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Livros

O bê-á-bá das mãos

Pela primeira vez no Brasil, a linguagem dos surdos é sistematizada em dicionário

Um grupo para formar a palavra amigo: falta de conhecimento reduz possibilidade de diálogo

JJ.EISTER/AEUm grupo para formar a palavra amigo: falta de conhecimento reduz possibilidade de diálogoJJ.EISTER/AE

Novas perspectivas de comunicação e integração foram abertas para os deficientes auditivos com a documentação e sistematização precisa da Língua de Sinais Brasileira (Libras), em um trabalho que levou seis anos para ser concluído por uma equipe de 14 pesquisadores do Laboratório de Neuropsicolingüística Cognitiva Experimental, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP), coordenados pelo Prof. Dr. Fernando César Capovilla.

Os 2 milhões de surdos do país, que tem um total de 6,8 milhões de deficientes auditivos, bem como os profissionais de diferentes áreas que trabalham com eles, têm nos dois volumes do Dicionário Enciclopédico Ilustrado Trilíngüe da Língua de Sinais Brasileira, recentemente lançados pela Editora da Universidade de São Paulo (Edusp) com apoio da FAPESP, um instrumento de ensino e aprendizado da libras e da escrita visual direta de sinais sign-writing até então inédito no Brasil. Desde o início do projeto a FAPESP financiou pesquisadores do projeto com bolsas de iniciação científica, mestrado, doutorado e pós-doutorado. O sign-writing é um sistema desenvolvido na década de 70 nos Estados Unidos, com o qual os surdos escrevem cartas ou livros e que é usado em todos os países do mundo.

Segundo Capovilla, o fato de o projeto do dicionário ter envolvido o setor público, por meio de verbas da FAPESP e do envolvimento de uma universidade, o terceiro setor, pela Fundação Vitae, e o setor privado, por meio da Brasil Telecom, mostra o quanto foi necessária a união e a cooperação de ouvintes e surdos para a concretização desse importante instrumento pedagógico para a comunidade de deficientes auditivos.

“O nível de leitura média dos 2 milhões de surdos do país é o de uma criança de nove anos, que cursa a terceira série do ensino fundamental. Grande parte desse problema reside no fato de que eles não dispunham de nenhum material didático para serem alfabetizados, não havia uniformização no uso de sinais, que eram muitas vezes diferentes, dependendo de quem os ensinasse. Com o dicionário, esse problema foi resolvido”, ressalta o coordenador do projeto.

Apresentado pelo médico neurologista Oliver Sacks, um dos mais reconhecidos estudiosos de ciências cognitivas do mundo, o dicionário é uma obra de peso em todos os sentidos: os dois tomos têm 9.500 verbetes, 1.620 páginas e pesam 6,5 kg. Sacks, autor do livro Vendo Vozes: Uma Jornada pelo Mundo dos Surdos , destaca em seu texto a importância da criação de uma linguagem própria pelos surdos e a efetiva contribuição dada pelo dicionário para a constituição da libras – que tem, como todas as demais línguas de sinais do mundo, gramática e léxico próprios.

A metodologia empregada no trabalho foi bastante laboriosa e envolveu um sem-fim de idas e vindasdo grupo depesquisadores à Federação Nacional de Educação e Integração dos Surdos (Feneis). O esforço de colaboração entre ouvintes e voluntários informantes, surdos que fornecem os sinais de sua língua, foi constante. “Em cada uma das reuniões os pesquisadores ouvintes levavam um conjunto de sinais aos surdos. Esses sinais eram debatidos entre os surdos até que se chegasse à forma mais exata para cada um deles. Nós então voltávamos ao laboratório para transformar o sinal em ilustrações, em definições semânticas, em classificações gramaticais, em sign-writing. E então encontrávamos com eles de novo para que nos dessem opiniões e, quando necessário, fazíamos as alterações indicadas”, conta Capovilla.

Crianças aprendem a usar os sinais na Escola de Educação Básica Anne Sullivan de São Caetano do Sul

EDUARDO CÉSARCrianças aprendem a usar os sinais na Escola de Educação Básica Anne Sullivan de São Caetano do SulEDUARDO CÉSAR

Emoções
O dicionário sistematiza pela primeira vez, com riqueza e profusão de detalhes como movimentos das palmas das mãos, posições dos ombros e movimentos, os sinais pelos quais os surdos se comunicam e conseguem expressar a imensa gama de emoções e pensamentos humanos.

“Nosso dicionário tem esse mérito: de ter feito pela primeira vez a documentação pictográfica da língua de sinais brasileira, que representamos por meio de ilustrações da aparência física dos sinais, com a descrição completa, em português, da forma da mão, da orientação da palma, do movimento, da expressão facial envolvida. E também da escrita dos sinais usando esse sistema, a ortografia chamada sign-writing. Escrevi um capítulo em colaboração com a inventora desse sistema na década de 70, que ficou muito satisfeita em ver que pela primeira vez o sign-writing estava sendo usado para documentar uma língua totalmente virgem, a libras”, destaca o professor.

O sistema de escrita é como o alfabeto fonético internacional. Possibilita ao leitor pronunciar ou sinalizar a palavra, mesmo que não saiba o que significa. Como os ouvintes conseguem recriar o som com o uso do alfabético fonético, o surdo recria o sinal com o sign-writing. Mas as novidades apresentadas pelo dicionário não param por aí. Como indica o próprio título, os dois volumes se preocupam também com a língua mais falada internacionalmente nos dias de hoje: o inglês.

No corpo principal do dicionário, existem os verbetes em inglês e em português, seguidos de ilustrações na parte superior e textos na inferior. Por sua vez, as ilustrações mostram o significado do sinal, a composição quirêmica dele, isto é, a forma como é representado, e a escrita visual direta do sinal em sign-writing. Os textos que acompanham as ilustrações vêm em português e em inglês, fornecendo ainda informações como definição lexical, classificação gramatical e exemplos.

Exportação
Há também um thesaurus inglês-português, que lista os 9.500 verbetes nos dois idiomas. O leitor consulta a palavra em uma ou outra língua e depois pode procurar o sinal correspondente no corpo central do dicionário. Com esse recurso, os surdos que sabem inglês e não conhecem a libras podem se comunicar com os surdos brasileiros, bem como esses podem ler em inglês até mesmo a partir dos sinais. “Essa parte ajudou muito no sucesso internacional do dicionário, que foi exportado para vários países do mundo desde essa primeira edição, de 5 mil exemplares, que já foi praticamente vendida”, diz Capovilla.

Claro que introduzir os usuários e profissionais ligados à área num material tão rico requer cuidadosa apresentação, que é feita nos três primeiros capítulos do dicionário. A introdução à estrutura da obra mostra como obter informações em detalhes sobre a composição quirêmica dos sinais, o significado deles, o uso pragmático dos sinais na comunicação e como fazer a escrita visual direta. A soletração digital de letras e números em libras e como ler e escrever os sinais são tópicos também analisados e explicados.

CD-ROM
O dicionário contém um índice semântico, que lista categorias principais e temáticas de todos os sinais. Essa parte da obra permite ensinar e aprender língua de sinais por campo semântico. “Suponhamos que eu queira dar aula por temas: economia e finanças, artes e cultura, profissões e trabalho. No dicionário, tenho todos os sinais que dizem respeito a profissões e profissionais, tudo indexado, procedimentos trabalhistas, como as atividades são, o que os profissionais fazem. Do mesmo modo com outros temas, o que inquestionavelmente facilita o processo pedagógico”, declara o professor e psicólogo.

Os capítulos seguintes, sobre educação e tecnologia em surdez, discutem as diferentes abordagens pedagógicas do problema da ausência de audição – oralismo, comunicação total e bilingüismo – questionando as bases sobre que se assentam e mostrando prós e contras de cada um deles. O implante coclear, uma das técnicas empregadas para transformar surdos em ouvintes e falantes, derivada do oralismo, e os sistemas computadorizados de sinais, que derivam do bilingüismo, são igualmente analisados.

Propondo-se a fugir das regras “audiocêntricas”, o dicionário em breve ganhará uma versão em CD-Rom que propiciará aos surdos buscarem a informação que precisam por meio de outros sistemas que não sejam em ordem alfabética, fundamentalmente utilizada pelos ouvintes e por dicionários, em papel, de línguas de sinais no mundo todo. De acordo com Capovilla, ao estudar o surdo, compreende-se como se processa a arquitetura cognitiva, como a cognição se estrutura na ausência da informação auditiva. Ele defende veementemente que as crianças surdas devem ler e escrever alfabeticamente depois de ter aprendido sinais.

“Primeiro ela aprende sinais porque senão é privada de linguagem. Se a criança surda não for imersa em sinais, isso afetará a organização do cérebro, as coisas ficam muito concretas. Quando vamos para a língua de sinais notamos uma abstração extraordinária, o surdo é capaz de abstrair, existe poesia e teatro”, destaca o coordenador do projeto. Ele afirma que as crianças surdas beneficiam-se muito com o lançamento do dicionário, porque, se elas vêem o sinal e não sabem o que significa, simplesmente olham a ilustração. O dicionário começa a ensinar a criança com sinais a partir de um ano e meio de idade, alfabetizando-a primeiramente em libras, para só depois ensinar-lhe a língua escrita.

Sign-writing
“Aprender a língua de sinais desde a mais tenra idade, com todo mundo sinalizando na escola (que sempre deve ser especial, só para surdos), faz com que a criança, na hora de ser alfabetizada o seja em português, mas sempre tendo a língua dos sinais como linguagem nativa. A criança pensa em sinais e aí ela aprende a ler e escrever em português, faz a ponte entre as duas línguas. O sign writing, sistema de leitura escrita visual direta, parte de sinais e por isso mesmo desenvolve a cognição da criança, fazendo com que ela aprenda a ler e a escrever melhor”, explica Capovilla. Para ele, a idéia de que a criança surda deva falar é equivocada, porque um número muito pequeno de surdos que passaram pelo oralismo consegue articular de modo inteligível.

Destes, um número ainda menor articula normalmente as palavras, já que se sentem constrangidos. Eles ficam sujeitos à leitura labial no mundo dos ouvintes. Mas apenas 20% dos sons são visíveis e passíveis de serem interpretados pelo surdo. “Esse dicionário, documentando pela primeira vez a língua de sinais, resgata a cidadania dos surdos, permite a educação de suas crianças, a alfabetização direta em sinais, a partir de menos de dois anos de idade, em português e inglês.

E a brasilidade é o melhor retorno que a universidade pode dar para a cultura nacional, para a sociedade, para compartilharmos um Brasil diferente”, ressalta Capovilla. Ele continua: “A FAPESP tem uma abertura muito grande para projetos sociais. Se publicamos em português e resolvemos o problema dos surdos no Brasil isso é importantíssimo, pois temos carências enormes”, completa o pesquisador.

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