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Ecologia

Orquídea recorre a armadilha para conduzir polinizador

Estruturas especializadas conduzem mosca por passagens onde o inseto promove a troca de pólen entre flores

O trajeto da mosca por dentro da flor ardilosa

João Custódio Cardoso / UFU

Uma cena do Cerrado brasileiro: uma mosca sobrevoa a vegetação em busca do local ideal para depositar as centenas de ovos que carrega no abdômen. Eis que se depara com uma flor repleta de afídeos, pequenos insetos conhecidos como pulgões, ingrediente único da dieta das larvas dessa mosca. Talvez a mosca nem tenha tempo de perceber que os afídeos são falsos, porque, assim que pousa para iniciar a oviposição, escorrega e despenca para dentro da flor. A descrição da armadilha de Phragmipedium vittatum foi publicada pela equipe liderada pelo biólogo João Custódio Cardoso, da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), na edição de fevereiro da revista Annals of Botany. Durante as observações, os pesquisadores identificaram principalmente duas espécies de moscas-das-flores: Allograpta exotica e Dioprosopa clavata, ambas da família dos sirfídeos.

A flor que engana as moscas, P. vittatum, é uma espécie de orquídea do Brasil Central, bastante visada por colecionadores e por isso ameaçada de extinção. O gênero Phragmipedium é um dos que abrigam espécies conhecidas como orquídeas-sapatinho, que se distinguem por uma modificação na pétala de baixo (labelo), que lhe dá um formato de bolsa ou sapato.

João Custódio Cardoso / UFU A orquídea-sapatinho é típica do Brasil CentralJoão Custódio Cardoso / UFU

As moscas-das-flores são consideradas excelentes polinizadoras de algumas plantas e também costumam ser usadas na agricultura em procedimentos de controle biológico de pragas, justamente pelo intenso apetite de suas larvas por pulgões que sugam a seiva de algumas plantas e podem danificar safras inteiras. Outra característica marcante desse grupo de moscas é que elas lembram abelhas, o que as protege, por exemplo, de ataques de aves.

Cardoso explica que, em geral, as orquídeas-sapatinho não fornecem aos insetos recursos como néctar ou óleos, mas os atraem com formas, cores e odores específicos. As moscas são atraídas tanto pelos pontinhos pretos das flores que imitam pulgões, o alimento para as larvas, quanto por características mais usuais que chamam a atenção desses insetos, como a cor amarela. Uma vez enganadas, as moscas realizam a polinização sem receber nada em troca. O percurso da polinização começa quando a orquídea chama a atenção da mosca que pode carregar aderidos às costas, como uma grande mochila, milhares de grãos de pólen de uma visita anterior.

João Custódio Cardoso / UFU Mosca Allograpta exotica, uma das duas espécies de mosca-das-flores detectadas no estudoJoão Custódio Cardoso / UFU

Após escorregar pelo amplo e viscoso labelo, a mosca tenta voltar pelo mesmo caminho e ganhar a liberdade, mas não consegue. O único caminho possível é atravessar o labirinto interno e sair por um dos dois minúsculos orifícios no topo da flor. Durante o esforço de se esgueirar pelo espaço apertado, ela deixa pólen no estigma (o órgão reprodutivo feminino da flor). Mais adiante, ela recolhe um novo pacote de pólen ao passar por uma das anteras (o órgão masculino), que poderá carregar para a flor seguinte. Da experiência, a mosca leva o prejuízo de tempo e energia. Frequentemente, deixa ovos pelo caminho, que são desperdiçados, uma vez que as larvas não encontram os pulgões necessários a seu desenvolvimento.

O grupo da UFU também descobriu que a superfície do tecido vegetal por onde a mosca escorrega é composta por células voltadas para baixo, em formato de telhado. Essa característica anula a capacidade de aderência das moscas, que depende de as garras de suas pernas se engancharem em superfícies rugosas. Essa região da flor é também coberta por mucilagem, uma substância viscosa. Nessas condições, as pequenas ventosas adesivas que as moscas têm distribuídas nas pernas não conseguem se prender. “Não é um ou outro atributo que garante que ela escorregue”, explica Cardoso. “A combinação dos dois dribla as adaptações da mosca.” A superfície do caminho de saída é revestida por tricomas (estruturas análogas aos pelos dos animais) nos quais a mosca se agarra, facilitando o caminho para fora.

Rodrigo Cunha/Revista Pesquisa FAPESP

Superfícies escorregadias e aderentes não são novidade em flores-armadilha e algumas plantas carnívoras, mas a observação é inédita em orquídeas. O caso de P. vittatum também é único por ser o primeiro mimetismo de afídeos relatado nas Américas. “Isso mostra que espécies ameaçadas de extinção podem guardar segredos incríveis, e devem ter a oportunidade de ser estudadas”, comenta o pesquisador.

Um crime perfeito?
Segundo os pesquisadores, é admirável que a evolução possa ter dado origem a uma interação na qual uma das partes não recebe nada em troca e ainda por cima pode perder a própria prole. Como poderia existir um encaixe, à primeira vista tão perfeito, entre as estruturas da orquídea e essas moscas?

O biólogo Anselmo Nogueira, da Universidade Federal do ABC (UFABC), estuda como interações ecológicas podem mudar o curso da evolução das plantas e explica que há um viés temporal no olhar humano sobre esses sistemas. Para ele, é necessário sempre levar em conta o saldo energético dessas interações. Ao longo do tempo evolutivo, o surgimento desse sistema depende do balanço entre custos e benefícios, que varia de acordo com as condições do ambiente.

João Custódio Cardoso / UFU Microscopia eletrônica permite enxergar o alto relevo dos falsos pulgões (à esq.) e, olhando mais de perto, as células escorregadias em forma de telhadoJoão Custódio Cardoso / UFU

“Isso que chamamos de condicionalidade do resultado da interação é um aspecto teórico mais recente, muito importante para os estudos das interações ecológicas, incluindo antagonismos e mutualismos”, afirma. “Por exemplo, um polinizador que busca alimento pode sair no prejuízo se gastar muito tempo e energia visitando uma flor que impede seu acesso ao recurso floral, em relação ao que aconteceria com outras espécies de planta. Esse raciocínio só faz sentido se no ambiente houver flores com pólen ou néctar mais acessível para esse visitante”, continua Nogueira. “Em um ambiente com escassez, a relação poderia valer a pena, pois, apesar do gasto energético, pequenas porções de pólen ou néctar poderiam fazer toda a diferença”, diz ele.

No caso da orquídea-sapatinho e das duas espécies de mosca-das-flores, é difícil imaginar em um primeiro momento que a evolução tenha mantido um comportamento tão custoso para o inseto caso as fêmeas escolham com frequência depositar os ovos na orquídea traiçoeira. Os custos, afinal, são altos demais: o sacrifício de prole e, ocasionalmente, a morte do próprio adulto quando não conseguisse passar pelo canal. Investigações mais profundas do significado evolutivo do “golpe do berçário da orquídea-sapatinho” dependerão de outros fatores a serem estudados. Entre eles: analisar a presença de outras espécies de plantas utilizadas pelas moscas; o número de vezes que uma mesma mosca insiste no engano até aprender com a experiência negativa e passar a depositar seus ovos em outra superfície; e a proporção de ovos perdidos em relação ao conjunto total de uma fêmea.

Artigo científico
CARDOSO, J. C. F. et al. The lady’s “slippery” orchid: Functions of the floral trap and aphid mimicry in a hoverfly-pollinated Phragmipedium species in Brazil. Annals of Botany. v. 131, n. 2, p. 275-86. 1º fev. 2023.

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