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Bioquímica

O efeito da tripla hélice

DNA com três fitas pode regular expressão de certos genes

Tripla hélice (em rosa) identificada em cromossomo de mosca: modulação de genes

eduardo gorabTripla hélice (em rosa) identificada
em cromossomo de mosca: modulação de geneseduardo gorab

Há quatro anos, o pesquisador Eduardo Gorab, do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (IB-USP), desenvolveu um método que usava um antigo anticorpo para reconhecer um tipo raro de estrutura presente no material genético de moscas das espécies Rhynchosciara americana e Drosophila melanogaster: moléculas de DNA compostas de três fitas entrelaçadas de bases nitrogenadas, em vez da tradicional dupla hélice, a conformação padrão do ácido desoxirribonucleico. A inusitada tripla hélice se encontrava na heterocromatina, região cromossômica em que o DNA permanece compactado ao lado de proteínas e de RNA, o ácido ribonucleico. Por isso, quando identificou a tripla hélice no interior dessa região, Gorab suspeitou que ela pudesse estar associada ao processo de desativação de genes, de comum ocorrência na heterocromatina. No entanto, um estudo publicado em 27 de janeiro deste ano na revista científica Nature Structural & Molecular Biology pelo brasileiro e colegas da Europa e do Japão sugere novas possibilidades para o papel das triplas hélices no núcleo celular.

Com a ferramenta molecular criada por Gorab, o grupo internacional de pesquisadores encontrou na cromatina de embriões de camundongos triplas hélices formadas por cadeias de bases de conformação ligeiramente diferente da identificada no material genético das moscas. Em vez de três fitas espiraladas de DNA, as células dos animais apresentavam duas cadeias de DNA ligadas a uma de RNA. Tais triplas hélices foram identificadas num estágio bastante específico e inicial do processo de desenvolvimento do embrião, quando este tinha somente de duas a oito células. Nessa etapa da embriogênese, a presença das triplas hélices parecia aumentar a expressão de certos genes importantes para essa fase do processo. Em estágios mais avançados do embrião, quando esse conjunto de genes não era mais ativado, a fita de RNA acoplada às duas de DNA também não era mais detectada.  “In vivo, também vimos que, quando estimulávamos a produção da tripla hélice, a expressão desses genes aumentava”, afirma Gorab. “Os resultados do trabalho não são uma prova direta, cabal, de que isso ocorra, mas reforçam essa correlação.”

Segundo uma das autoras do estudo, a pesquisadora Maria-Elena Torres-Padilla, do Instituto de Genética e de Biologia Molecular e Celular (IGBMC), de Estrasburgo, França, o possível efeito regulatório da tripla hélice se manifesta nesse estágio do desenvolvimento embrionário sobre uma arquitetura atípica da cromatina. Por definição, a cromatina apresenta duas formas distintas: uma ativa, a eucromatina, em que o DNA está acessível e pode ser expresso por proteínas regulatórias; e uma inativa, a mencionada heterocromatina, na qual o material genético está compactado e não pode ser utilizado.
No trabalho com as células embrionárias dos roedores, a cromatina se encontrava em um estágio atípico, intermediário entre suas duas formas, mas que podia ser acessado e regulado pela tripla hélice. “Estávamos procurando por um mecanismo regulatório ligado ao RNA que teria impacto sobre a ‘estrutura’ ou a ‘conformação’ da cromatina”, explica Maria-Elena. “Como o RNA forma uma tripla hélice com o DNA, ele era um bom candidato a desempenhar esse papel.”

Infográfico ana paula campos ilustração gabriel bitar

Embora o fenômeno da formação de moléculas de DNA com mais de duas fitas de ácidos nucleicos seja estudado desde a década de 1950, os bioquímicos passaram a ter uma melhor compreensão dos mecanismos que podem levar ao surgimento desse tipo de material genético menos convencional apenas nos últimos 10 ou 15 anos. “As triplas hélices tendem a se formar em regiões do genoma em que ocorrem seguidas repetições de uma base, embora haja também outras possibilidades”, diz Gorab. Ou seja, trechos do DNA ricos em sequências com um único nucleotídeo, como TTTTT (para a base timina) ou AAAAA (adenina), são candidatos a abrigarem hélices com mais de duas fitas. Como cerca de metade do genoma de mamíferos é composto por sequências repetitivas, formadas por elementos móveis (transposons e  retrotransposons) que podem mudar de lugar ou se autocopiar ao longo do genoma, a presença desse tipo de estrutura não deve ser tão rara assim.

DNA quádruplo
Um DNA com três fitas pode se formar de mais de uma maneira.  No estudo de Gorab com as moscas, a tripla hélice se originou do despareamento das duas fitas que compõem a molécula padrão de DNA a partir de um certo ponto da sequência. Um pedaço do DNA permanece com as duas cadeias de bases nitrogenadas pareadas enquanto outro apresenta as fitas soltas. Uma dessas fitas soltas, no entanto, se dobra e se liga ao trecho de DNA que havia mantido as duas cadeias pareadas. Dessa forma, surge uma molécula de ácido desoxirribonucleico com três fitas, todas originárias de uma única molécula. Esse é o DNA triplo intramolecular.

Há também o DNA triplo intermolecular, quando uma das fitas é cedida por uma segunda molécula de DNA. Nesse caso, a tripla hélice tem duas cadeias vindas de um DNA convencional mais uma fita que se desprendeu de outro DNA. No trabalho com os camundongos em que Maria-Elena usou o anticorpo criado por Gorab, a terceira fita do DNA foi cedida por uma molécula de RNA, que normalmente apresenta apenas uma cadeia de bases. “Nossa metodologia pode identificar várias formas de ácidos nucleicos triplos”, diz o pesquisador da USP.

Estrutura de DNA quádruplo: possível ligação com o câncer

jean paul rodriguez e giulia biffiEstrutura de DNA quádruplo: possível ligação com o câncerjean paul rodriguez e giulia biffi

Não há evidências de que a formação de estruturas genéticas ainda pouco conhecidas, como a tripla hélice, esteja relacionada necessariamente com o aparecimento de doenças. Em tese, elementos que atuam como moduladores da atividade de genes podem trazer efeitos tanto positivos como negativos. Um estudo publicado em janeiro deste ano na revista Nature Chemistry identificou hélices quádruplas de DNA, outra conformação pouco usual dessa molécula, em células humanas com câncer. A descoberta pode ser útil para a compreensão do processo de aparecimento dos tumores e talvez até para o desenvolvimento de novas abordagens terapêuticas.

Com quatro fitas entrelaçadas, esse tipo de DNA se forma em trechos do genoma ricos na base nitrogenada guanina, representada pela letra G. Por isso, recebe o nome de quadruplexos-G ou quartetos-G. “A pesquisa indica que os quaduplexos ocorrem com maior frequência em genes de células que estão se dividindo rapidamente, como as de câncer”, disse, na ocasião, Shankar Balasubramanian, da Universidade de Cambridge, principal autor do estudo. “Para nós, isso reforça fortemente um novo paradigma, o de usar essas estruturas com quatro fitas como alvos para tratamentos personalizados no futuro.”

Projeto
Aspectos moleculares da heterocromatina em espécies da família Sciaridae (Diptera: Nematocera) (2008/50653-2); Modalidade Linha Regular de Auxílio a Projeto de Pesquisa; Coord. Eduardo Gorab – IB/USP; Investimento R$ 165.485,11 (FAPESP).

Artigo científico
FADLOUN, A. et al. Chromatin signatures and retrotransposon profiling in mouse embryos reveal regulation of LINE-1 by RNA. Nature Structural & Molecular Biology. 27 jan. 2013.

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