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COVID-19

O quebra-cabeça da imunidade

Questões cruciais sobre a resposta do sistema imunológico contra o novo coronavírus permanecem em aberto

Imagem de microscopia eletrônica colorizada mostra uma célula humana fortemente afetada por partículas virais do Sars-CoV-2 (em amarelo)

NIAID

Oito meses depois de o vírus Sars-CoV-2, causador da Covid-19, ter sido identificado pela primeira vez em humanos na cidade de Wuhan, na China, pesquisadores e médicos ainda tentam montar o grande quebra-cabeça que indique como o sistema imunológico responde ao patógeno. Saber exatamente como as pessoas infectadas combatem e eliminam o vírus e por quanto tempo ficam protegidas de uma possível reinfecção é importante para o desenvolvimento de vacinas, medicamentos e até para as políticas públicas que determinam a necessidade de medidas de distanciamento social, quarentenas e lockdowns.

Aos poucos, as numerosas pesquisas relacionadas à Covid-19 têm fornecido peças ao jogo. O quadro, porém, segue incompleto. Até agora não há nenhum caso comprovado, que não suscite nenhuma dúvida, de reinfecção – sinal para os cientistas de que alguma proteção há para aqueles que já se infectaram. O grau dessa imunidade e a sua duração permanecem incógnitas.

A missão de completar o quebra-cabeça fica mais difícil dada a novidade representada pelo vírus e a complexidade do sistema imunológico humano – ora comparado a uma orquestra com diversos componentes, ora ao Exército com diferentes subdivisões e batalhões, ora a uma máquina com muitas engrenagens. O batalhão mais popular dessa força de defesa é formado pelos anticorpos, entre eles as conhecidas imunoglobulina G (IgG) e imunoglobulina M (IgM), identificados nos testes rápidos aplicados em farmácias e laboratórios (ver box). Anticorpos são proteínas dissolvidas no plasma sanguíneo e produzidos por linfócitos B. A defesa por anticorpos é chamada pelos médicos de imunidade humoral.

Pesquisas e inquéritos epidemiológicos em geral procuram por essas classes de anticorpos para verificar qual a porcentagem de determinado grupo populacional que já teve contato com o vírus. “Costumamos dizer que o IgG é quase como uma cicatriz imunológica, um sinal dizendo que um vírus passou por ali”, explica o médico imunologista Jorge Kalil, professor de Imunologia Clínica e Alergia da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP) e diretor do Laboratório de Imunologia do Instituto do Coração (InCor).

Um estudo chinês publicado em 18 de junho na revista Nature Medicine, no entanto, observou que 37 pessoas que comprovadamente haviam sido infectadas com o Sars-CoV-2, mas permaneceram assintomáticas, apresentaram níveis menores no sangue de IgG e de anticorpos neutralizantes (que impedem o vírus de entrar nas células) do que as que tiveram sintomas moderados, apesar de ficarem por mais tempo com níveis detectáveis de vírus que os sintomáticos. Além disso, dois ou três meses depois da infecção aguda, os níveis desses anticorpos caíram a um patamar que, em 40% dos casos de assintomáticos, se tornaram não detectáveis. No caso dos pesquisados com sintomas, 12,9% ficaram soronegativos. 

O resultado da pesquisa chinesa levantou dúvidas se pessoas com a forma leve da Covid-19 estariam então mais suscetíveis a uma reinfecção. Ainda não é possível esclarecer essa questão, dizem os especialistas. Uma possibilidade é a de que os testes não tenham conseguido detectar uma quantidade menor de anticorpos e eles, apesar da pouca quantidade, seriam eficientes o bastante para combater o vírus. De qualquer forma, segundo os autores do artigo, da Universidade Médica de Chongquing, os resultados contribuem para expor os riscos de usar passaportes de imunidade à Covid-19, como alguns governos cogitaram adotar, conferindo vantagens de mobilidade a pessoas que já tivessem se recuperado da infecção pelo vírus.

Léo Ramos Chaves Cientistas do Instituto de Tecnologia em Imunobiológicos (Bio-Manguinhos), do Rio de Janeiro, trabalham no desenvolvimento de uma vacina para o novo coronavírusLéo Ramos Chaves

“Associar a presença de anticorpos, do tipo IgG, a um passaporte de imunidade é uma questão que já caiu por terra”, considera a infectologista Nancy Bellei, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). “Observamos que muitos pacientes que contraíram a doença depois de algum tempo não têm mais IgG que reconheça os antígenos virais.” Para ela, que desenvolve pesquisas na área de vírus respiratórios há décadas, o resultado desse estudo na China não é exatamente uma surpresa, assim como outros que apontam na mesma direção, como um divulgado em meados de julho por pesquisadores do King’s College de Londres, na Inglaterra.

“Os vírus respiratórios classicamente não determinam uma imunidade permanente e as pessoas infectadas por eles não costumam manter os níveis de imunoglobulina positivos estáveis como logo após a infecção”, declara a pesquisadora. “A despeito de ser novo para a população humana e de apresentar características de patogenicidade em outros tecidos além dos respiratórios, o Sars-CoV-2 não deixa de se comportar e de ser classificado como um vírus respiratório”, ressalta. 

Mas níveis baixos ou mesmo ausência de IgG no plasma sanguíneo das pessoas já infectadas, mesmo que assintomáticas, indicariam que essas pessoas não têm nenhuma imunidade ao novo coronavírus? Muito provavelmente a resposta a essa pergunta é não, dizem infectologistas e imunologistas. Dois artigos recentes, publicados nos repositórios de preprints medRxiv e bioRxiv, apontam que parte dos indivíduos pode desenvolver uma forte resposta celular de linfócitos T específicos ao Sars-CoV-2 mesmo sendo soronegativa. Linfócitos são um tipo de célula de defesa do organismo.

O primeiro artigo, de autoria de cientistas da Universidade de Estrasburgo, na França, refere-se aos casos de sete famílias que tinham ao menos um de seus integrantes se recuperando da forma moderada da Covid-19. Seis de um total de oito parentes que depois desenvolveram sintomas da doença apresentaram respostas de células T, mas não anticorpos contra o novo coronavírus.

Léo Ramos Chaves Profissional da saúde coleta sangue para realização de teste sorológico rápido para Covid-19Léo Ramos Chaves

O segundo estudo, de pesquisadores do Instituto Karolinska, na Suécia, investigou a resposta de células T de memória em diferentes grupos de pessoas: doadores de sangue saudáveis, que doaram antes da pandemia ou durante; parentes que dividiam a casa com indivíduos convalescentes e expostos à doença durante a fase dos sintomas; e pessoas que estavam em fase de recuperação da doença, que haviam tido sintomas leves/nenhum sintoma ou a forma grave da Covid-19. Os cientistas também observaram uma resposta celular dos linfócitos T muito robusta mesmo sem a presença de anticorpos. 

“Os resultados desses estudos somados à inexistência de casos de reinfecção até agora nos dão certa tranquilidade de que é muito provável que tenhamos, ao menos durante algum período, certo grau de proteção. Quanto à duração dessa imunidade, só o tempo irá dizer”, destaca o infectologista Reinaldo Salomão, da Escola Paulista de Medicina da Unifesp, pesquisador responsável por um estudo apoiado pela FAPESP que vai investigar as respostas inflamatórias e imunológicas de pacientes com Covid-19 grave e moderada.

Salomão ressalta que um possível motivo para a não detecção de IgG nos testes sorológicos de indivíduos que se infectaram, tal qual demonstrado nas pesquisas realizadas até então, esteja relacionado aos próprios testes, que podem não ser tão sensíveis e específicos para o Sars-CoV-2. “Isso aconteceu também com o HIV. Agora estamos na quarta geração de testes para essa enfermidade e eles melhoraram muito.” 

Por outro lado, especialistas salientam que mesmo um teste positivo para IgG não significa necessariamente que o indivíduo esteja protegido contra o vírus, uma vez que o exame não deixa claro se foram produzidos ou não anticorpos neutralizantes, capazes de evitar que o novo coronavírus entre na célula humana. A presença no sangue de IgG, destacam especialistas, não está necessariamente relacionada à existência de anticorpos neutralizantes.

O primeiro estudo a mostrar a possibilidade de uma resposta celular humana vigorosa contra o novo coronavírus, de acordo com o imunologista Edecio Cunha-Neto, do InCor e FM-USP, foi publicado em maio na revista Cell por cientistas do Instituto de Imunologia de La Jolla, em San Diego, Califórnia, nos Estados Unidos. 

Entrevista: Edecio Cunha-Neto
     

Além de observar uma forte resposta celular a proteínas que simulavam o Sars-CoV-2 em um grupo de 20 adultos que se recuperaram da Covid-19, eles também viram que havia uma reação positiva de 40% das amostras de sangue retiradas em 2019, antes da disseminação da Covid-19, usadas no estudo como controle. Ou seja, havia uma resposta imune celular a peptídeos – fragmento de proteínas – que se assemelhavam aos peptídeos do novo coronavírus no sangue de pessoas que nunca haviam tido contato com o vírus.

“A única forma de explicar isso é que essas células T de memória nesses indivíduos apareceram depois de um contato com um patógeno muito parecido”, diz Cunha-Neto. “Esse patógeno existe: é o coronavírus endêmico ou sazonal, o que causa resfriado leve.” De acordo com o pesquisador, cerca de 50% da sequência das proteínas dos coronavírus endêmicos é idêntica ao Sars-CoV-2. “O trabalho da Universidade de Estrasburgo já havia observado uma reatividade intensa e frequente a coronavírus endêmicos em todos os parentes que contraíram a Covid-19 e em 80% das pessoas saudáveis testadas”, diz Cunha-Neto.

Em comentário publicado na Nature Reviews Immunology em 7 de julho, os cientistas Alessandro Sette e Shane Crotty, coautores do artigo da Cell, sustentam que mais de 90% da população humana é soropositiva para ao menos três dos quatro tipos de coronavírus endêmicos que circulam pelo mundo. E que a resposta cruzada de células T de memória seria capaz de interferir em resultados de vacinação, podendo levar, por exemplo, a uma resposta imune melhor ou mais rápida. Por outro lado, destacam os pesquisadores, pode ser um fator de confusão especialmente para os ensaios de fase 1 no desenvolvimento de vacinas. Isso porque os testes dessa fase são feitos com grupos menores de pessoas e o fato de os indivíduos terem ou não células com memória decorrentes do contato com coronavírus endêmicos poderia levar a diferentes conclusões.

Para tentar evitar a resposta cruzada e verificar se há mesmo uma imunidade celular específica e eficaz ao novo coronavírus, Cunha-Neto e seu grupo de pesquisa preparam um experimento no qual vão selecionar os peptídeos usados para verificar a resposta celular, separando as partes que são exclusivas ao Sars-CoV-2 dos trechos idênticos aos dos outros coronavírus. “Só assim poderemos dizer se há mesmo pacientes com Covid-19 soronegativos e com resposta celular específica ao Sars-CoV-2 e qual sua proporção”, diz o pesquisador. Se comprovado, isso pode indicar que avaliações de infectados/imunes somente usando testes de anticorpos subestimam o número real de infectados com o patógeno, sustenta Cunha-Neto.

“Enquanto a produção de grandes quantidades de anticorpos ocorre apenas antes da eliminação do vírus, e depois seus níveis se reduzem no sangue ou até ficam indetectáveis, as células T de memória persistem por décadas”, afirma. Ele explica que pacientes que contraíram a Síndrome Respiratória Aguda Grave (Sars) quase 20 anos atrás, causada pelo Sars-CoV-1, “primo” do Sars-CoV2, têm poucos anticorpos, mas quantidades consideráveis de linfócitos T de memória ao vírus original, que se ativam vigorosamente após novo contato com o antígeno. “Imagina-se hoje que a memória e a defesa de longo prazo contra o Sars-CoV-2 dependam muito dos linfócitos T. Assim, uma vacina eficaz teria que induzir a produção tanto de anticorpos neutralizantes, ou não, quanto de linfócitos T CD4+ e CD8+.”

Também no InCor, Kalil desenvolve pesquisa com 220 convalescentes que tiveram a doença e eliminaram o vírus. Ele estuda a resposta de anticorpos e de linfócitos T a fim de definir alvos específicos para o desenvolvimento de uma vacina brasileira. “Provavelmente vamos trabalhar em nosso imunizante com partículas semelhantes ao vírus, chamadas VLP. Estamos estudando para ver o que poderá induzir uma melhor memória imune”, afirma o especialista. “Não queremos usar a proteína inteira da espícula viral [as projeções que revestem o patógeno], mas tirar fragmentos para provocar uma resposta equilibrada de células de defesa T e B, produtoras de anticorpos.” Com sorte e muito trabalho, será uma peça a mais para ajudar na montagem do quebra-cabeça da imunidade contra o novo coronavírus.

Batalhão orquestrado
Entenda como o organismo reage quando é atacado por um patógeno desconhecido

A primeira resposta do sistema imunológico contra a infecção pelo Sars-CoV-2, assim como por novos vírus e bactérias, vem  da chamada imunidade inata, que é mais genérica e nasce com todo ser humano. “Se alguém tem uma resposta inata muito forte e elimina o vírus, ela nem vai ter sinal de que se infectou”, diz o imunologista Edecio Cunha-Neto, do Instituto do Coração (InCor).

Quando a imunidade inata não aniquila em poucos dias o patógeno, o organismo ativa a chamada imunidade adaptativa, que é mais específica e varia conforme as experiências do indivíduo com microrganismos patogênicos, gerando uma memória imune. A imunidade adaptativa envolve tanto anticorpos, produzidos pelas células ou linfócitos B – a chamada imunidade humoral –, quanto os linfócitos T, a imunidade celular. As primeiras a serem ativadas quando a inata não resolve a questão são as células T CD4+. “Quando isso ocorre, elas agem diretamente sobre o patógeno, ativam células T CD8+ citotóxicas ou ativam os linfócitos B”, diz Cunha-Neto. 

Os linfócitos T CD8 citotóxicos ativados pelas células T CD4+ tornam-se capazes de destruir as células já infectadas pelo patógeno, enquanto os anticorpos neutralizantes impedem a entrada do vírus nas células saudáveis. “Na maior parte dos casos, antes de ter um anticorpo específico para o vírus, tem-se uma célula T específica”, explica o pesquisador do InCor. Às vezes, o vírus é eliminado antes de qualquer produção de anticorpos, que levam cerca de 7 a 14 dias para aparecer.

Os anticorpos do tipo imunoglobulina M (IgM) são produzidos na fase aguda da infecção e os do tipo imunoglobulina G (IgG) aparecem depois, quando em tese a pessoa já estaria protegida – para cada patógeno diferente que ataca o organismo são produzidos anticorpos (IgG, IgM etc.) específicos para aquele invasor. Existem, ainda, três outras classes de imunoglobulina: IgA, IgE e IgD (ver infográfico).

Dependendo do tipo de vírus, os níveis de IgG permanecem detectáveis por meses ou anos. Mas, aparentemente, não é isso o que vem ocorrendo no caso do Sars-CoV-2 – algumas pesquisas apontaram que eles podem desaparecer em duas ou três semanas.

Em artigo ainda não revisto pelos pares publicado em junho na plataforma medRxiv, pesquisadores da Universidade Yale, nos Estados Unidos, descrevem os resultados de um estudo longitudinal nos quais acompanharam ao longo do tempo 103 pacientes positivos para a Covid-19, comparando com 108 indivíduos para controle, negativos para a doença, observando a resposta imunológica ao vírus e a trajetória clínica de cada um. 

As duas principais conclusões foram a de que um quadro clínico mais grave está associado não só à carga viral mais intensa e prolongada, mas a uma disfunção da resposta imune, que em um primeiro momento é mais lenta para controlar o Sars-CoV-2 e depois acaba ativando uma resposta inflamatória exagerada; e que há marcadores imunológicos presentes no sangue já na fase inicial da doença capazes de predizer a trajetória clínica.

“Isso poderá auxiliar no direcionamento do tratamento e de intervenções clínicas”, diz a imunologista brasileira Carolina Lucas, primeira autora do artigo, que atualmente faz pós-doutorado em Yale. “Esse estudo mostra que é importante não só focalizar no controle do vírus, mas também no controle da resposta inflamatória excessiva.”

Projetos
1. Estudo de coorte prospectiva para avaliação de aspectos clínicos, virológicos e de resposta do hospedeiro em pacientes com Covid-19 (nº 20/05110-2); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Reinaldo Salomão (Unifesp); Investimento R$ 143.100,20.
2. INCT 2014: Investigação em imunologia (nº 14/50890-5); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Jorge Elias Kalil Filho (USP); Investimento R$ 3.980.221,36.
3. Desenvolvimento de vacina anti-Sars-CoV-2 utilizando VLPs (nº 20/05146-7); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Gustavo Cabral de Miranda (USP); Investimento R$ 178.100,00.
4. Mapeamento de epítopos do vírus Sars-CoV-2 para linfócitos T e do receptor da proteína spike para linfócitos B (nº 20/05256-7); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Jorge Elias Kalil Filho (USP); Investimento R$ 154.865,00.

Artigos científicos
LONG, Q. et al. Clinical and immunological assessment of asymptomatic Sars-CoV-2 infections. Nature Medicine. 18 jun. 2020.
SEOW, J. et al. Longitudinal evaluation and decline of antibody responses in Sars-CoV-2 infection. medRxiv (preprint). 11 jul. 2020.
GALLAIS, F. et al. Intrafamilial exposure to Sars-CoV-2 induces cellular immune response without seroconversion. medRxiv (preprint). 22 jun. 2020.
SEKINE, T. et al. Robust T cell immunity in convalescent individuals with asymptomatic or mild Covid-19. bioRxiv (preprint). 29 jun. 2020.
GRIFFONE, A. et al. Targets of T cell responses to Sars-CoV-2 coronavirus in humans with Covid-19 disease and unexposed individuals. Cell. 14 mai. 2020.
LUCAS, C. et al. Longitudinal immunological analyses reveal inflammatory misfiring in severe Covid-19 patients. medRxiv (preprint). 27 jun. 2020.

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