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Entrevista

Maria Immacolata Vassallo de Lopes: Telenovela, a narrativa brasileira

Miguel Boyayan

Demorou até que a telenovela fosse reconhecida como objeto legítimo e fascinante de estudos acadêmicos no Brasil. De forma mais consistente, foi só na década de 1990 que na Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA-USP) formou-se um grupo de pesquisa disposto a estudar profundamente esse gênero melodramático, agora tão brasileiro, sob múltiplos aspectos e pontos de visão.

Dessa turma fazia parte Maria Immacolata Vassallo de Lopes, hoje professora titular da ECA e coordenadora do Programa de Pós-graduação em Ciências da Comunicação (PPGCOM). Immacolata resolveu encarar a sério a questão da recepção, tão polêmica dentro das teorias da comunicação, acreditando que a partir do olhar de quem assiste tevê poderia desvendar algumas das razões que transformaram a telenovela brasileira num fulgurante fenômeno da comunicação de massa, além de produto de exportação.

Um produto, observe-se, que teve várias vezes sua morte anunciada desde os anos 1980 e que, neste começo de 2009, continua emitindo sinais inequívocos de vigor – a novela A favorita, da Rede Globo, depois de uma virada fantástica e audaciosa na trajetória da aparente mocinha da trama, dá sinais claros de vitalidade, batendo na casa dos 50 pontos do Ibope, depois de uma fase em que mal passava dos 35. É claro que isso nem de longe se compara a performances lendárias como a de Roque Santeiro, que, diz-se, no último capítulo deu 100 pontos de share, ou seja, todo mundo que estava com a televisão ligada no país naquele momento estava na Globo para ver como terminava o brilhante folhetim eletrônico de Dias Gomes e Aguinaldo Silva. Se é verdade mesmo, ninguém sabe. A comparação direta, entretanto, não faz muito sentido nos dias que correm, porque a tevê é hoje um universo muito mais complexo e diversificado, ao qual se soma a poderosa face audiovisual da mídia digital, com a internet. Dentro desse panorama, uma novela com o desempenho de A favorita é, sim, um tremendo sucesso.

Vendo televisão de dentro da casa de algumas famílias, na segunda metade dos anos 1990, Immacolata compreendeu um pouco mais por que tamanho sucesso. E isso foi relatado em Vivendo com a telenovela: mediações, recepção, teleficcionalidade, um livro de 2002 (Summus Editorial), em que ela é autora juntamente com as pesquisadoras Silvia Helena Simões Borelli, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), e Vera da Rocha Resende, da Universidade Estadual Paulista (Unesp). Quando o livro saiu, Immacolata, depois de uma viagem para estudos da ficção televisiva à Itália, já estava às voltas com o projeto do Observatório Ibero-Americano da Ficção Televisiva, o Obitel, que finalmente foi criado em 2005 com a participação de nove países, envolvendo não só instituições acadêmicas como braços ligados ao mundo da pesquisa de robustas empresas de comunicação, a exemplo da Globo e da mexicana Televisa. Em cada país uma instituição acadêmica é responsável pelo Obitel – no Brasil não poderia deixar de ser o Centro de Estudos de Telenovela da ECA-USP, coordenado por Immacolata.

Essa entrevista visava em grande parte o Obitel, que, além de desenvolver um banco de dados quantitativos sobre a ficção televisiva de todos os países que participam da iniciativa, faz e publica uma análise anual da produção, da audiência e da repercussão sociocultural de toda a ficção televisiva produzida na América Latina e na península Ibérica. No entanto, ante a vertiginosa paixão de Immacolata pela telenovela, um tema realmente absorvente para qualquer brasileiro interessado na comunicação de massa, o Obitel ficou meio na sombra, enquanto a grande narrativa ficcional brasileira contemporânea ganhava a cena, nessa conversa, da qual publicamos os principais trechos a seguir:

Você é uma pioneira nos estudos acadêmicos da telenovela aqui no Brasil. Eu queria ouvi-la, primeiro, sobre o começo: como a telenovela se tornou seu objeto central de pesquisa? 
No começo dos anos 1990 José Marques de Melo, então diretor da ECA, organizou um programa de estudos de ponta, cobrindo vários temas pouco usuais como objeto de pesquisa. Um deles era a telenovela, outro eram os quadrinhos etc. E aí se formou um grupo, um núcleo inicialmente liderado pela Anamaria Fadul. A questão passava a ser organizar essa equipe, porque estávamos com um produto importantíssimo para o país, em termos culturais e em termos de comunicação, mas a legitimação e o reconhecimento de um novo objeto de estudo na academia são sempre difíceis. Aos poucos, foram se gestando os projetos de pesquisa dos professores e dos estudantes, nossos orientandos de mestrado e doutorado. Já hoje temos certamente um número fantástico de trabalhos de conclusão de curso na graduação sobre a ficção na televisão, o que inclui telenovelas, minisséries, séries etc.

Isso começou por qual departamento da ECA?
Pelo CCA, o Departamento de Comunicações e Artes, ligado à teoria da comunicação. Havia uma intenção de interdisciplinaridade na abordagem da telenovela. Importava a questão mesmo da telenovela no Brasil, quer dizer, esse produto que vem da televisão e o que é a televisão dentro da sociedade brasileira. Quando a coordenação do núcleo já estava com Maria Aparecida Baccega, entramos em 1995 com um projeto temático na FAPESP, que resultou em nove subprojetos. Coube a mim, dentro disso, fazer um estudo de recepção da telenovela [“Recepção da telenovela brasileira: uma exploração metodológica”]. Mas havia uma colega, Solange Couceiro, que estudava a questão das relações raciais na telenovela, outra, a questão do consumo, a Renata Pallottini, a questão da escrita, a Lurdinha, Maria de Lourdes Motter – infelizmente falecida precocemente –, estudava a relação entre realidade e ficção etc. Tudo isso gerou livros e todo um processo muito interessante para a vitalidade desse núcleo. Havia um outro aspecto de nosso trabalho que era a interface com os produtores e com o mercado, e a maioria das teses e dissertações, nesse caso, incidia sobre produtos da Globo. Natural, porque foi ela que tornou a telenovela um produto profissionalmente rentável, com qualidade estética, qualidade técnica. Mas o fato é que o grupo precisava fazer gestões de relações com o mercado, porque, se a telenovela provocava desconfiança na academia, nossos estudos provocavam uma desconfiança dos produtores, que imaginavam que íamos começar a falar de uma forma frankfurtiana em alienação, algo na base do “é manipulação o que vocês fazem”, essas coisas. Mas as coisas começaram a andar desse outro lado graças aos seminários para os quais convidávamos os produtores, principalmente os autores de telenovela, entre eles Lauro César Muniz, Silvio de Abreu, Maria Adelaide Amaral e Glória Perez. Eles se misturavam aos acadêmicos e disso resultavam trabalhos muito interessantes.

Especificamente em seu estudo de recepção da telenovela, quais foram os achados principais?
Bem, havia um desafio teórico-metodológico, mas fundamentalmente metodológico no estudo, ligado à questão da teoria das mediações. Esse é um tema de larga influência na área de comunicação através de Jesus Martín-Barbero. Tínhamos então que fazer a pesquisa tomando como marco teórico a questão das mediações e definir como trabalhar essa teoria em termos metodológicos. Não era simples e por isso eu insistia tanto junto à FAPESP que o projeto era realmente uma experiência metodológica numa pesquisa empírica.

Em termos mais práticos, quem você entrevistou? Como definiu sua amostra?
Nas Humanas é frequente o estudo de caso, e a ideia era essa, pesquisar a recepção da telenovela no âmbito de um estudo de caso. Mas chegamos a um universo, nem tão pequeno assim, de quatro famílias de condições sociais diferentes, desde uma que vivia numa favela até uma de classe média alta de um condomínio do Morumbi. As outras duas eram uma família de periferia e uma de classe média. Íamos acompanhá-las assistindo a uma mesma novela…

Qual novela? 
A indomada, que estava no ar naquele momento. A estratégia envolvia estar oito meses na casa das famílias, fazendo uma observação etnográfica e, ao mesmo tempo, estudando o acompanhamento da novela, ou seja, a recepção do produto. E isso envolveu um protocolo metodológico ambicioso, porque o trabalho tinha que ser feito por uma equipe multidisciplinar, com pessoal sênior de psicologia, de antropologia, de comunicação, de sociologia, e mais um grupo de orientandos e até estudantes na iniciação científica – 14 pessoas no momento de mais intensidade do trabalho. Foram três anos de pesquisa, um ano só para afinar a equipe, coisa essencial porque íamos entrar na casa das pessoas, em média, duas vezes por semana. Ficamos oito meses com essas famílias, do começo ao final da novela. Nosso compromisso explícito era sair a qualquer momento, se estivéssemos atrapalhando a vida da família. E nenhuma das quatro propôs isso.

A telenovela não é só vista, é falada. Está no jornal, nas conversas, nos blogs, nos sites, e seus capítulos são antecipados nos jornais do fim de semana

Em termos práticos, como vocês faziam? 
Chegava uma dupla principalmente no horário da novela, mas não só. Porque, como dentro da pesquisa era importante observar o que chamamos de cultura da família, precisávamos ver como as coisas funcionavam na parte da manhã, à tarde, como a televisão era ligada, quando, o que faziam, enfim, toda essa questão do cenário porque a televisão é um aparelho familiar e tudo isso faz parte daquilo que chamamos de observação etnográfica. Interessava essas pessoas, suas histórias de vida, como começou o interesse por telenovela etc. E tudo isso permitiu ver na prática que a telenovela é mesmo uma narrativa popular, com as marcas de reconhecimento, mais do que de identificação, como dizem Jesus Martín-Barbero e outros. Em outros termos, as pessoas se reconhecem naquela narrativa popular. Tem que ser um melodrama para ser recebida como telenovela, mas, de fato, ela passou a falar também sobre a realidade brasileira.

Esse reconhecimento é algo visível ou mensurável? 
É observável e, na medida em que a telenovela é uma narrativa da família, e não dos indivíduos, é mais consequente fazer da família a unidade da investigação. A telenovela busca sempre os temas privados, as paixões, o ódio, a origem das pessoas, sempre ambientados nas famílias. Esse é o cenário, o paradigma. E quem assiste em casa é uma família real que se reconhece em parte nas famílias da ficção.

A família como ambiente é a manutenção do padrão tradicionalíssimo do folhetim. Por que na ficção televisiva se mantém esse mesmo padrão de séculos? 
Porque é a matriz do melodrama, a mesma que o folhetim pegou. O que é essa matriz? Trata-se da centralidade da pessoa na família, esse espaço privado onde as coisas mais inacreditáveis que se possa imaginar têm chance de acontecer. A telenovela vai para a política, para outras instâncias da realidade, mas é o comportamento, são as questões morais que, mesmo aí, mais chamam a atenção, e tudo isso está investido dessa matriz. E o reconhecimento acontece porque todo mundo se vê numa família. Até que os estruturalistas mostraram isso muito bem, quer dizer, como é que essas famílias vão entrar em conflito ou em associação e todas as tramas daí decorrentes, com suas muitas interações.

Há autores melhores e piores nesse cruzamento das tramas. Para você, quem é o mestre? 
Acho Manoel Carlos fabuloso nesse sentido. Sabe por quê? Pela quantidade de tramas com que ele é capaz de lidar simultaneamente, e várias assumindo tal importância, como em Mulheres apaixonadas [Rede Globo, 17/02 a 10/10/2003], que se torna difícil definir quem é o protagonista. Às vezes, uma trama inicialmente pensada como secundária assoma à posição principal, e vice-versa.

Mas isso decorre da interação com o público, não? Já que se trata de uma narrativa na qual nos reconhecemos, o público vai mostrando, no movimento mesmo da recepção, em que grupo se reconhece, com que personagens tem mais empatia etc. 
Sim, os produtores têm “n” maneiras de medir, de captar isso, desde sua própria sensibilidade até as enquetes. E o interessante é que o público termina se alfabetizando nisso que chamamos a gramática dessa narrativa. Já não vemos só o making-of dos filmes de Hollywood, mas de toda a produção da televisão brasileira. Os bastidores não só são escancarados pela mídia, mas os próprios autores revelam a sua maneira de trabalhar. Então, o Manoel Carlos conta: “Vou ao jornaleiro, vou à pizzaria e vou no meu bar e começo a ouvir etc…”. E aí as pessoas já sabem: “Lá vem o Manoel Carlos, olha, seu Manoel, ontem à noite, aquela cena foi fantástica etc.”. Essa interação já se estabeleceu. O último que inovou nisso foi o Aguinaldo Silva, ao criar um blog enquanto estava escrevendo Duas caras [Rede Globo, 01/10/2007 a 31/05/2008]. Tiago Santiago também resolveu fazer isso em relação à novela da Record, Os mutantes: caminhos do coração.

Aliás, só para pegar algo bem atual da dramaturgia televisiva, como você avalia na novela A favorita a grande virada que transformou a personagem de Patrícia Pilar numa vilã monstruosa?
Em meu entendimento, A favorita combinou traços do dramalhão clássico – vingança, ciúme, segredo – com inovações, por exemplo, revelar no segundo ou terceiro mês da história quem era a malvada e quem era a boazinha, invertendo completamente o que o público tinha sido levado a pensar até então. Roteiro ousado esse do João Emanuel Carneiro. Funcionou às mil maravilhas, tornando o tipo meigo e confiável de Patrícia Pilar em mais que uma vilã tradicional, em uma verdadeira serial killer, chegando ao paroxismo do ódio à própria filha etc. Aliás, se você reparar bem, essa novela é uma grande história sobre “as aparências enganam”: ninguém, ou quase ninguém, é o que parece. O público respondeu bem e a novela está numa audiência ascendente, de quase 50 pontos.

Durante a pesquisa tornava-se mais perceptível que o sentimento de reconhecer-se, por parte do receptor da novela, tem o poder de influenciar de alguma forma o desdobramento da história.
Não era isso o mais importante a observar ali. Sem dúvida alguma o público receptor influencia, e isso aparece nas mais variadas ordens, desde a mídia falando da telenovela, fala a que os produtores estão muito atentos, aos grupos qualitativos que a própria emissora organiza, enfim, existe toda uma sistemática, toda uma metodologia para captar os humores do público em relação à telenovela. Mas a coisa mais importante para nossos estudos, creio, é a espontaneidade que se verifica, é alguém no Congresso Nacional, por exemplo, ao falar de algo significativo, se referir de repente a uma novela, aí se percebe sua dimensão cultural, vê-se o lugar que ocupa. E agora, com a internet, com os blogs, com os grupos para matar uma personagem e enaltecer outra, “odeio o autor xis” ou “adoro o autor xis”, parece que se reocupa de uma outra forma os velhos clubes de fãs ou fã-clubes. E isso nos permite dizer que, em termos sociais, continuamos com uma relação extremamente vital com a telenovela. Queria justamente falar um pouco sobre como hoje nós estamos focalizando o receptor, a recepção nos estudos de comunicação.

E como é isso? 
Já não o vemos como um ponto final num processo de comunicação que começa com a emissão. E de tal modo isso se transformou que há quem diga que é com a recepção que o processo começa, porque lá vão se criar novos sentidos. Ou, como dizemos, há uma ressignificação. Todos não assistem da mesma maneira, recortam-se conteúdos. Você pode ver uma família na favela assistindo o mesmo produto da classe média alta, mas a primeira coisa é que não é a mesma recepção. A beleza da coisa é que possamos dizer: “Está dando audiência, sim, mas os significados, os motivos são os mais variados”. E quase todos os motivos estão implicados na experiência das pessoas, na vida, no cotidiano, na cultura das pessoas. Que são diferenciadas numa sociedade tão desigual como a brasileira.

Então, longe de ser simples, este é um produto sujeito a muitas leituras e ressignificações. 
Pronto, é isso. Muitas leituras, infinitas leituras. Portanto, quando se cruza esse caráter com a questão das marcas do reconhecimento – porque se trata de uma narrativa popular, no sentido de que não é hermética, não é a de um romance –, torna-se clara a literacidade da novela. Quer dizer, a gramática passa a ser aprendida, inclusive vem a crítica, “essa cena está malfeita”, “a maneira de falar de fulano está errada” etc.

Uma crítica referida à estética. 
Estética, técnica… às vezes críticas realmente surpreendentes, em especial quando se vai descendo na escala social. Uma curiosidade: das quatro famílias com que trabalhamos, aquela que mais se aproximava de um tipo ideal de família não era a da favela, nem a que classificamos na classe média tradicional, nem a da classe média alta, mas a da periferia. Poderíamos dizer que era uma família de classe média baixa. Tinha determinados equipamentos dentro de casa, os filhos estudavam, diferentemente do que acontecia com a primeira família, cujas filhas adolescentes vendiam produtos nos semáforos… O pai nessa família da periferia tinha sido vendedor de peixe na feira e no momento era vendedor ambulante de guloseimas. A mulher fazia um trabalho social na igreja, e também por isso era muito crítica do que via na telenovela.

O que é esse tipo ideal? 
Falo do ideal do Weber. Quando se tem tipos ideais, já não se está na ordem da rea­lidade. Quando Weber fala, por exemplo, do capitalismo, está pensando principalmente no tipo ideal da racionalidade capitalista. Vê-se claramente que o corpo do capitalismo é o da administração, é o da empresa. Nele, portanto, tudo está controlado em termos de meios e fins. Mas indo às famílias, nas quatro com que trabalhamos, que, é claro, não têm nenhuma representação estatística, víamos em todas elementos que são propriamente de um modo de vida de classe média. No entanto, em relação a esse reconhecer-se na narrativa e em termos da ressignificação, categorias que tomamos nos estudos de recepção (que hoje alguns chamam de ativa, para afastar a ideia de passividade total ante a televisão), esse reconhecimento realmente se corporificava, se realizava muito mais, na segunda família, a da periferia.

Ou seja, essa família era a que tinha a relação mais direta, mais afetiva – no sentido amplo de afetivo – e mais interativa com o que se passava lá na tela. A ponto de “falar” para as personagens o que deviam fazer.
É isso mesmo. E veja, nós pensamos nessas famílias sem muitas restrições prévias. Queríamos apenas que se assistisse telenovela naquela família e que houvesse disponibilidade de nos receber. Ah, outra coisa: que não tivesse criança pequena. Não tínhamos condições de incluir essa categoria. Adolescente, sim, a partir do momento em que pudesse falar se sabendo adolescente ou jovem. E foi essa a única pré-condição em termos da composição familiar. Se a família tivesse à frente uma mulher viúva, estava bem. E encontramos uma assim. No diagrama do arranjo familiar, na da favela, o marido não estava, tinha abandonado a casa. E a mulher tinha, enfim, sua própria novela, que era a vida dela. Nesses termos, a família da periferia era a mais do tipo ideal, sabe, pai, mãe, filho.

Estavam todos os elementos da composição da família nuclear.
Sim, tudo bem composto. E tinha o lado da mulher, era bem interessante lidar com ela ao assistir a telenovela, porque ali tinha uma personagem feminina forte.

Que idade tinham os chefes das famílias escolhidas?
Quase 50. Na família de classe média, ambos estavam no segundo casamento. Não havia filhos em casa, porque os filhos dele do primeiro casamento estavam com a mãe, e o casal ainda não tivera filhos. No casal da classe média alta, a mulher era até bastante noveleira, mas o marido, um empresário, entrava, dizia “boa noite” e ia embora assistir o vídeo dele em outro lugar. Nunca quis sentar. Ela assistia sozinha. Dos filhos, o rapaz fazia pós-graduação e as filhas faziam cursinho. Em termos de estudos de recepção, era muito instigante tentar ver como a telenovela entrava naquela casa. As duas filhas, porque faziam cursinho à noite, assistiam só nos fins de semana e a mãe contava para elas o que acontecera nos demais dias. Também era muito interessante o desafio de estabelecermos eticamente até onde podíamos ir, até onde podíamos atender às demandas para comentar certas coisas, como, por exemplo, a questão da sexualidade dentro da novela, o que fazia alguma delas começar a falar de suas próprias experiências. Quero dizer que, se pensarmos nas pesquisas antropológicas, quando você fica na tribo tem que se tornar um nativo, obter a confiança de todos. Mas estávamos lá para falar de telenovela. E em relação à questão do reconhecimento, da ressignificação e das diversas leituras, me chamou muito a atenção que a novela criasse, para além de todas as diferenças entre os receptores, coisas em comum, que é aquilo que comecei a chamar de repertório compartilhado.

Ou seja, na sociedade brasileira você tem, de fato, algum repertório compartilhado de alto a baixo dos estratos sociais.
Isso mesmo. Por exemplo, como a família enfrenta a questão da virgindade e sexualidade das suas filhas. Que era tratada numa cena de A indomada como uma relação tipo Romeu e Julieta. Essa novela do Aguinaldo Silva teve de tudo, do grande drama até a comédia mais escrachada. E quando eu digo desse repertório comum, lembro uma cena em que a personagem da Luíza Tomé, a mulher do prefeito, representado por Paulo Betti, fala com a filha a respeito do primeiro ato sexual que ela vai ter. É fantástico.

Você viu, na recepção nas diferentes famílias, uma disposição favorável a essa forma? 
Sim, favorável. Não só a esta forma, mas à ideia de que a telenovela devia abordar esse tipo de coisa, porque é algo que todo mundo passa, porque sempre tem essa coisa dentro da família. A personagem estava também falando do cuidado, de se ter sexo também com um envolvimento amoroso. Dizia: “Você sabe o que vocês estão fazendo? Vocês estão preparados?”. Aí ela fala de hormônios, nada de uma coisa do arco-da-velha, não, um texto muito contemporâneo. Outro repertório compartilhado era tratar da questão da política. De novo, recorrendo a Martín-Barbero: uma pessoa do povo nunca vai entender o que é a guerra – a guerra é um lugar onde um tio morreu. A cidade é um lugar onde a prima se deu bem. Assim, as categorias mentais mais complicadas chegam às pessoas via afeto. Quer dizer, há aí uma coisa de cognição que passa claramente por um sentido emocional. Então, emoção e razão… A telenovela faz esse duplo movimento para as coisas chegarem às pessoas: o privado se torna público e o público se torna privado. E tem que haver isso. Tomemos a violência, por exemplo. Tem que acontecer dentro de uma família e daí, numa novela de Manoel Carlos, que provocou até aquela onda de reação da violência no Rio, havia uma moça que estava observando algo e é morta por uma bala perdida. No Leblon. Era uma personagem importante, e aí era a inserção de todo aquele drama das balas perdidas na ficção.

O que está no mundo de fora e não me mobilizava de repente passa a ter significado pela via do afeto. Relaciono-me com a violência objetiva pela via do afeto, facilitada por esses trabalhos midiáticos.
Exatamente. E você pode dizer até por dispositivos da narrativa. E aí passamos a falar da narrativa televisiva que foi se abrasileirando, da telenovela, que se torna, para mim, um gênero típico, um gênero, portanto, da televisão, nacional. E cheguei a essa conclusão através de meus envolvimentos teóricos, metodológicos, até epistemológicos, e via recepção.

A partir de quando ela se torna um produto cultural genuinamente brasileiro?
O marco para todos os estudiosos da história da telenovela é Beto Rockfeller, da TV Tupi, escrita por Bráulio Pedroso e levada ao ar em 1968. Mas temos um processo de abrasileiramento, de naturalização até do próprio ator, do modo de interpretar e da história. Quer dizer, ela se torna cada vez mais realista. E não porque o autor perde de vista que está fazendo uma telenovela, portanto gênero meio dramático, aquela coisa toda, mas por exigência do público. Dou um exemplo: num núcleo que se passa numa redação de jornal, os jornalistas começam a dizer “mas aquilo ali de forma nenhuma acontece, é um equívoco”.

Como também reclamam médicos, nutricionistas e todas as categorias profissionais.
É uma coisa incrível essa capacidade de mobilização da telenovela e o enraizamento que foi acontecendo. A isso exatamente me refiro quando falo de abrasileiramento do gênero. A questão é de que ele foi se apropriando para se constituir assim. A cultura brasileira absorvera fotonovela, radionovela, a maneira de o cinema tratar o país, então, a telenovela não se realizou nesse sentido de uma forma isolada, fez uma reapropriação do que já vinha acontecendo há décadas na cultura. Quando pensamos sobre isso vamos necessariamente ao rádio na forma como foi utilizado por Getúlio Vargas nos anos 1940 e depois entrando pelos 50. Vamos aos meios de comunicação na sociedade brasileira, perguntar pelos seus efeitos, pela sua importância, pela manipulação ou pelo uso de tudo isso. A televisão, que herdou muita gente do rádio, era muito cara no começo, inclusive os aparelhos, então havia a experiência do “televizinho”, ou seja, ela se punha dentro da rede da comunidade mais próxima. E a telenovela surge primeiro pela Tupi, sem dúvida alguma, passa pela Record, pela breve experiência da Excelsior. Já é longa essa história que chega aos bons autores que eram dramaturgos, Dias Gomes, Jorge de Andrade … E os anos 1970 trazem as novelas fantásticas que ficaram na cabeça de todo mundo. E nessa longa vivência a recepção vai se tornando ativa e crítica, com as pessoas chamando a atenção para determinadas características e dispositivos, adiante podendo explicar “olha, aquele episódio estava malfeito porque a produção teve que correr, fulano não conseguiu fazer o capítulo de ontem” etc.

E a novela passa a ser o tempo todo um work in progress
É, exatamente. Aliás, o meu projeto atual de pesquisa chama-se “a telenovela como narrativa da nação”. Mas acho que é importante notar que a profissionalização da Globo, toda sua capacidade de produção, se realizou em cima desse gênero. É ela o marco, claro que isso depois se torna muito complexo.

No Obitel, o fundamental era construir um sistema de monitoramento de telenovela para que pudéssemos ir além dos estudos de caso

Mas a teleficção, e a telenovela em particular, é o coração da máquina toda, em sua avaliação.
Sem dúvida.

Nos anos 1980, numa entrevista que fiz com Manoel Carlos para a revista Senhor, ele prognosticou o fim das longas telenovelas que seriam substituídas pelas minisséries. Entretanto, mais de 20 anos se passaram e a despeito das sentenças de morte seguimos vendo novela das sete, novela das nove, novela na Record etc. 
Pois é, o horário de telenovela a rigor começa na Globo antes das seis, começa com Malhação e vai, com algumas interrupções para jornal e outros programas, até as 11 horas da noite ou mais. Uma das primeiras coisas que o Obitel está fazendo é estudar a grade da ficção que é própria, que tem a ver com capacidade produtiva da televisão de cada país. Nessa grade aqui no Brasil cabem telenovela, série, minissérie e até microssérie, que é a série de três ou quatro capítulos que no exterior ninguém conhece. O que se vê é que da matriz inicial da telenovela foram nascendo variadas experiências de ficção televisiva entre nós, em que convivem todas. Creio que Manoel Carlos assim como Lauro César falavam tanto no fim da novela, ou pelo menos de se afastarem da função de escrever novela, porque o trabalho era muito desgastante. Ainda é, mas um pouco menos porque os autores começaram a contar com colaboradores, o que não havia nos anos 1980. Glória Perez e Gilberto Braga começaram como colaboradores de Janete Clair. E isso é muito importante, a produção semanal de uma novela corresponde a fazer dois filmes e meio por semana! E o trabalho do autor é muito grande inclusive porque há dispositivos de naturalização inteiramente dados pelo texto. É como na cena da mãe falando para a filha sobre sexualidade a que me referi: o texto é o mecanismo de naturalização. Uma câmera só acompanha os atores, em plano fixo, transcorre uma conversa que dura o tempo que duraria no plano real. E, olha, há o tempo do telespectador do outro lado, e as barrigas, as redundâncias têm que ocorrer porque se assiste televisão, não só telenovela, com passarinho cantando, cachorro latindo, a filha chamando… Cadê a atenção que se dispensa a um filme no escuro do cinema? E então também esta relação, a recepção de maneira fragmentada, tem que ser pensada na telenovela. E até a possibilidade de se ficar dez dias sem assistir e depois ter capacidade de acompanhar a narrativa. É claro que tudo isso foi entrando na feição própria da telenovela. Com o tempo, foi se manejando essa arte, essa técnica, que continuamos a acompanhar.

Mas é possível se ter informação sobre os desdobramentos da novela até no jornal, nos cadernos de tevê etc.
Pronto, aí está o ponto onde eu queria chegar: todos falam da telenovela. Ela não é só vista, é falada. E esse conjunto que eu chamo de semiose social é o que faz ela ser o que é. A telenovela está no jornal, nas conversas, nos blogs, nos sites, seus capítulos estão antecipados nos jornais do fim de semana.

Entretanto, você não tem mais a telenovela dominando inteiramente a cena geral da televisão brasileira. Existe a oferta de programas muito diferentes nos canais da TV paga. Isso não diminui muito o alcance desse produto tão abrasileirado? 
A audiência vem diminuindo em termos relativos faz tempo. A audiência usual da telenovela nos anos 1970 – não estou falando de share – era de mais de 60 pontos, quase 70 pontos do Ibope. E há o que se diz de Roque Santeiro, cujo último capítulo teria alcançado 100% de share. Há, sim, o aumento da oferta, o aumento de canais, a diversificação, isso sem falar da internet. E hoje as pessoas deixam de assistir na televisão o que até gostariam porque são puxadas pela internet para trabalhar. O trabalho deixou de existir num só lugar, ele está também na casa normalmente à noite. Isso antes não existia. Portanto, temos que compreender também essa mudança no cotidiano. Mas, olhando em perspectiva, se o Ibope da telenovela que já foi quase 60 baixou para 50, para 40, tiver que ir para 30, ela continua hegemônica, em termos de programa assistido. Porque a hegemonia se dá, sim, pela audiência, sem dúvida, mas também por impor um padrão.

Nós não podemos terminar essa entrevista sem falar do Obitel. Como ele começou?
Quando terminei o estudo da recepção, pedi uma bolsa à FAPESP para um pós-doc na Itália, onde há um observatório da Fiction, como eles dizem, coordenado por Milly Buonanno. Era uma coisa proposta já dentro do marco do audiovisual europeu, o Observatório Eurofiction. Fui lá fazer ver isso em 2001. Queria analisar a telenovela brasileira no cenário internacional. Não podemos nos fechar, temos que lidar com outras nações para entender nosso nacional. E, claro, sabemos que existe a marca da telenovela latino-americana, principalmente mexicana, da Televisa. E sabemos como ela entra nos Estados Unidos através da comunidade hispânica. Quase todos os países têm o gênero de ficção na televisão. Quer dizer, todo mundo gosta de se ver nas histórias, nas narrativas, naquilo que fala de nós. Só que essa narrativa é também uma indústria cultural movida a capital, movida a mercado e, portanto, alguns dominam isto, vide o cinema norte-americano. Nós, aqui no Brasil, na Globo, mesmo em outras redes, das cinco e meia da tarde até as dez horas da noite, ou seja, no horário nobre, a produção que vemos é nacional. Isso significa mercado de trabalho para atores, para produtores, autores etc. Isso não é pouco e, se entendermos mais o que se passa, pode aumentar extraordinariamente. Estamos longe da era do “enlatado”. O prime time, o horário nobre, está ocupado por histórias que falam de nós.

E aí quais foram as suas percepções? 
Eu decidi que tinha que precisávamos definir como nós faríamos um observatório de ficção, qual seria a logística, depois, qual metodologia para fazer isso. Um observatório tem que monitorar a produção, a audiência etc. com dados. Os dados seriam solicitados ao Ibope, mas nós próprios, dentro do Núcleo de Telenovela na ECA, teríamos que gerar outros. O fundamental era construir um sistema de monitoramento para poder realmente falar do que acontece e do que não acontece. Eu percebia com relação à telenovela que estávamos indo muito para os estudos de caso. Precisamos fazer macroanálises da ficção televisiva. E até coisas inéditas em termos de olhar a telenovela: olhar a produção, os dispositivos, a oferta, a coprodução, os formatos, a migração de formatos…

E o observatório já está funcionando aqui no Brasil? 
Sim, desde que voltei da Itália, ainda em 2001, ainda que o Obitel, com esse nome, tenha sido formalizado em 2005. Eu já tinha o suporte institucional e daí o desafio era, com uma equipe, ambientar, colocar o observatório no Núcleo de Pesquisa de Telenovela. Depois que passou a se chamar Obitel, fizemos o convênio com o Ibope, fomos aprendendo a fazer. Vimos que era possível já propor esse projeto para colegas da área de comunicação de outros países que vinham nessa trajetória. A idéia do Obitel é trabalhar com pesquisa de produção e circulação entre nós de telenovela, minissérie, série etc. Em síntese, das ficções televisivas. Mas não quero que o Obitel Brasil se resuma à equipe da ECA. Já consegui reunir 38 pesquisadores brasileiros de telenovela e quero que todos estejam no Obitel desenvolvendo projetos.

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