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Entrevista

Maria Victoria de Mesquita Benevides: O direito à democracia

Socióloga impulsionou a criação do campo da educação em direitos humanos no Brasil

Léo Ramos Chaves

Com especialização em ciência política, a socióloga Maria Victoria de Mesquita Benevides é neta da baronesa Maria José Villas Boas Antunes de Siqueira de Mesquita (1862-1953), mas nunca obteve benefício significativo em razão de sua origem. A mãe, viúva aos 43 anos no final da décima gestação, incentivou as seis filhas a buscar uma profissão e a serem independentes. Benevides seguiu o conselho. A fluminense de Niterói fez carreira como docente e pesquisadora e hoje é professora titular aposentada da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP).

Em entrevista que se estendeu por uma tarde, na sala de estar da casa onde vive, em São Paulo, Benevides falou sobre sua pesquisa envolvendo o governo de Juscelino Kubitschek (1902-1976), realizada durante a ditadura militar brasileira (1964-1985), e os estudos sobre partidos políticos, propondo argumentos sobre como a desigualdade emperra o avanço da democracia brasileira.

Sua produção mais recente está voltada para a área da sociologia da educação, mais especificamente educação para a democracia.​ O percurso de 27 anos na FE-USP permitiu levar concepções formuladas na ciência política para os campos da educação e dos direitos humanos. Nesse caminho, trabalhou com o conceito de cidadania ativa, desenvolvendo ideias para defender a participação política através de mecanismos institucionais para além de eleições, incluindo plebiscitos e referendos. De fala didática, ela conta como o trabalho com a Comissão de Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns, fundada em 2019, a tem motivado a seguir adiante durante a pandemia. Viúva, há quatro anos, do astrônomo e professor da USP Paulo Benevides Soares (1939-2017), ela tem três filhos e cinco netas.

Idade 79 anos
Especialidade
Sociologia política e sociologia da educação
Instituição
Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FE-USP)
Formação
Graduação (1971) em ciências sociais, mestrado (1975) e doutorado (1980) em sociologia na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH)
da USP
Produção
30 artigos científicos e 13 livros

Vamos começar falando sobre sua infância?
Sou uma flumioca, ou seja, uma mistura de fluminense com carioca. Nasci em Niterói, mas cresci na cidade do Rio de Janeiro. Até meu casamento, vivi com meus irmãos, minha mãe e minha avó materna em uma casa no bairro Rio Comprido. A família de minha mãe era de Niterói e a de meu pai mineira. Éramos 10 irmãos. Sou a oitava, ou a nona, porque tenho uma irmã gêmea. Minha infância foi marcada por perdas e mortes. Aos 20 anos, meu irmão mais velho, José Jeronymo, se alistou como voluntário na Força Expedicionária Brasileira. Em novembro de 1944, já no final da Segunda Guerra Mundial [1939-1945], morreu em combate na Itália. Nessa época, eu tinha 2 anos e minha mãe estava no final da gravidez de seu décimo filho. Com a notícia, meu pai infartou e morreu. Além da perda do mais velho, outro irmão também faleceu em um acidente doméstico. Guardo dessa época a imensa admiração que tínhamos por nossa mãe, que sonhava em ser médica. Ela era uma mulher corajosa. Seu avô foi médico e também sua primeira filha. Essa irmã foi a única mulher de sua turma, na Faculdade de Medicina da então Universidade Nacional no Rio de Janeiro.

Como era a vida em uma família com tantas mulheres?
Tivemos uma educação rigorosa. Nossa mãe sempre dizia: “Casamento não é profissão”. Ela nos incentivava a sermos independentes, estudar e construir uma carreira. Atualmente, somos quatro irmãos: um homem e três mulheres. Outro ponto marcante de minha mãe era sua posição política. Ela era discretamente de esquerda, em uma família bem tradicional, monarquista e religiosa. As três irmãs de minha mãe foram freiras. Meu avô materno era de origem alemã, de religião luterana. Da parte paterna, minha avó, com quem convivi pouco, era baronesa. A família de meu pai era muito rica, mas quando ele se casou estava já deserdado. Meu pai foi enviado para estudar em Londres aos 9 anos. Fez engenharia em Londres, filosofia na França e arquitetura em Florença. Viveu na Europa até os 32 anos, sempre em grande estilo, mas próximo da “gauche”, que ajudava financeiramente. Quando voltou ao Brasil, tinha gasto uma fortuna e a mãe dele, já viúva, achou que era um desaforo ele receber mais da herança familiar. Para casar com minha mãe, meu avô materno exigiu que ele tivesse um emprego público, o que não foi difícil com o diploma de engenheiro. Em casa, todos trabalhavam e tivemos bolsa de estudos. Lembro do comentário de uma amiga, que sintetiza essa época: “Sua família come em louça da Companhia das Índias e com talher de prata, mas é arroz com feijão, ovo e carne moída”. Vivíamos em uma casa com bibliotecas em todos os cômodos e que também dispunha de uma capela. Estudamos francês e inglês. Todos temos filhos e netos e sempre convivemos muito, o que só mudou com a chegada da pandemia.

Como se deu seu ingresso na sociologia?
Casei-me em fevereiro de 1964, às vésperas do golpe militar. Meu marido, Paulo Benevides, era engenheiro formado pelo Instituto Tecnológico de Aeronáutica onde também estudou astronomia. Ele foi convidado pelo Centre National de la Recherche Scientifique, o CNRS, da França, para trabalhar no Observatório de Besançon. Nos mudamos em março e lá permanecemos por quatro anos e meio. No começo, quase não tínhamos notícias do Brasil. Telefonar era caro. Acompanhávamos a situação do país pelo jornal Le Monde. Besançon é uma cidade pequena, de origem medieval, com 100 mil habitantes, mas com universidade, teatros, museus e até uma orquestra sinfônica. Nosso primeiro filho nasceu lá. Voltamos ao Brasil em 1968, logo depois do AI-5. Viemos para São Paulo porque o Paulo foi contratado pelo Instituto de Astronomia e Geofísica da USP. Eu tinha começado a graduação em sociologia e política na PUC-RJ em 1963. Quando chegamos aqui, solicitei transferência para ciências sociais na USP. Sempre estudei com bolsa, inclusive na PUC. No mestrado e doutorado, obtive bolsa da FAPESP. Minha pesquisa de pós-doutorado e a livre-docência desenvolvi com recursos do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico [CNPq] e do Social Sciences Research Center.

Voce já era mãe de uma criança quando ingressou na USP. Que lembranças tem da graduação?
Minha vida na USP foi boa, mas não uma típica experiência universitária. Não tive participação em grupos políticos nem a vida social dos estudantes. Quando comecei o mestrado em sociologia, tinha três filhos pequenos: Daniel, André e Marina. Não tive ajuda da família, que morava no Rio. Eu era uma dona de casa à moda antiga, ou seja, sabia cozinhar e costurar. Foi pesado, mas, para mim, era absolutamente importante ter filhos. Não podia sequer imaginar a hipótese de não ser mãe.

Democracia dá trabalho. Requer esforço dos governantes e governados. É preciso participar e se informar

Sobre o mestrado, como surgiu a ideia de pesquisar o governo de Kubitschek?
Eu gostava muito de pesquisar e estava interessada em conhecer tudo sobre política brasileira, por causa da conjuntura daquele momento. Encantei-me com a tese do cientista político Braz José de Araújo [1941-2004], sobre a política externa de Jânio Quadros [1917-1992], defendida em 1970. Conversando com meu marido, que era da área de exatas, mas tinha uma abertura cultural muito grande, ele sugeriu que eu fizesse meu mestrado sobre Juscelino, chamando a atenção para o fato de que seu governo aconteceu em um período tenso – entre o suicídio de Getúlio Vargas [1882-1954] e a renúncia de Jânio Quadros –, mas que marcou profundamente a história da industrialização e da democracia brasileira que, como sabemos, é limitada. Apresentei um projeto para o cientista político Francisco Weffort [1937-2021], que gostou da ideia. Eu queria compreender o que garantiu a estabilidade do governo JK em uma época tão conturbada. Entrevistei 15 integrantes de agremiações como o Partido Social Democrático (PSD) e o Partido Trabalhista Brasileiro (PTB), além do próprio Kubitschek que me disse: “Fui o único presidente civil depois do Estado Novo [1937-1945] que governou de acordo com a Constituição”. Essa primeira entrevista ocorreu justamente no dia 1º de abril de 1974, quando se encerravam os 10 anos de suspensão de seus direitos políticos. Durante nossa conversa, ele recebeu uma ligação e ficou muito nervoso. Tive calafrios e senti medo de que ele pudesse sofrer um infarto. Quando desligou o telefone, contou que a suspensão de seus direitos políticos, como eleitor, estava encerrada, mas que seguia inelegível.

Seu mestrado chamou a atenção de intelectuais e políticos e o livro que derivou dele foi considerado obra de referência sobre o governo JK. Que avaliação faz da repercussão desse seu trabalho ?
A defesa da dissertação aconteceu em novembro de 1975, logo depois do assassinato do jornalista Vladimir Herzog [1937-1975]. A sala estava lotada, com a presença de pessoas como o sociólogo Florestan Fernandes [1920-1995], o crítico literário Antonio Candido [1918-2017] e o historiador Caio Prado Junior [1907-1990]. O tema do mestrado, com ênfase na relação entre democracia e desenvolvimento, e a época em que foi desenvolvido contribuíram para chamar a atenção. O Jornal do Brasil, por exemplo, deu uma página inteira apresentando a pesquisa com o título: “Professora mostra em tese por que o governo JK não caiu”. Minha dissertação, modéstia à parte, parecia uma tese de doutorado por causa da originalidade do tema, das referências teóricas e das entrevistas. Nela identifiquei que a relativa estabilidade política do governo Kubitschek pode ser atribuída a três fatores: à cooptação dos militares, comprometidos com o desenvolvimento nacional; à aliança entre PSD e PTB, que congregava interesses da burguesia agrária e dos trabalhadores urbanos; e ao Programa de Metas, que impulsionou o processo de industrialização e multiplicou empregos.

Como foi pesquisar o governo Kubitschek em plena ditadura?
Fui bem recebida em todas as entrevistas. Eu não estava ligada a grupos políticos e carregava a equivocada fama de ser rica – o que nunca fui. Isso acabou evitando atitudes de desconfiança a meu respeito. Eu não era “subversiva”. A pesquisa originou o livro Governo Kubitschek – Desenvolvimento econômico e estabilidade política: 1956-1961, publicado pela Paz e Terra, em 1976. No começo, não me dei conta do impacto que ele causaria. Kubitschek participou do lançamento, que aconteceu na Casa de Rui Barbosa, no Rio. Ele morreu um mês depois. De certa maneira, o sucesso pesou contra mim. Há muita competição no meio acadêmico e eu não sou uma pessoa competitiva.

Arquivo pessoal Com Juscelino Kubitschek durante lançamento de seu livro, em 1976Arquivo pessoal

Como isso se deu?
Imaginava que meu caminho seria a carreira universitária. Em 1982, abriram duas vagas para o Departamento de Ciências Sociais da FFLCH. Escutei considerações de que era melhor eu não me candidatar, por supostamente não apresentar o perfil desejado. Àquela altura eu já tinha publicado dois livros e tinha um bom currículo. Minha retaguarda era forte por causa do mestrado. Mas me disseram que o departamento preferia alguém mais jovem, em início de carreira, e que fosse mais ligado à sociologia, e não à ciência política. Estava com 40 anos. Acabei não me inscrevendo no concurso. Elisabeth Lobo [1943-1991] e Régis Stephan de Castro Andrade [1939-2002] foram os escolhidos. Sempre tive excelente relação com ambos.

E o doutorado?
Na tese estudei a UDN [União Democrática Nacional] desde sua fundação, em 1945, até o golpe de Estado, em 1964 – evento em que esse partido foi protagonista. Terminei a tese afirmando que a UDN nasceu envolvendo nomes de grandes liberais, como Virgílio de Melo Franco [1897-1948], integrantes da esquerda democrática e socialista, mas terminou “em apagada e vil tristeza”. Essa afirmação valeu um comentário do sociólogo e cientista político Bolívar Lamounier, um dos arguidores da banca, que nunca esqueci: “Você pode ser uma boa pesquisadora, mas acabou fazendo o juízo final da UDN”. De minhas pesquisas sobre partidos políticos, derivaram livros como A UDN e o udenismo – Ambiguidades do liberalismo brasileiro [Paz e Terra, 1981] e O PTB e o trabalhismo – Partido, sindicato e governo em São Paulo [Cedec/Brasiliense, 1989].

A atuação no Centro de Estudos de Cultura Contemporânea mudou sua trajetória de pesquisa?
Participei da fundação do Cedec, em 1977, e lá permaneci até 1985. Só saí porque fui aprovada no concurso da Faculdade de Educação. Os anos no Cedec me abriram a possibilidade de elaborar novos estudos, além de uma rica convivência com pesquisadores e políticos, do Brasil e do exterior, todos interessados nas condições da necessária democratização. Passei a analisar, por exemplo, a violência urbana e os direitos de cidadania.

Como foi o concurso para a Faculdade de Educação?
Celso de Rui Beisiegel [1935-2017], sociólogo e chefe do Departamento de Filosofia e Ciências da Educação, conhecia meu trabalho. Em 1985, convidou-me para integrar o corpo docente. Lembro de ter lhe dito: “Mas eu não sei nada de educação, nunca li Jean Piaget [1896-1980], por exemplo”. Ele respondeu que a faculdade precisava de alguém para dar aulas de sociologia política. Fui aprovada no concurso e, durante meus 27 anos lá, orientei 12 mestrados e 15 doutorados, dei aulas na graduação e pós-graduação, e criei uma disciplina sobre direitos humanos.

Em que medida sua atuação na FE-USP impactou seu pensamento e sua forma de ver o mundo?
Com cabeça de cientista política, voltei-me ao diálogo entre educação e democracia, buscando compreender o que é uma educação efetivamente emancipadora. Também passei a me interessar por educação e cultura brasileira e organizei uma disciplina sobre o tema, com as obras dos sociólogos Gilberto Freyre [1900-1987] e Sérgio Buarque de Holanda [1902-1982] e dos críticos literários Antonio Candido e Roberto Schwartz. Lá fui feliz e acabei tendo uma vantagem: como não era da educação, acabei não precisando disputar espaço. Nunca quis ser diretora da faculdade, tampouco fazer parte do Conselho Estadual de Educação, por exemplo. A única vez que competi foi em 1996, por ocasião do concurso para professor titular. Éramos três candidatas e eu fiquei com a única vaga. Nessa época, já trabalhava com direitos humanos. Integrei a Cátedra Educação para a Paz, da própria USP com apoio da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura [Unesco]. Na faculdade, ajudei a constituir o campo da educação em direitos humanos, que acabou se tornando uma disciplina que se disseminou por universidades, faculdades e organizações da sociedade civil. Atualmente, integro o Conselho Deliberativo do Instituto Vladimir Herzog, do Centro Sérgio Buarque de Holanda da Fundação Perseu Abramo e da Comissão de Defesa dos Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns. Também faço parte da Rede Brasileira de Educação em Direitos Humanos e da Secretaria de Direitos Humanos e Cidadania da cidade de São Paulo. Todas essas entidades têm seus planos de educação em direitos humanos.

A senhora também teve uma presença institucional intensa na USP.
Durante dois mandatos, fui representante da FE no Conselho Universitário. Participava tanto que, em certa ocasião, o reitor pediu à diretora de minha faculdade para não eleger mais a Benevides. “Cada vez que ela levanta a mão, eu empalideço”, disse ele. Também atuei, por dois mandatos, na Comissão de Legislação e Recursos e na Comissão de Relações Internacionais. Minha vida universitária foi intensa, acabei conhecendo o Brasil porque fui muito convidada a compor bancas, em diversos estados do país.

A democracia brasileira ocupa espaço central em sua produção acadêmica. Quais desafios a senhora identifica, atualmente?
No Brasil, nunca vivenciamos uma experiência efetivamente democrática, no sentido de contarmos, de fato, com a soberania popular. Sempre tivemos a intermediação de grupos econômicos e de gente que, historicamente, detém o poder no país. Nas pesquisas do Latinobarómetro, estudo de opinião pública desenvolvido anualmente com cerca de 20 mil entrevistados de 18 países da América Latina, é medido o nível de adesão da população à democracia. Diante da pergunta “se houver emprego e comida para todos, você prefere viver em uma ditadura ou democracia?”, no Brasil existe a possibilidade do “tanto faz” ou mesmo da opção pela ditadura. Nosso principal problema é a desigualdade abissal. Vivemos quase 400 anos de escravidão legal e perduram, ainda hoje, trabalhadores em situação de escravidão. Estudos mostram que a democracia tem mais chances de se enraizar e funcionar onde a classe média corresponde à maioria da população, como é o caso de alguns países europeus. Para citar um exemplo pessoal, morei na França na década de 1960, em pleno vigor do Estado de bem-estar social. Durante a gravidez, precisei do apoio de uma faxineira, que vinha em casa uma vez por semana, por duas horas. Quando acabava o serviço, tomávamos um chá e ela ia embora dirigindo seu carro Renault popular. Quando ficou grávida, fez os exames de pré-natal no mesmo lugar em que fiz os meus e teve seu bebê na mesma clínica que tive o meu. Nossos filhos frequentavam a mesma escola. Você imagina, no Brasil, patroa e empregada no mesmo ginecologista e suas crianças na mesma escola? Nos anos em que vivi no país europeu, meu marido fazia parte da elite intelectual e jamais vimos uma única pessoa colocar seu filho em escola particular. A escola pública é realmente uma instituição democrática na maioria dos países da Europa.

Arquivo pessoal Com o crítico literário Antonio CandidoArquivo pessoal

Qual a particularidade da classe média brasileira?
Em nossa sociedade, está arraigada a ideia, naturalmente equivocada, de que privilégios seriam direitos. Sempre falei aos meus alunos que a palavra “privilégio” vem do latim privilegium, que significa lei privada, o que é um absurdo em si, porque não existe lei privada. Toda lei é pública. As classes média e alta se acostumaram com privilégios de classe. Por exemplo, em um contexto de inflação a 10%, a última coisa que vai passar pela cabeça da maioria dos patrões e patroas é reajustar o salário de seus funcionários nesse percentual. Mas esses mesmos personagens vão reclamar do aumento no IPTU dos Jardins. E a classe média sempre foi racista. Este é um dos temas que passei a abordar no campo dos direitos humanos. É difícil afirmar que não se é racista. Ainda hoje, a negação do racismo cai por terra com simples perguntas como: “Você já teve algum professor ou amigo negro? Seus filhos têm amizade com algum negro? Se sua filha namorasse um negro, a família aceitaria?”. As respostas seguem sendo constrangedoras. As primeiras consequências do racismo enraizado são a violência e a desvalorização do trabalho. Há uma distância enorme entre o trabalho braçal e o intelectual. Mesmo que o trabalho intelectual seja apenas burocrático e mal remunerado, ainda é considerado de maior valor do que o trabalho realizado por um excelente pedreiro, marceneiro, eletricista ou mesmo o trabalho doméstico. Posturas dessa natureza dificultam até mesmo a compreensão do que seja a democracia e ter direitos no Brasil.

O conceito de democracia participativa é central em suas reflexões. Em que consiste, exatamente?
A democracia é um regime político em que a titularidade do poder é – ou deveria ser – da soberania popular. Isso significa que, em última instância, o povo é soberano. Porém tudo na democracia, inclusive a soberania popular, é regrado em consonância com o Estado de direito e a Constituição. O Estado de direito pode ser entendido como a vigência e a transparência da norma igual para todos, com pleno respeito às minorias e o controle entre os poderes. Além disso, há a prevalência dos direitos humanos, que devem ser reconhecidos pelo Estado e pela sociedade. Sua efetivação decorre de princípios constitucionais e conquistas sociais. Os direitos sociais, econômicos e ambientais – que são, entre nós, os mais desrespeitados – devem ser garantidos por políticas públicas, permanecendo aberto o espaço à promoção de novos direitos. Ou seja, como afirma o jurista Fábio Konder Comparato, os direitos humanos percorrem uma linha que vai dos direitos do indivíduo aos direitos dos povos, dos grupos sociais, até os direitos de toda a humanidade, com o compromisso pelo futuro das novas gerações. Em relação aos direitos da humanidade, o que avulta hoje é o direito à vida nesse planeta, à defesa do equilíbrio climático e do meio ambiente, da economia sustentável e dos povos originários e tradicionais.

Se ditaduras podem ser percebidas como também capazes de oferecer emprego e comida, por que a democracia seria melhor?
O regime ditatorial pode até garantir direitos econômicos e assegurar que as pessoas não morram de fome, mas a sociedade é destituída de muitos outros direitos igualmente relevantes – como aqueles relacionados à liberdade de expressão, à diversidade cultural, religiosa, política e de gênero. Há um vínculo essencial entre a democracia e a garantia dos direitos humanos.

E em que consiste a cidadania ativa, conceito em torno do qual a senhora também tem trabalhado?
Fiz minha tese de livre-docência sobre democracia participativa e nela refleti sobre os instrumentos de democracia direta como referendo, plebiscito e iniciativa popular legislativa. Esses mecanismos constitucionais permitem aperfeiçoar o sistema da democracia representativa. Estudei como eles funcionam na Europa, em alguns países da América do Sul e nos Estados Unidos, onde costumam ocorrer a cada dois anos, principalmente em estados como a Califórnia e o Oregon. A cidadania ativa se contrapõe à passiva, aquela que está relacionada apenas com a obediência à lei e aos deveres de cidadão. A cidadania ativa é o direito e o dever do povo à participação política, aos processos democráticos de controle e fiscalização sobre os poderes. E isso inclui não apenas votar, mas se esforçar para atuar em processos decisórios, mantendo-se informado e participando de debates comunitários que podem ocorrer em grupos como os de vizinhança ou em partidos políticos. Democracia dá trabalho. Requer esforço dos governantes e governados.

Sua bagagem intelectual tem contribuído, de alguma forma, para seguir adiante nesse momento que o país atravessa?
Estou aposentada, mas durante a pandemia já participei de cinco bancas, em áreas diversas como filosofia, direito e comunicação. Continuo especialmente interessada em propostas de redução da brutal desigualdade social, inclusive a desigualdade na educação. Nesses quase dois anos de pandemia, minhas netas tiveram aulas on-line e presenciais, fizeram cursos de línguas e prestaram vestibular, ou seja, não perderam quase nada, em termos de educação formal. Mas as perdas foram terríveis para a imensa maioria das crianças e jovens das famílias já tão vulneráveis. Muitos passaram fome, porque a única alimentação que tinham era ofertada pela escola. Tive Covid-19, mas já estava vacinada e os sintomas foram leves. Fiquei isolada em uma casa confortável, o tempo todo pensando nos amigos que morreram ou precisaram ser intubados. Nas pessoas passando fome e morando na rua. Quando pensava em tudo isso, o que me manteve forte foi minha presença na Comissão Arns, fundada no início do atual governo por 22 pessoas para denunciar e combater violações de direitos humanos em todo o país. Mais do que minha bagagem intelectual, o que tem me sustentado e ajudado a lidar com a ansiedade social e política durante a pandemia tem sido o envolvimento com a Comissão.

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