Podcast: Tatiana Chama Borges Luz
O estudo mostra que esses tipos de doença não se tornaram mais prevalentes entre os brasileiros, mas sim que os medicamentos contra tais moléstias passaram a ser oferecidos à população e pesaram na conta do Sistema Único de Saúde (SUS). Em volume de medicamentos comprados, o tratamento de doenças cardiovasculares foi responsável por pouco mais de um terço de tudo o que o governo comprou entre 2006 e 2013. “No Brasil, as doenças que mais atingem a população continuam sendo a hipertensão e o infarto, além do diabetes, mas os medicamentos para tratar essas enfermidades ficaram mais baratos com o tempo. Ao mesmo tempo, o SUS passou a incorporar e disponibilizar na rede pública medicamentos direcionados para doenças menos prevalentes”, avalia Tatiana Chama Borges Luz, pesquisadora do Grupo de Estudos Transdisciplinares de Educação em Saúde e Ambiente da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em Minas Gerais e autora principal do estudo.
A despesa do governo federal com a compra de medicamentos para o sistema público de saúde teve um aumento expressivo nos últimos anos, mostra o estudo. Enquanto em 2006 haviam sido destinados R$ 2,63 bilhões para a aquisição de remédios, em 2013 foram desembolsados R$ 7,15 bilhões, um aumento de 271%. Do valor total gasto naquele período (2006 a 2013), cerca de R$ 34 bilhões, quase 50%, foram utilizados na compra de três classes: os imunossupressores, os antineoplásicos e também alguns antivirais voltados para o tratamento de doenças como Aids, herpes e influenza. “Algumas categorias, como a dos imunossupressores, ficaram mais caras devido à incorporação de novas tecnologias”, explica Tatiana.
O estudo indica que os gastos do governo praticamente triplicaram, mas, em termos de volume, as compras apenas duplicaram entre 2006 e 2013. “A despesa cresceu sem que tenha havido um aumento da cobertura correspondente. Essa tendência de crescimento nas despesas farmacêuticas é observada em todo o mundo, mas em níveis diferentes”, alerta a pesquisadora. No Canadá, o dispêndio do governo entre 2006 e 2011 aumentou a uma taxa anual média de 4,5%, enquanto no Brasil foi de 13,3% e, na China, de 14,9%. Para Tatiana, o governo precisaria fazer um balanço para saber como aplicar os recursos de maneira mais eficiente. Dados da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec), órgão ligado ao Ministério da Saúde, mostram que 60% dos medicamentos incorporados pelo sistema público de 2012 a 2016 eram de alto custo.
Os imunossupressores encabeçam a lista dos medicamentos que mais tiveram aumento na despesa, correspondendo a uma elevação de 25 mil por cento entre 2006 e 2013. Essa classe inclui fármacos utilizados contra o fator de necrose tumoral alfa (TNF-alfa) e também inibidores de outras interleucinas. Esses medicamentos são usados, por exemplo, para tratar doenças como a artrite reumatoide, cuja prevalência na população é de 0,5% a 1%, e a doença de Crohn, cuja taxa estimada de incidência é de aproximadamente seis casos por 100 mil habitantes. O preço foi o principal fator de aumento das despesas com os imunossupressores – em quantidade a variação foi menor. “As doenças autoimunes representam um grupo de enfermidades que hoje atinge cerca de 8% a 10% da população adulta, sendo menos frequentes em crianças”, explica Magda Carneiro-Sampaio, professora de pediatria clínica da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FM-USP).
De acordo com ela, os medicamentos denominados de imunobiológicos, um subgrupo dos imunossupressores, têm indicação de uso em várias doenças autoimunes e, de fato, são fármacos de alto custo. “Parte significativa deles são anticorpos monoclonais que demandam grande investimento para seu desenvolvimento”, explica Magda. Além do preço elevado, diz ela, observa-se uma ampliação do uso de imunossupressores, provavelmente decorrente do aumento do número de transplantes, e uma maior capacidade de diagnóstico de doenças autoimunes.
Medicamentos usados contra o câncer também estão entre aqueles que tiveram elevação de preço no Brasil, acompanhando uma tendência mundial. Dados de 2015 da Sociedade Americana de Oncologia mostram que atualmente o tratamento para câncer chega a custar cerca de US$ 10 mil por mês em média. “As principais inovações nesse campo são as terapias-alvo direcionadas contra alterações moleculares específicas do tumor e a imunoterapia, que busca restabelecer a resposta imune do paciente contra o câncer. Ambas as estratégias têm se mostrado mais eficazes e menos tóxicas que a quimioterapia clássica”, conta Helano Freitas, coordenador científico de pesquisa clínica do A.C.Camargo Cancer Center, de São Paulo. Segundo ele, os novos medicamentos para câncer estão chegando ao mercado brasileiro custando de R$ 30 mil a R$ 35 mil por mês.
Freitas explica que o encarecimento se deve, entre outros fatores, ao avanço tecnológico e aos altos investimentos em torno das novas terapias. “Com o avanço da medicina de precisão, doenças comuns, como o adenocarcinoma de pulmão, estão se transformando em múltiplas doenças raras, de acordo com o tipo de alteração molecular detectado”, afirma Freitas. Em certas situações, ele explica, é possível prescrever medicamentos talhados para um determinado perfil de doença, aumentando as chances de controle da doença no longo prazo. “A sociedade precisa discutir aspectos farmacoecônomicos em relação a essas novas terapias. Os resultados desses tratamentos são animadores, mas os custos estão se tornando impagáveis”, alerta Freitas.
Eloísa Bonfá, diretora clínica do Hospital das Clínicas da FM-USP, afirma que o desenvolvimento das terapias-alvo é especialmente trabalhoso, envolve engenharia genética e demanda grandes investimentos. “Isso gera um custo muito alto e dificulta o acesso ao medicamento, gerando muitas vezes processos na Justiça dos pacientes que precisam de medicamentos não incorporados no SUS”, informa. “Nossa pesquisa certamente inclui valores que foram gastos via judicialização, embora ainda não saibamos quanto”, observa Tatiana Luz, da Fiocruz. O fenômeno da judicialização da saúde está presente em todo o país. Apenas em 2015, o governo paulista gastou R$ 1,2 bilhão em remédios e insumos para 57 mil pacientes que recorreram aos tribunais (ver Pesquisa FAPESP nº 252).
“O estudo da Fiocruz deve ser amplamente divulgado entre os tomadores de decisão na esfera federal”, sugere Carlos Octávio Ocké-Reis, presidente da Associação Brasileira de Economia da Saúde e pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Diretor do Departamento de Economia da Saúde do Ministério da Saúde entre 2015 e 2016, Ocké-Reis afirma que vários atores do sistema de saúde pressionam o Estado a incorporar novos medicamentos. Ele menciona a classe médica, os planos de saúde e a indústria farmacêutica. “Lacunas no sistema regulatório do SUS favorecem a pressão. Uma proposta é que o Estado aumente sua capacidade regulatória e, assim, possa ter mais força no momento de negociar com a indústria e de definir quais medicamentos serão disponibilizados no sistema público”, sugere Ocké-Reis.
Artigo científico
CHAMA, Borges Luz T. et. al. Trends in medicines procurement by the Brazilian federal government from 2006 to 2013. PLoS ONE. Abr. 2017.