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Engenharia de Produção

Pague pelo usufruto

Sistema reúne produtos e serviços em estratégia comercial que elimina a venda do bem e gera oportunidades e novos desafios para a indústria

Podcast: Henrique Rozenfeld

 
     
Algumas empresas de manufatura começam a adotar um novo modelo de negócio de seus produtos. As vendas tradicionais estão sendo substituídas por um sistema comercial no qual as empresas mantêm a posse dos bens produzidos, cuidam de sua manutenção e garantem seu funcionamento, e o cliente paga por usufruir as funções proporcionadas pelo produto. É o sistema produto-serviço, da sigla PSS, product-service system, também conhecido como product as a service ou servitização no Brasil, palavra que significa a estratégia de mudança de uma empresa fornecedora de produtos para uma solução PSS.

No exterior já existem muitos exemplos, principalmente na Europa. A Rolls-Royce disponibiliza suas turbinas de avião em um modelo PSS em que as companhias aéreas pagam por hora de voo. A Michelin oferece aos gestores de frota de caminhões um sistema pelo qual é remunerada pela milhagem rodada de seus pneus. Na Holanda, a Philips faz para clientes corporativos a análise do ambiente e o design da iluminação. O cliente paga pela luz utilizada em horas, o que abrange todo o serviço, inclusive instalação, fornecimento de equipamentos e manutenção.

A BMW oferece o uso de seus veículos, por meio da empresa DriveNow, em 12 cidades da Europa, como Berlim, Viena, Londres, Copenhagen, Estocolmo e Milão. Em Copenhagen, por exemplo, são 400 veículos disponíveis. O pagamento é por hora de uso e inclui combustível e seguro. O acesso a essa solução é por aplicativo de celular. A cidade de Vancouver, no Canadá, possui quatro concorrentes desse tipo de oferta, a Zipcar, a car2go, EvoCar e a Modo. Essa modalidade também é conhecida como car sharing. No Brasil, a Zazcar, de São Paulo, adota esse modelo de negócio. Nos Estados Unidos, a General Motors lançou o Maven, um serviço de aluguel de curto prazo desenvolvido para quem não quer mais arcar com as taxas, seguros e todas as tarefas e gastos resultantes da posse de um automóvel. Segundo a consultoria McKinsey, serviços de compartilhamento de automóveis e semelhantes representarão um mercado de US$ 1,5 trilhão em 2030.

É na oferta ao cliente de serviços complementares ao usufruto do produto que o PSS se diferencia de opções como a locação, que não inclui manutenção, ou o leasing – caracterizado como uma locação financeira em que o contratante pode ter o usufruto de um produto pagando prestações mensais, sem envolver o custo dos serviços, e no final tem a opção de compra.

bárbara malagoliNo Brasil, algumas empresas de manufatura também estão adotando a servitização. Um exemplo é a Whirlpool, que optou por não vender o purificador de água Brastemp. A empresa instala o equipamento na casa de seus clientes, cuida da manutenção, faz a troca do refil e cobra por meio de uma assinatura mensal. Outro exemplo é da IBM, que sempre vendeu computadores e softwares e agora desenvolve com empresas brasileiras uma plataforma de consulta on-line sobre dados e soluções para o agronegócio. Na IBM AgriTech, o cliente paga pela informação consumida, como condições climáticas em tempo real e recomendações sobre o melhor dia e hora para o plantio, adubação e irrigação. “As aplicações dessa plataforma são consumidas como prestação de serviços, sem considerar a infraestrutura computacional. O serviço é cobrado de acordo com o que for processado. Por exemplo, em imagens de plantações geradas por drone, o valor é definido segundo o tamanho que o cliente quiser”, explica Ulisses Mello, diretor de pesquisa da IBM Brasil. Para ele, a solução desenvolvida no país tem vocação global e deve ser levada para outros países.

A Xerox no Brasil também lançou um serviço de cobrança por impressão, responsabilizando-se pela manutenção e gestão de materiais. Há décadas, a empresa vende ou aluga suas máquinas. A JBT, fabricante de máquinas para a indústria cítrica, desenvolveu um modelo de negócio no qual se torna provedora do serviço de processamento da laranja. A cobrança é por tonelada de laranja processada.

Pesquisadores da área de engenharia da produção avaliam que o PSS pode criar um novo paradigma industrial. Hoje, muitas empresas adotam estratégias de produtos que preveem a obsolescência programada, ou seja, são desenvolvidos para não ter uma alta durabilidade e assim fazem o cliente voltar mais rápido ao consumo, impulsionando as vendas e a escala produtiva. Com o PSS, a durabilidade do bem produzido passa a ser de interesse das empresas. Quanto maior for a vida útil do produto, maiores são os ganhos. “As empresas vão precisar mudar o foco do negócio. Em vez de quantidade, o objetivo vai ser desenvolver produtos com mais qualidade e durabilidade”, presume a tecnóloga Fernanda Hänsch Beuren, professora do curso de engenharia de produção da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc).

O PSS é também um processo mais ecoeficiente. O fabricante conhece melhor do que ninguém as características de seus produtos e os fatores que irão gerar um aumento de sua vida útil. A Michelin conseguiu aumentar em 2,5 anos o tempo de uso médio dos pneus que mantém sob contrato de PSS, cuidando de forma adequada de sua manutenção. Produtos com uma vida útil maior apresentam um índice de descarte menor. Portanto, as empresas produzem menos e demandam menos insumos.

No final da vida útil do produto, o descarte não é feito pelo cliente, que muitas vezes não tem informação ou interesse em dar uma destinação correta ao material. Como mantém a posse do produto, a tendência é que o fabricante reaproveite materiais e insumos em processos de remanufatura e, quando necessário, faça um descarte mais organizado e ambientalmente correto de componentes que se tornaram obsoletos. “É um importante apoio à transição de um modelo econômico linear, de extração, processamento e descarte de insumos, para a economia circular, de reaproveitamento sustentável”, diz o engenheiro mecânico Henrique Rozenfeld, professor da Escola de Engenharia de São Carlos (EESC-USP).

bárbara malagoliA mudança para o modelo PSS pode resultar em vários benefícios para as empresas. O sistema gera receitas adicionais e recorrentes com a prestação contínua de serviços. Proporciona fidelização e um maior vínculo com o cliente, o que permite ao fornecedor conhecer melhor as demandas e os hábitos de consumo, informações que irão orientar a inovação e o desenvolvimento de novas soluções mercadológicas. É também uma estratégia para diferenciar o produto no mercado e enfrentar a concorrência ditada pelo preço.

Para Rozenfeld, a servitização tem potencial de reverter o processo de desindustrialização em países com economia de baixa escala produtiva, como a brasileira. “A indústria local não tem uma estrutura de custos para fazer frente a um concorrente que opera com grandes volumes globais, mas pode agregar valor aos seus produtos e se diferenciar pela qualidade dos serviços prestados e pela customização”, diz. É o que já vem fazendo a indústria de bens de capital da Alemanha para enfrentar os concorrentes asiáticos que oferecem máquinas com um custo inicial inferior.

O PSS também proporciona vantagens para os consumidores. A primeira delas é que não há necessidade do desembolso imediato de recursos para usufruir do produto e os gastos são diluídos ao longo do tempo de uso, permitindo inclusive o acesso a bens mais sofisticados. O consumidor também reduz os riscos associados a uma aquisição, como o desencanto, a desvalorização e a obsolescência. Também não precisa se preocupar com a manutenção e a atualização ou mesmo com o descarte pós-uso. O PSS, no entanto, não é necessariamente uma opção mais barata para o consumidor. O sistema produto-serviço é conveniente para o cliente por ter vantagens como a manutenção assegurada e não precisar disponibilizar o pagamento total, como acontece no sistema de venda direta ao consumidor. Saber se o valor desembolsado a longo prazo é maior do que a compra imediata é de difícil cálculo. “Os estudos que temos indicam que pode ser até menor, porque, ao adquirir o produto no modelo atual, o cliente arca com as manutenções e com eventuais custos adicionais”, analisa Rosenfeld.

O administrador Glauco Henrique de Sousa Mendes, professor do Departamento de Engenharia de Produção da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), diz que nos mercados B2B (business-to-business), ou venda de empresa para empresa, nos quais o PSS está mais difundido, o cliente corporativo reduz a sua necessidade de realizar investimentos em ativos como máquinas e ainda recebe soluções integradas e customizadas para determinadas áreas do negócio, permitindo focar seus recursos em seus processos-chave.

A difusão do conceito do sistema produto-serviço é recente, tem por volta de 10 anos, e foi se formatando em países como Alemanha, Estados Unidos e Dinamarca, em mercados B2B. O engenheiro mecânico Eduardo Zancul, professor da Escola Politécnica da Universidade de São Paulo (Poli-USP), afirma que o PSS ganha impulso ao oferecer respostas a macrotendências da sociedade, como uma maior preocupação com o ambiente e o estímulo ao desenvolvimento sustentável. Também reflete o início de uma mudança cultural em direção à economia compartilhada, que valoriza o usufruto e não necessariamente a posse de um bem.

“O modelo PSS ainda apresenta vários desafios que precisam ser superados para ter uma maior difusão. O primeiro deles é que a cultura da posse de bens ainda é a prevalecente, difícil de ser revertida, principalmente para mercados voltados ao consumidor final”, analisa Mendes. Outro problema é como equacionar o modelo de negócio. Uma questão-chave é a engenharia financeira. No modelo comercial tradicional, o fabricante é remunerado no curto prazo, após a venda de seu produto. No PSS, o fabricante obtém um faturamento maior, ao ofertar produto mais serviços, porém a remuneração é lenta, será diluída durante a vida útil do equipamento, aumentando a necessidade de capital de giro. “Em um país como o Brasil, onde o custo do dinheiro é alto, esse é um grande obstáculo”, analisa Zancul. Em mercados sazonais existe uma vantagem para o fabricante, porque em momentos de baixa nas vendas os sistemas ou produtos que estão em uso garantem um faturamento recorrente e constante.

Mendes, da UFSCar, diz que existem importantes barreiras organizacionais que precisam ser superadas. “As empresas industriais terão que desenvolver novas capacidades e processos”, afirma. Um exemplo: quem adere ao PSS precisa desenvolver relacionamentos mais duradouros com os clientes e ampliar sua estrutura dedicada aos serviços. O cliente levará em consideração não somente a qualidade do bem tangível, mas, principalmente, a qualidade dos serviços prestados, como confiabilidade, segurança e nível do atendimento. “Quem adotar o PSS e prestar serviços ruins terá dificuldade de sustentar o modelo de negócio.”

Há um impacto também no mercado de trabalho. As empresas contratarão mais funcionários ligados à prestação de serviços e terão que oferecer capacitação para que o serviço realmente atenda às expectativas dos clientes. Fernanda, da Udesc, avalia que o PSS estimulará o trabalho em rede, com a atuação em conjunto de empresas especializadas em toda a cadeia produtiva e comercial, da concepção e produção ao atendimento do consumidor final. “É muito difícil uma empresa conseguir se especializar em todas as etapas do processo. É mais fácil terceirizar e agregar parceiros especializados ao ciclo do negócio”, esclarece.

Compreender os fatores de risco e de sucesso do PSS e desenvolver técnicas e métodos que auxiliem as empresas a aderir ao sistema são questões em estudo entre os pesquisadores da área de engenharia da produção. “A teoria do PSS ainda não está amadurecida e a maioria das empresas que planeja migrar para o sistema desiste”, conta Rozenfeld. O pesquisador está à frente de uma equipe na EESC-USP que elabora um projeto destinado ao desenvolvimento de uma metodologia para transformar empresas provedoras de produtos em provedoras de produtos-serviços, previsto para terminar em 2018.

Essa metodologia de servitização, descreve Rozenfeld, é composta por várias fases, como análise do negócio, definição da proposição de valor, que são os diferenciais do produto e como ele será percebido pelo cliente, e do modelo de negócio, criação do business case (documento que estabelece a lógica do negócio para investidores, bancos, entre outros), design das arquiteturas de tecnologia da informação, processos e serviços, além da preparação e do lançamento da cadeia de valor, que detalha as atividades da empresa na oferta da solução integrada de produto e serviços. No momento, a equipe da EESC-USP trabalha no apoio a duas empresas interessadas no sistema: uma fabricante de drones para a irrigação agrícola e outra de equipamentos para diagnóstico médico.

Para Mendes, que participa desse projeto e de outros com o mesmo tema, o foco da pesquisa atual é compreender a adoção de práticas de PSS por pequenas e médias empresas fabricantes de máquinas e equipamentos industriais e propor um conjunto de diretrizes, métodos e ferramentas para auxiliar as companhias de menor porte. “No Brasil, os estudos sobre o PSS em pequenas e médias empresas têm sido pouco enfatizados, mas em países como França e Itália a servitização já é uma realidade”, informa.

O potencial da internet das coisas (IoT) em soluções PSS é uma das áreas de investigação de Zancul, da USP. Esse tipo de solução está sendo desenvolvida por uma ex-aluna, a engenheira de produção Silvia Mayumi Takey. Ela é sócia da DEV Tecnologia e coordena um projeto do programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe) da FAPESP que tem como objetivo o desenvolvimento de uma solução IoT que pode auxiliar uma fornecedora de equipamentos para reciclagem de solventes químicos, a Rochmam, a migrar de um modelo de negócio, que atualmente envolve a venda ou aluguel de máquinas, para um modelo PSS.

Rochmam e DEV estão incubadas no Centro de Inovação, Empreendedorismo e Tecnologia (Cietec) na Cidade Universitária, em São Paulo. Em uma primeira fase, já concluída, a DEV se dedicou a desenvolver hardwares e softwares necessários para permitir à Rochmam monitorar, via internet, os parâmetros operacionais de suas máquinas. A segunda fase do projeto, em andamento, é o desenvolvimento de um gateway – o equipamento de conectividade – que possa ser integrado com controladores lógicos programáveis e que tenha produção economicamente viável em larga escala. A ideia é que a solução IoT proporcione os meios que viabilizarão à Rochmam agregar serviços aos seus equipamentos e cobrar por solvente reciclado.

Projetos
1. Metodologia para transformação de oferta orientada a produtos para sistema produto-serviço (PSS) (nº 15/23094-6); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Henrique Rozenfeld (USP); Investimento R$ 47.206,47.
2. Modelo de referência para gestão do processo de desenvolvimento de sistemas produto-serviço (nº 13/14549-4); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável Glauco Henrique de Sousa Mendes (UFSCar); Investimento R$ 28.144,08.
3. Aplicação de tecnologia de internet das coisas para viabilização de sistemas produto-serviço (PSS) (nº 16/50062-0); Modalidade Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe); Pesquisadora responsável Silvia Mayumi Takey (Dev Tecnologia); Investimento R$ 952.355,59.

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