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Pesquisa na quarentena

“Pandemia tornou a forma de trabalhar essencialmente colaborativa”

O virologista José Luiz Proença Módena, da Unicamp, se uniu a grupos com diferentes expertises para dar respostas rapidamente

José Módena (à frente no centro, com máscara de dinossauros) com sua equipe no laboratório

Arquivo pessoal

Coordeno o Laboratório de Estudos de Vírus Emergentes, o Leve, na Universidade Estadual de Campinas [Unicamp]. Antes da pandemia, estudávamos o mecanismo pelo qual determinados vírus – em especial aqueles transmitidos por insetos, os arborvírus – causam doenças. Nosso foco eram alguns vírus da Amazônia, como o oropouche e o mayaro, que provocam doenças febris exantemáticas [com erupções na pele], além dos vírus da dengue, zika e chikungunya. Muitos estudos eram feitos com camundongos nocaute, que não expressam determinados genes essenciais para a resposta do organismo ao vírus. Usamos essa estratégia para compreender quais componentes da resposta imunológica controlam a infecção.

O Leve é o primeiro laboratório de nível de biossegurança 3 (NB3) da Unicamp necessário para trabalhar com organismos altamente patogênicos. Em 2015, quando retornei de um estágio de pós-doutorado na Universidade de Washington em Saint Louis, nos Estados Unidos, e me estabeleci na Unicamp, não havia ali um laboratório desse tipo. Com apoio da FAPESP, consegui montar um laboratório pequeno, de cerca de 25 metros quadrados, que hoje é o único espaço na universidade no qual se pode manipular o vírus Sars-CoV-2. Para ser classificado com esse nível de biossegurança, o laboratório deve ter pressão atmosférica negativa. Isso significa que a pressão é menor dentro do que fora do laboratório, para impedir a saída do ar contaminado. Antes de voltar à atmosfera, o ar passa por um sistema de filtros que retém as partículas virais. Além disso, lixo e esgoto são descontaminados antes de sair do laboratório. Para trabalhar ali, é preciso estar paramentado com máscara N95 ou respirador, macacão de corpo inteiro, além de viseira e capacete, quase como um astronauta. Nos laboratórios de nível de biossegurança 4, o mais alto que existe, não se respira nem o ar do ambiente. Mangueiras injetam ar externo no interior da roupa, que cobre todo o corpo. 

Quando o projeto do Leve foi aprovado, no início de 2017, eu pensava em trabalhar com os vírus chikungunya e oropouche, que então eram classificados como de nível 3 de risco – em laboratório, eles podem ser transmitidos por aerossol e não eram endêmicos na região Sudeste do país. O oropouche tem circulação restrita à Amazônia, mas causa uma infecção que pode evoluir para quadros neurológicos, o que nos fazia ter um zelo maior. Quando o laboratório ficou pronto, no final de 2018, a classificação desses vírus havia mudado para nível 2 no Brasil. Tínhamos um laboratório NB3, mas, naquele momento, não precisávamos mais desse nível de segurança. Pouco depois, porém, chegou o novo coronavírus e mostrou a utilidade de um espaço como aquele.

Em março, logo depois que o laboratório recebeu amostras do novo coronavírus enviadas pelo grupo do professor Edison Durigon, da Universidade de São Paulo [USP], a Unicamp encerrou as atividades presenciais. Foi a primeira universidade pública do estado a parar. Vários docentes passaram, então, a negociar com a instituição a criação de uma força-tarefa para dar uma resposta à pandemia em nível regional. 

A primeira necessidade era estabelecer um teste para diagnosticar a infecção. Minha equipe e eu iniciamos a propagação do vírus em laboratório para extrair material genético que pudesse servir de parâmetro de comparação com o das amostras dos pacientes e começamos a treinar o pessoal do laboratório de patologia clínica do hospital de clínicas da Unicamp para que realizasse o diagnóstico, inicialmente apenas para o corpo clínico e os pacientes internados na universidade. Alocamos verbas de pesquisa que tínhamos em mãos para criar nosso método de diagnóstico e implementá-lo no hospital. Em paralelo, com uma doação de R$ 2,6 milhões do Ministério Público do Trabalho, começamos a montar um laboratório de diagnóstico de alto desempenho para realizar testes em massa na população de Campinas e região. Muitos pesquisadores colaboraram cedendo equipamentos. Hoje, esse laboratório realiza de 2 mil a 3 mil testes por dia, atendendo quase metade dos testes que são aplicados por dia na população do estado. Somando os dois laboratórios, já fizemos na Unicamp mais de 70 mil testes para infecção por coronavírus.

Em parceria com Rafael Elias Marques, do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais, o CNPEM, e outros pesquisadores, começamos a trabalhar com outra necessidade imediata: a identificação de compostos capazes de combater o vírus que pudessem se tornar disponíveis rapidamente para pacientes graves. O grupo do CNPEM realizou uma triagem computacional de moléculas conhecidas e já testadas em seres humanos que pudessem ter ação antiviral e chegou a algumas dezenas. No Leve, fizemos o passo seguinte. Testamos a capacidade de compostos de proteger da ação do vírus uma linhagem de células de macaco altamente infectável. Além de não terem defesa contra o vírus, essas células, uma vez infectadas, apresentam uma alteração morfológica que pode ser observada facilmente ao microscópio comum. Esse efeito permite verificar facilmente a capacidade de um composto de reduzir ou bloquear a ação do vírus.

Partimos de aproximadamente 100 moléculas e chegamos a três ou quatro que apresentaram um bom efeito protetor nos testes in vitro. Esses compostos foram depois testados em células humanas. Um dos que mostraram uma ação interessante contra o coronavírus nessa fase inicial começou a ser testado em pacientes com Covid em um estudo financiado pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações [ainda não há resultados publicados do estudo]. Atualmente, estamos concluindo a validação dos testes de alguns desses compostos em células humanas. O fato de um composto funcionar em um modelo de células não significa que vai ser eficaz no organismo humano, pois há diferenças muito grandes.

Também colocamos em prática uma segunda estratégia: testar em células a ação de milhares de compostos disponíveis em bibliotecas comerciais e que podem conter compostos ainda não validados para uso humano. Usando um sistema robotizado do CNPEM, partimos de 1.600 compostos e chegamos a quase duas dezenas com algum potencial de atuar contra o Sars-CoV-2. No Leve, essas moléculas estão passando por estudos de validação com células humanas. Nesse caso, no entanto, os compostos que se mostrarem mais promissores ainda precisarão ser submetidos a testes de toxicidade e eficácia em animais, etapa que deve ser realizada na USP em Ribeirão Preto, antes de poderem ser avaliados em seres humanos.

Entrevista: José Luiz Proença Módena
     

Na sequência desses testes, começamos a pensar em obter informações sobre a circulação do vírus na população. Por causa da estrutura de testagem montada, tínhamos uma situação privilegiada, com informações sobre os casos de Covid-19 da região de Campinas. Sequenciamos o material genético viral de 91 amostras e fomos convidados a colaborar com um grande estudo da evolução e disseminação do coronavírus no Brasil, coordenado por Nuno Faria, da Universidade de Oxford, no Reino Unido, e Ester Sabino, da USP. 

O resultado, publicado em setembro na revista Science, mostra que 108 variantes do vírus entraram no Brasil entre fevereiro e março e 18 linhagens, muitas das quais pertencentes a três grupos de origem evolutiva comum, estabeleceram-se eficientemente no país. Foi possível identificar duas fases de dispersão. A primeira ocorreu entre o final de fevereiro e o início de março, quando começaram as medidas de distanciamento e isolamento social. Nela, cada pessoa conseguia transmitir o vírus para outras quatro, principalmente nos grandes centros urbanos com aeroportos com conexões internacionais importantes, como São Paulo, Rio de Janeiro e Fortaleza. A partir do momento em que se restringem os voos internacionais e adotam-se medidas de isolamento, o vírus deixa de entrar e passa a se espalhar pelo interior do país por meio de viagens longas, de carro ou avião. Nesse momento, a taxa de transmissão cai: cada pessoa infectada contamina 1,3 ou 1,4 indivíduo. Depois desse trabalho, continuamos colaborando com o grupo de Nuno Faria para entender o padrão de disseminação bairro a bairro em Campinas.

Com colaboradores da Unicamp, começamos a investigar alguns dos mecanismos que podem tornar as pessoas mais suscetíveis a desenvolver as formas graves de Covid-19. Sabe-se que as pessoas com diabetes correm mais risco de apresentar quadros graves. Com o grupo de Pedro Moraes Vieira, estudamos como os níveis de açúcar no sangue podem influenciar a replicação do vírus. Em um trabalho publicado na Cell Metabolism, vimos que o aumento no nível de glicose permite ao vírus se multiplicar mais, porque esse açúcar ativa uma via bioquímica que favorece a reprodução do Sars-CoV-2. Compostos que inibem essa via talvez possam dificultar o espalhamento do coronavírus no organismo.

Em outro trabalho colaborativo, coordenado por Daniel Martins de Souza, do Laboratório de Neuroproteômica da Unicamp, estamos mostrando que o coronavírus infecta diferentes tipos de células cerebrais, como os neurônios e, principalmente, os astrócitos. Nos seres humanos, ainda não se sabe como o vírus chega ao cérebro. Alguns grupos suspeitam que seja pelo sistema olfativo, enquanto outros imaginam que células infectadas possam migrar até o sistema nervoso central. Com outras equipes estamos pesquisando como a microbiota intestinal influencia a infecção e quais características das pessoas obesas favorecem a replicação do vírus.

A epidemia causou um impacto grande na rotina do laboratório e na forma de trabalhar, que se tornou essencialmente colaborativa, reunindo grupos com diferentes expertises para dar respostas rapidamente. Nosso laboratório é o único da universidade com o nível de segurança necessário para trabalhar com o coronavírus e, por esse motivo, abrimos o Leve para auxiliar outros grupos. Hoje 80% dos experimentos que realizamos é para outras equipes. Como ali se lida com material biológico com alto risco de infecção, é preciso estar bem treinado para realizar os experimentos. Em março, combinei com minha equipe que pelos meses seguintes nossa tarefa seria fornecer suporte para outros grupos de pesquisa. Nesse período, quem quisesse continuar frequentando o Leve teria de trabalhar com o coronavírus – das outras linhas de pesquisa, mantivemos só o essencial, como algumas linhagens de animais transgênicos. Estabeleci, ainda, duas condições. Durante a pandemia, eles não poderiam visitar os pais e parentes idosos, para não correr o risco de transmitir-lhes o vírus. Eles também teriam de conseguir ir à universidade sem usar transporte público. Dos 12 integrantes, 11 toparam. Todos nos testamos de tempos em tempos e até o momento ninguém foi infectado.

Para organizar o fluxo de experimentos, definimos que cada integrante da equipe tem de trabalhar em sintonia fina com um representante de cada grupo externo. Também criamos uma agenda semanal à qual os colaboradores têm acesso para reservar tempo para os experimentos. O laboratório tem uma área NB2 e outra NB3. Trabalhamos em turnos alternados em cada uma delas. Por razões de segurança, ninguém pode permanecer mais de seis horas na sala NB3.

Antes do início da pandemia, nosso laboratório nunca havia trabalhado com vírus respiratório, transmitido por gotículas dispersas pelo ar. Por essa razão, no início, apenas eu e outros dois professores com experiência em virologia, o Rafael Elias Marques e a Fabiana Granja, pesquisadora da Universidade Federal de Roraima que está passando um período sabático na Unicamp, entrávamos no NB3 para realizar os experimentos. A partir do momento em que vimos que era seguro e nos sentimos confortáveis, passamos a treinar os alunos para trabalhar com o coronavírus. Em setembro, começamos gradualmente a retomar as outras linhas de pesquisa, mas durante algum tempo vamos manter os estudos com o coronavírus.

Nos primeiros meses, eu ia ao laboratório todos os dias. Nos últimos tempos, passei a revezar com minha mulher, que é pesquisadora da área de hematologia, os dias que frequentamos a universidade. Assim, conseguimos dividir a tarefa de cuidar da Alice, nossa filha de 4 anos. Mesmo assim, estou sempre no laboratório quando é preciso realizar experimentos que entram madrugada a dentro.

O coronavírus nos obrigou a trabalhar em parceria com outros grupos e a aprender metodologias de pesquisa de outras áreas. Também levou as pessoas a tirar a generosidade da gaveta e a reduzir a competitividade. Tenho notado isso nos grupos com os quais trabalho e tem funcionado. Estamos todos remando para o mesmo lado.

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