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Medicina

Rotas alternativas

Nanotecnologia abre caminho para biocompósitos que poderão substituir ossos e tecidos e para medicamentos dirigidos

MARINA LADEIRA/UFMG Altos índices de proteína em células do fígado quando incubadas apenas com nanotubos, na primeira imagem (cores verde e vermelha), decaem significativamente na segunda com silenciamento gênicoMARINA LADEIRA/UFMG

Nanoestruturas para carregar fármacos que combatem o câncer, doenças infecciosas e parasitárias e também para ser empregadas como agentes de diagnóstico são exemplos de pesquisas realizadas em universidades brasileiras que têm como foco o uso da nanotecnologia para a produção de novos medicamentos. Uma das linhas de pesquisa, inovadora, utiliza nanotubos de carbono e colágeno para obter novos tecidos como a pele, por exemplo, ou ajudar na regeneração óssea. Os nanotubos de carbono são estruturas cilíndricas sintetizadas a partir do carbono, dotadas de propriedades mecânicas, térmicas e elétricas bastante superiores às de outros materiais, e o colágeno é uma molécula importantíssima para todo o sistema vivo, responsável pela estruturação do esqueleto e dos órgãos. Os estudos realizados na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), conduzidos inicialmente pelos professores Luiz Orlando Ladeira e Rodrigo Lacerda, no Laboratório de Nanomateriais do Departamento de Física, mostram que esse é um biocompósito muito promissor.

A idéia de criar o biomaterial surgiu a partir de uma observação de Ladeira de que tanto o colágeno como os nanotubos de carbono têm dimensões semelhantes. Os nanotubos de carbono são produzidos no laboratório mineiro com medidas que variam de 1 a 3 nanômetros (nm) de diâmetro (1 nanômetro equivale a 1 milímetro dividido por 1 milhão de vezes) e até mil nm de comprimento (leia emPesquisa Fapesp nº 118), para aplicações variadas e sob encomenda para vários grupos de pesquisa brasileiros. Existem mais de 20 tipos de colágeno nos seres vivos, mas o tipo 1, humano, presente em cartilagens e ossos, é constituído de três tipos de cadeias de aminoácidos, que formam um arranjo helicoidal, de três hélices. “É uma molécula parecida com uma fibra, com 1 nanômetro de diâmetro e 300 nanômetros de comprimento”, diz Ladeira.

O gel de colágeno é utilizado como matriz de suporte na cultura de diversos tipos de células, pois geralmente elas abrigam receptores para a proteína. Adicionado ao nanotubo de carbono, o gel torna-se mais resistente e permite estruturar o crescimento em três dimensões das células nas matrizes. “A matriz de colágeno é uma estrutura biocompatível e biodegradável, que permite a ancoragem de células para fazer a engenharia de tecidos, ou seja, criar órgãos, fazer crescer pele, pedaço de miocárdio e de estruturas celulares”. No caso, os pesquisadores querem estudar como se dá a interação para a produção de osso.

A pesquisa teve início há três anos, com a participação da aluna de doutorado Edelma Eleto, que também compartilha a titularidade da patente, depositada no Brasil e no exterior. “Observamos que o biocompósito induz produção de hidroxiapatita, responsável pela mineralização do osso”, diz Ladeira. Isso significa que ele é biodegradável, biocompatível e promotor de osteogênese (processo de formação e desenvolvimento dos ossos). O biocompósito atraiu o interesse do grupo empresarial Nanosolutions, sediado na Cidade do México, que já iniciou negociações com a universidade para fazer os testes clínicos necessários para a certificação do produto.

ADRIANA POHLMANN Nanopartículas poliméricas desenvolvidas na UFRGSADRIANA POHLMANN

Aplicações biológicas
Atualmente vários outros grupos de pesquisa da UFMG estão trabalhando para ampliar o leque de aplicação do biomaterial. Os estudos sobre funcionalidade e biocompatilidade do produto, principalmente para aplicações biológicas, estão sendo feitos pelo professor Gregory Kitten, coordenador do Laboratório de Matriz Extracelular e Biologia do Desenvolvimento do Instituto de Ciências Biológicas. A pesquisadora Heloísa Colleta, da equipe de Kitten e bolsista do Programa de Apoio a Projetos Institucionais com a Participação de Recém-Doutores (Prodoc), da Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), está fazendo testes com o biocompósito para utilização futura em implantes dentários. Principalmente quando há a perda de dente por causa de doenças periodontais, o período de regeneração óssea é longo, o que leva à busca por alternativas que acelerem essa etapa.

 “Nos experimentos in vitro será verificada a interferência dos nanotubos na proliferação, adesão, migração, morte e manutenção do estado diferenciado de células em cultura”, diz Heloísa. Nas análises in vivoserá feita a implantação do biocompósito em alvéolos (cavidade onde o dente se encaixa) dentários de ratos após a extração do primeiro molar. A avaliação tem como objetivo verificar se a implantação do biocompósito vai efetivamente acelerar a regeneração óssea sem aumentar a reação inflamatória. “Se esse modelo for comprovadamente funcional, o biocompósito poderá ser aplicado em outros locais que necessitam de regeneração óssea, como fraturas, por exemplo, ou na regeneração de outros tecidos, como pele artificial”.

Outra linha de trabalho desenvolvida na UFMG, também derivada da pesquisa iniciada há três anos, utiliza nanotubos de carbono para o silenciamento gênico, uma linha de investigação que poderá, no futuro, conduzir a novas drogas dirigidas, que buscam o alvo programado. Os nanotubos são utilizados como elementos transportadores de pequenas moléculas de RNA (siRNA), que, levadas para dentro do citoplasma das células, em um processo conhecido como transfecção, silenciam o comando de síntese de proteínas específicas. Essa abordagem consiste em impedir que o gene estudado gere a proteína por ele codificada com o propósito de analisar as conseqüências decorrentes dessa inibição na célula. “Enquanto os métodos comerciais de transfecção disponíveis têm uma taxa de eficiência muito baixa, na faixa de 30% a 40%, o complexo silenciador formado pelo nanotubo de carbono e siRNA tem eficiência de 80% a 90%”, diz a professora Silvia Guatimosim, que coordena o trabalho em parceria com a professora Maria de Fátima Leite, ambas do Departamento de Fisiologia e Biofísica do ICB. Outra vantagem é que o nanotubo de carbono até agora não se mostrou citotóxico, o que levaria à morte da célula. “Os experimentos estão sendo feitos com células cardíacas, hepáticas e neuronais”, diz Marina de Souza Ladeira, aluna de doutorado que participa do projeto.

MONICA CRISTINA DE OLIVEIRA Imagem topográfica de lipossomas pH sensíveis obtida por microscopia de força atômicaMONICA CRISTINA DE OLIVEIRA

Agentes antineoplásicos
Além da pesquisa de silenciamento gênico, que integra um conjunto de aplicações biológicas para os nanotubos de carbono, outras linhas de estudo na área de nanomedicina em parceria com empresas têm sido desenvolvidas na UFMG. Uma delas trata do desenvolvimento de um sistema de liberação para transporte de agentes antineoplásicos, coordenado pela professora Mônica Cristina de Oliveira, do Departamento de Produtos Farmacêuticos da Faculdade de Farmácia. A tecnologia utiliza lipossomas, nanoestruturas constituídas por lipídeos, semelhantes às células humanas, para o transporte de fármacos para regiões específicas do organismo. Essas nanoestruturas são fabricadas em laboratório com matéria-prima sintética ou extraída da soja e do ovo. Nos experimentos foi usada uma formulação que associa os lipossomas à cisplatina, um quimioterápico sintético usado no tratamento de tumores cancerígenos.

“Os lipossomas têm uma cavidade aquosa onde podem ser colocados agentes quimioterápicos que sejam solúveis”, diz Mônica. Como a região tumoral tem um pH mais baixo do que os tecidos normais, quando esses lipossomas sensíveis ao pH ácido chegam a essa região eles liberam a droga no local específico, ou seja, na célula tumoral. “A nanotecnologia para transporte de fármacos pode reduzir a toxicidade do tratamento e aumentar a eficácia terapêutica”, ressalta a professora.

A cisplatina é usada para tratamentos quimioterápicos de câncer de cabeça, pescoço, ovário, pulmão e próstata. O grande problema é que tem grande toxicidade renal, o que limita muito o aumento de dose pelo médico. Alguns pacientes com doses repetidas começam a ter resistência e não respondem mais ao tratamento. A veiculação do quimioterápico em um sistema nanoestruturado poderia contornar essa toxicidade renal, porque o caminho percorrido por ele não é o mesmo do medicamento convencional. “A resistência ao tratamento está muito ligada à incapacidade que a célula tem ao longo do tempo de permitir a entrada do medicamento”, diz Mônica.

O trabalho, que começou em 2001, é feito em parceria desde 2005 com a empresa mineira de pesquisa clínica Biocancer Clinical Research. A empresa atua em todas as fases de desenvolvimento do medicamento e possui um acordo com o Hospital das Clínicas da UFMG, onde mantém um laboratório. Parte do desenvolvimento da formulação está concluída e agora estão sendo feitos estudos pré-clínicos, que se encontram na etapa final e investigam duas linhas de administração do nanomedicamento, uma via endovenosa e outra intraperitoneal (membrana que recobre as paredes do abdome e a superfície dos órgãos digestivos). A pesquisa está sendo financiada com R$ 180 mil da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig), por meio do programa Pappe Subvenção, que financia projetos de pesquisa e desenvolvimento em micro e pequenas empresas, R$ 510 mil da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e R$ 695 mil da Rede Mineira de Pesquisas em Nanobiotecnologia, criada em 2002 e financiada pela Fapemig.

Mônica, juntamente com o professor Valbert Nascimento Cardoso, também estuda o emprego de lipossomas como agente de diagnóstico para processos inflamatórios e infecciosos. Marcados com um isótopo radioativo, como o tecnécio, esses lipossomas emitem raios gama capazes de gerar imagens que permitem a identificação de focos inflamatórios e infecciosos em estágios iniciais, sem necessidade de tirar sangue do paciente para fazer a avaliação, como ocorre com o uso de leucócitos radiomarcados, considerado padrão.

Na Universidade Estadual Paulista (Unesp) de Araraquara, um grupo de pesquisa coordenado pelos professores Elson Longo e Maria Valnice Boldrin, em parceria com o Grupo EMS, fabricante de medicamentos, trabalha desde o início de 2007 no desenvolvimento de nanomedicamentos com liberação controlada de ativos anti-hipertensivos. A parceria foi efetuada por meio do Centro Multidisciplinar para o Desenvolvimento de Materiais Cerâmicos (CMDMC), um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão mantidos pela FAPESP. “Estamos ainda numa primeira fase do trabalho”, diz Longo. “Escolhemos os tipos de polímeros que vamos utilizar como veículo para o medicamento e os ativos que serão usados para fazer o transporte.” Agora a pesquisa está centrada na interação entre o polímero e os anti-hipertensivos.

O polímero, bastante conhecido, mas que não pode ser revelado porque ainda está em fase de depósito de patente, vai englobar o medicamento ativo e levá-lo até um local específico. A proposta é produzir medicamentos anti-hipertensivos capazes de agir somente em uma determinada estrutura de tecido como, por exemplo, em músculos estriados cardíacos. “Estamos trabalhando com cinco diferentes anti-hipertensivos”, explica Longo. “A tecnologia permitirá diminuir a quantidade do medicamento ativo utilizado, com mais eficácia do que os encontrados hoje no mercado.” Dos R$ 4,7 milhões destinados à pesquisa, a empresa responde por 40% e a Finep pelo restante.

O interesse das empresas em se associar às universidades é reflexo da importância que o tema nanotecnologia e fármacos tem conquistado no meio acadêmico. “Entre 6.781 publicações, cruzando as palavras-chave nanotecnologia e fármaco, no banco de dados Institute for Scientific Information (ISI), o Brasil está na 16ª posição em pesquisa, produzindo conhecimento”, diz a professora Adriana Pohlmann, do Instituto de Química da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que juntamente com a professora Sílvia Guterres, da Faculdade de Farmácia da mesma universidade, participou do desenvolvimento do primeiro medicamento nanotecnológico do Brasil, um anestésico local indicado para ser usado sobre a pele, que saiu da escala de bancada e está em fase de escalonamento para posteriores testes clínicos pela empresa paulistana Incrementha PD&I, instalada no Centro Incubador de Empresas Tecnológicas (Cietec), na Cidade Universitária.

EDELMA ELETO A imagem acima, obtida por microscopia eletrônica, mostra aumento na rugosidade das fibras do biocompósito em relação ao colágeno (abaixo)EDELMA ELETO

Polímeros biodegradáveis
O sistema que está sendo testado utiliza nanopartículas de polímeros biodegradáveis como carreadores do fármaco. “A vantagem é que esse material é naturalmente metabolizado pelo organismo, o que significa que é biodegradável e biocompatível”, diz Henry Suzuki, diretor técnico da Incrementha, empresa com foco em pesquisa e desenvolvimento, criada por duas indústrias brasileiras da área farmacêutica, a Biolab e a Eurofarma. Uma diferença fundamental em relação às pomadas comerciais é que elas têm o agente anestésico disperso em óleo, enquanto as nanopartículas do novo produto ficam dispersas em água. “Como a camada externa da pele é mais hidrofílica, ou seja, tem mais afinidade com a água, as pomadas à base de óleo acabam se perdendo no caminho até chegar às camadas mais internas e, com isso, sua eficácia é reduzida”, explica Suzuki. A dispersão das nanopartículas anestésicas em água faz com que tenham boa penetração não só na camada mais externa como também nas internas, e isso com uma dose bem menor de medicamento.

 “Pela potência e tempo de duração da anestesia, o produto poderá ser utilizado até em pequenos procedimentos cirúrgicos”, diz Suzuki. Na atual fase da pesquisa, será feita a validação de testes, já realizados em animais, em pacientes. Só então o anestésico poderá ser usado de forma segura e eficaz nos procedimentos cirúrgicos. A previsão inicial na época do anúncio do anestésico, em abril de 2007, era de que o produto fosse lançado comercialmente em 2008. Alguns contratempos na fase de desenvolvimento, que costumam ocorrer quando é feita a passagem da escala de laboratório para industrial, adiaram o lançamento comercial para 2009. “Nosso objetivo é chegar até a fase de registro do produto, que será então passado para empresas comerciais, no caso a Biolab e a Eurofarma”, diz Suzuki.

 A idéia de desenvolver o produto partiu da Biolab, que procurou a UFRGS para propor uma parceria. A universidade tem, há 12 anos, dois laboratórios dedicados a pesquisas na área de nanotecnologia, o Grupo Síntese e Caracterização Físico-Química de Micro e Nanopartículas Aplicadas na Terapêutica, coordenado por Adriana Pohlmann, e o Grupo Sistemas Nanoestruturados para Administração de Fármacos, coordenado por Silvia Guterres. A universidade gaúcha trabalha na produção de conhecimento para, dessa forma, pesquisar produtos específicos sob encomenda. Um exemplo disso são as pesquisas feitas com antiinflamatórios, como o diclofenaco, o mesmo princípio ativo do Voltaren e de outros medicamentos congêneres, publicadas em revistas científicas internacionais. “Não é um trabalho focado na inovação, mas na produção de conhecimento”, diz Adriana. A parceria entre a universidade e a Biolab resultou em um depósito de patente com co-titularidade. O projeto teve financiamento do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

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