nova capital, mostra o evento como algo pitoresco. Segundo o pesquisador, a desapropriação do Engenho Galileia (PE) foi retratada como concessão do governador conservador Cid Sampaio, sem mencionar que a medida se seguia a uma intensa mobilização de agricultores ligados às Ligas Camponesas.

Para pesquisar o conteúdo dos dois cinejornais do GSR, Archangelo usou como guia a documentação escrita que acompanha o material fílmico nos arquivos da Cinemateca. Os papéis incluem os roteiros de locução e as pautas semanais de notícias. As surpresas desagradáveis vieram na comparação com o conteúdo das latas. Muito material requisitado por documentaristas – no período anterior a ser guardado na Cinemateca – foi simplesmente cortado e tirado dos rolos de negativos. “Tive que montar um quebra-cabeça”, conta Archangelo.

As pesquisas em cinema exigem esse mergulho. “Todo historiador precisa ver o material original para verificar a autenticidade e se há enxertos de imagens, por exemplo”, diz José Inacio Melo Souza, um dos pioneiros das pesquisas com cinejornais. O trabalho de Archangelo chegou aos elementos mínimos (os fotogramas dos filmes e os snapshots da pequena parcela de material que já estava digitalizado). “Peguei plano a plano, fiz a captação das imagens e salvei em pastas de arquivo eletrônico”, diz. O trabalho resultou em aproximadamente 15 mil imagens captadas e cerca de 60 laudos de descarte, procedimento instituído por lei para a destruição de material que já não tem condições de uso.

Projeto
Imagens da nação: Política e prosperidade nos cinejornais Notícias da semana e Atualidades Atlântida (1956-1961); Modalidade Bolsa no País – Regular – Doutorado; Pesquisadora responsável Maria Luiza Tucci Carneiro (FFLCH-USP); Bolsista Rodrigo Archangelo (FFLCH-USP); Investimento R$ 147.778,30.

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