A costa brasileira está acumulando microplásticos, partículas plásticas com diâmetro inferior a 5 milímetros (mm), e nanoplásticos, que medem menos de 0,001 mm. É o que revela uma série de estudos feitos por diferentes grupos de pesquisa do país nos últimos anos. Uma investigação recente, realizada com apoio da FAPESP, estabeleceu o estuário de Santos, no litoral paulista, como um dos locais do mundo mais contaminados por microplásticos, numa comparação de amostras colhidas em 40 países. Com o objetivo de verificar a ocorrência desse resíduo no ambiente, os pesquisadores analisaram ostras e mexilhões, animais que filtram a água para se alimentar. Artigo publicado em maio na revista científica Science of the Total Environment revelou que foram detectadas, em média, 12 a 16 partículas plásticas por grama (g) de tecido dos moluscos, uma quantidade grande, considerando que os animais pesam em média 5 g.
Invisíveis a olho nu, micro e nanoplásticos não contaminam apenas a costa brasileira. Já foram detectados em rios, no solo onde são cultivados alimentos e no ar que respiramos (ver Pesquisa FAPESP nº 281). Absorvidos involuntariamente por seres vivos, chegam ao sistema digestivo, aos pulmões, à corrente sanguínea e à placenta de mulheres grávidas. Cientistas do mundo todo estão dedicados à tarefa de identificar o quanto esses resíduos estão dispersos na natureza e os riscos ao ambiente e à saúde de humanos e animais provocados por sua presença.
Não foi surpresa o nível abundante das partículas no estuário de Santos, cidade com elevada densidade urbana e que abriga o maior porto do país. O litoral santista recebe água de rios que atravessam diversas cidades, bem como efluentes industriais e esgoto residencial levados por emissários submarinos da região.
A variedade de elementos geradores de microplásticos é enorme, mas o principal item encontrado no estuário paulista foi fibra têxtil sintética composta por poliamidas, elastanos e poliéster, possivelmente oriunda de fábricas de tecidos, confecções e também do desgaste gerado na lavagem doméstica de roupas.
“A água utilizada para lavar os tecidos é direcionada ao esgoto, que não é tratado, mas despejado no mar pelo emissário submarino”, observa o biólogo marinho Ítalo Braga de Castro, do Instituto do Mar da Universidade Federal de São Paulo (IMar-Unifesp) e coordenador do estudo, realizado pelo aluno Victor Vasques Ribeiro durante seu mestrado.
Os microplásticos podem ser divididos em dois grupos. Os primários, que já são fabricados em pequenas dimensões, como pellets, granulados milimétricos empregados pela indústria de transformação plástica, e os utilizados como esfoliante em cosméticos e pastas dentárias. O outro grupo são os microplásticos secundários, resultado da degradação de plásticos maiores em microfragmentos. Nesse caso, as origens são as mais diversas. Sacolas, tecidos, garrafas plásticas, bitucas de cigarro, pneus e isopor são alguns exemplos.
Do Pará ao Rio Grande do Sul
Em um dos primeiros estudos de abrangência nacional sobre a presença de microplásticos na costa brasileira, o biólogo marinho Tommaso Giarrizzo, professor visitante do Instituto de Ciências do Mar da Universidade Federal do Ceará (Labomar-UFC), colheu amostras de areia de praia em 22 localidades do Pará ao Rio Grande do Sul. Depois, quantificou e caracterizou os microplásticos encontrados de acordo com os materiais que os originaram e o perfil de ocupação humana das localidades onde foram coletados, considerando a proximidade de centros urbanos, a frequência turística e a imediação de portos ou de indústrias da cadeia produtiva do petróleo. Um manuscrito com os principais achados encontra-se em fase de análise na Science of the Total Environment.
“Nosso estudo tem a intenção de dar uma contribuição para a criação de um protocolo de diagnóstico, análise e monitoramento da presença de microplásticos no litoral do país”, diz Giarrizzo, que também já estudou a ocorrência de fragmentos plásticos nos rios amazônicos e na costa da Amazônia. Em artigo publicado em outubro de 2020 na revista científica Marine Pollution Bulletin, um grupo da Universidade Federal do Pará (UFPA), onde Giarrizzo foi professor visitante, relatou microplásticos em resíduos estomacais de arraias-brancas (Hypanus guttatus) pescadas na região.
No Ceará, o Labomar-UFC mapeou em 2020 os 573 quilômetros da costa cearense e detectou as partículas plásticas por todo o litoral. As maiores concentrações foram identificadas nas praias da capital, Fortaleza. “O microplástico é leve e se dispersa com grande facilidade. Resíduos gerados em uma localidade circulam e logo chegam a outras e também às águas profundas. Seus efeitos para a vida marinha ainda estão sendo estudados”, diz o biólogo Marcelo de Oliveira Soares, do Labomar e coordenador da pesquisa. “O microplástico é uma das causas do branqueamento e da morte de corais, não só o aquecimento global, mas ainda precisamos entender qual é a participação de cada fator no problema.”
Há também estudos na costa fluminense, especificamente na baía de Guanabara. Em um artigo de 2016, publicado na revista Ocean & Coastal Management, pesquisadores do Instituto de Geociências da Universidade Federal Fluminense (UFF) concluíram que o nível desse micropoluente muda conforme a estação do ano. Durante o verão, as concentrações de microplásticos variaram de 12 a 1.300 partículas por metro quadrado (m2) nas praias, informaram os autores no trabalho, enquanto nos meses de inverno, o nível caiu para 3 a 743 partículas por m2. Isso ocorre porque, no verão, estação das chuvas no Sudeste brasileiro, mais resíduos plásticos são lançados na baía de Guanabara levados pelas dezenas de rios e riachos que deságuam nela.
Outra investigação, conduzida por cientistas do Instituto de Biologia Marinha da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), mostrou que existem, em média, cinco partículas de microplásticos flutuantes por metro cúbico (m3), enquanto em sedimentos do fundo da baía de Guanabara o nível é de 26 mil partículas por m2 nas áreas estudadas. “A altíssima concentração de microplásticos no sedimento da baía de Guanabara, em comparação com a maioria dos estudos ao redor do mundo, sugere alto risco de contaminação para organismos bentônicos e peixes demersais, pois podem estar ingerindo microplásticos”, concluem os autores do estudo em artigo de 2019 na Marine Pollution Bulletin. Organismos bentônicos e peixes demersais vivem em contato constante com o fundo do mar.
“Um terceiro trabalho de nosso grupo, também na mesma baía, comparou a elevada concentração de itens plásticos com a densidade de organismos [de mesmas dimensões] presentes no sedimento, conhecidos como macrobentos. Encontramos mais fragmentos plásticos que poliquetas [tipo de verme aquático] e quantidades similares de microplásticos com crustáceos – ambos os animais são itens importantes na alimentação de peixes e siris”, destaca a bióloga Gisela Mandali de Figueiredo, que conduziu os estudos. “Logo, esses organismos têm grande risco de ingerir microplásticos ao se alimentar, por confundi-los com suas presas ou, incidentalmente, por serem abundantes no sedimento.”
Para o oceanólogo Fabian Sá, do Departamento de Oceanografia e Ecologia da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), uma preocupação associada a esses poluentes plásticos é seu efeito na cadeia alimentar marinha. Os zooplâctons, organismos na base da pirâmide, ingerem nanopartículas plásticas, diz Sá, e são consumidos por pequenos peixes e crustáceos. Estes, por sua vez, servem de alimento para animais marinhos maiores e também fazem parte da dieta humana.
“Hoje há uma grande redução da biodiversidade marinha no mundo, mas é muito difícil determinar o quanto dessa perda é gerada por microplásticos e quanto é resultado da ação de outros poluentes ou da combinação de efeitos desses diferentes contaminantes”, diz o pesquisador, destacando que diversos estudos evidenciam a perda de biodiversidade por poluição plástica. Sá coordenou a pesquisa com zooplâncton, executada durante o mestrado de sua aluna Jennifer Bernardino.
Além de gerar problemas para o aparelho digestivo quando ingerido, o microplástico pode causar intoxicação. Fuligens, hidrocarbonetos, partículas de metais tóxicos, pesticidas e outros poluentes aderem ao material quando entram em contato com ele. Com isso, os fragmentos passam a transportar esses poluentes.
As partículas plásticas ainda carregam em sua composição elementos químicos potencialmente nocivos quando adsorvidos. Isso porque a maioria dos plásticos é produzida com polímeros sintéticos, elaborados a partir de derivados de petróleo. Eles têm propriedades físicas distintas dependendo de suas funções e aplicações e, portanto, apresentam diferentes composições de insumos e aditivos químicos que geram características como rigidez, maleabilidade, flexibilidade, cor e resistência.
Leonardo Martins / Getty ImagesDetritos e lixo plástico se acumulam na baía de Guanabara, no Rio de JaneiroLeonardo Martins / Getty Images
Uma substância química utilizada para conferir rigidez e transparência às formulações plásticas é o bisfenol-A (BPA), considerado potencialmente cancerígeno em certas circunstâncias e, por isso mesmo, proibido de ser usado em vários países, inclusive no Brasil, na fabricação de mamadeiras. Outro exemplo é o ftalato, ingrediente empregado para tornar maleável o produto final, mas potencialmente prejudicial à saúde.
Especialistas advertem que os impactos de micro e nanoplásticos vão além dos efeitos fisiológicos gerados pela ingestão das partículas. A intoxicação pode ocorrer mesmo sem seu consumo direto, como efeito da lixiviação das partículas. Lixiviação é o processo de dissolução de um material pela ação da água. “Um pellet plástico que cai de um navio cargueiro no mar estará liberando toxinas em 24 horas”, alerta o biólogo marinho Caio Rodrigues Nobre, autor de um artigo sobre o tema publicado em 2015 na Marine Pollution Bulletin.
Nobre verificou que a decomposição de pellets plásticos no mar gera toxicidade suficiente para impactar o desenvolvimento embrionário do ouriço-do-mar (Lytechinus variegatus). “Algumas larvas de ouriço expostas aos pellets plásticos demoram para crescer, outras não crescem adequadamente e muitas nem mesmo se tornam ouriços”, relata o biólogo, destacando que, durante o estudo, isolou o efeito do pellet de outros fatores que poderiam afetar o desenvolvimento embrionário do ouriço. Segundo Nobre, os efeitos tóxicos dependem da composição de cada microplástico e não são idênticos nos diferentes organismos marinhos. Uma compreensão maior do problema exigirá que sejam realizados estudos sobre diversos elementos da fauna aquática.
Durante seu doutorado, com bolsa da FAPESP, Nobre estudou os efeitos de microplásticos que adsorvem o bactericida triclosan, ingrediente de cosméticos e produtos de higiene pessoal, sobre ostras Crassostrea e caranguejo-uçá (Ucides cordatus), como detalhado em artigos publicados nas revistas científicas Archives of Environmental Contamination and Toxicology, em 2020, e Chemosphere, em 2022. Adsorção é o processo pelo qual moléculas ou íons ficam retidos na superfície de um material por meio de interações químicas ou físicas.
“Nos dois casos, os efeitos contaminantes dos microplásticos expostos ao triclosan foram maiores do que a exposição a microplásticos comuns. Também foi possível verificar que os efeitos nocivos sobre as brânquias dos caranguejos foram significativamente maiores do que os observados nas ostras”, descreve o biólogo, atualmente em estágio de pós-doutorado no Instituto do Mar da Unifesp.
Em outra vertente de pesquisa, uma equipe do Instituto de Ciência e Tecnologia da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em São José dos Campos, investigou a contaminação por microplásticos em piscinões da Grande São Paulo, reservatórios de detenção que recebem e regulam a vazão da água da chuva nas cidades. Uma avaliação em uma estrutura localizada no bairro paulistano de Aricanduva detectou 109 mil unidades de microplásticos por quilo (kg) de sedimentos recolhidos no leito do local. Do material encontrado, 53% eram resíduos de pneus. A borracha também gera micropartículas danosas ao ambiente.
Em uma comparação com amostras coletadas pelo grupo em um reservatório em Poá (SP), em 2020, a presença de microplásticos no bairro paulistano de Aricanduva é quase o dobro. Em Poá, a concentração do contaminante foi de 57,5 mil unidades por kg de resíduo. “Quanto mais densa a urbanização de uma região, maior a geração de microplásticos e, consequentemente, o impacto ambiental”, diz o engenheiro civil especializado em saneamento básico, Rodrigo Moruzzi, coordenador do estudo, publicado na revista Environmental Pollution em dezembro de 2022. A densidade demográfica de Poá, de 6 mil habitantes por quilômetro quadrado (km2), é pouco menos da metade da verificada no bairro de Aricanduva (12,8 mil habitantes por km2).
As águas pluviais que recebem e carregam microplásticos nas áreas urbanas das cidades não são destinadas para as estações de tratamento de esgoto, mas despejadas diretamente em rios. As águas dos rios se direcionam ao mar, mas muitas vezes abastecem estações de tratamento para o consumo da população. Essas estações, contudo, não foram dimensionadas para lidar com o microplástico.
“Não existem protocolos estabelecendo procedimentos para a retirada do material e os valores máximos de microplásticos permitidos na água potável”, constata Moruzzi. Mesmo as estações de tratamento de esgoto não têm protocolos definidos para a remoção de microplásticos dos efluentes. “O material não é alvo dos processos estabelecidos. É removido eventualmente por tecnologias que visam reter outros poluentes em suspensão”, afirma.
Moruzzi usa um argumento comum entre os pesquisadores da área para definir a dispersão das partículas plásticas na natureza. “Só não tem microplástico onde não se mede. Medindo, encontra-se”, salienta. Apesar da existência dos microplásticos ser conhecida desde os anos 1970, apenas nos últimos 15 anos se intensificaram as pesquisas científicas que buscam dimensionar o problema e entender os riscos gerados à vida.
Projetos
1. Mexilhões (Perna perna) e ostras (Crassostrea brasiliana) como bioindicadores da contaminação por microplástico no estuário de Santos (SP) (nº 20/08960-7); Modalidade Bolsa de Mestrado; Pesquisador responsável Ítalo Braga de Castro (Unifesp); Bolsista Victor Vasques Ribeiro; Investimento R$ 53.422,81.
2. Moluscos bivalves como sentinelas contemporâneos e históricos da contaminação por microplásticos (nº 22/08669-6); Modalidade Bolsa de Doutorado; Pesquisador responsável Ítalo Braga de Castro (Unifesp); Bolsista Victor Vasques Ribeiro; Investimento R$ 249.082,56.
3. Avaliação do risco ambiental da interação de microplástico, fármaco e antimicrobiano: Uma abordagem ecotoxicológica (nº 17/12193-9); Modalidade Bolsa de Doutorado; Pesquisador responsável Camilo Dias Seabra Pereira (Unifesp); Bolsista Caio Rodrigues Nobre; Investimento R$ 244.312,94.
Artigos científicos
RIBEIRO, V. V. et al. Oysters and mussels as equivalent sentinels of microplastics and natural particles in coastal environments. Science of the Total Environment. v. 874. mai. 2023.
PEGADO, T. et al. Ingestion of microplastics by Hypanus guttatus stingrays in the Western Atlantic Ocean (Brazilian Amazon Coast). Marine Pollution Bulletin. v. 162. out. 2020.
CARVALHO, D. G. e BAPTISTA NETO, J. A. Microplastic pollution of the beaches of Guanabara Bay, Southeast Brazil. Ocean & Coastal Management. v. 128, p. 10-7. ago. 2016.
ALVES, V. E. N. e FIGUEIREDO, G. M. Microplastic in the sediments of a highly eutrophic tropical estuary. Marine Pollution Bulletin. v. 146, p. 326-35. set. 2029.
NOBRE, R. C. et al. Effects of microplastics associated with triclosan on the oyster Crassostrea brasiliana: An integrated biomarker approach. Archives of Environmental Contamination and Toxicology. v. 79, p 101-10. 11 abr. 2020.
NOBRE, R. C. et al. Combined effects of polyethylene spiked with the antimicrobial triclosan on the swamp ghost crab (Ucides cordatus; Linnaeus, 1763). Chemosphere. v. 304, p. 135-69. out. 2022.
GOEHLER, L. O. et al. Relevance of tyre wear particles to the total content of microplastics transported by runoff in a high-imperviousness and intense vehicle traffic urban area. Environmental Pollution. v. 341. dez. 2022.
MORUZZI, R. et al. Stormwater detention reservoirs: An opportunity for monitoring and a potential site to prevent the spread of urban microplastics. Water. 14 jul. 2020.
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