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Jacob Palis Júnior

Jacob Palis Júnior: Saudável incerteza

Estudioso dos sistemas dinâmicos e presidente da Academia Brasileira de Ciências, o matemático fala do amadurecimento da pesquisa brasileira

FOTOS LÉO RAMOS

Se a comunidade brasileira de pesquisadores em matemática é reconhecida internacionalmente, um nome que sintetiza essa competência é o de Jacob Palis Júnior, de 69 anos. Mineiro de Uberaba, esse filho de um comerciante libanês com uma dona de casa síria foi um dos principais articuladores, nos anos 1970, da reformulação do Instituto de Matemática Pura e Aplicada (Impa), que multiplicou a formação de matemáticos de alto nível no país e se consolidou como um celeiro da pesquisa de ponta neste campo do conhecimento.

Palis fez graduação em engenharia, iniciada em 1958 e concluída em 1962, influenciado por um irmão engenheiro. Mas quando concluiu o curso, sentiu a necessidade de aperfeiçoar-se em matemática, sua paixão desde a infância. “Na minha cabeça eu voltaria à engenharia, mas com uma formação básica muito mais forte. Isso nunca aconteceu”, relembra. Após um estágio no Impa com os matemáticos Maurício Peixoto e Elon Lima, decidiu fazer o doutorado nos Estados Unidos e mandou uma carta para Stephen Smale, pedindo para ser seu orientando. Smale era um importante pesquisador de sistemas dinâmicos, uma área da matemática iniciada pelo grande matemático francês Henri Poincaré no final do século XIX. Trata-se do estudo de trajetórias de equações diferenciais a longo prazo e que servem para modelar fenômenos que evoluem no tempo, como o clima, as reações químicas e os sistemas planetários, dentre muitos outros. Palis foi prontamente aceito e constatou, poucos anos mais tarde, o acerto de sua escolha: em 1966, Smale recebeu a Medalha Fields, o prêmio de maior destaque na área de matemática, considerado o Nobel desta ciência. Na Universidade da Califórnia, em Berkeley, Palis obteve em sua tese de doutorado, concluída em 1967, e logo a seguir em trabalho conjunto com seu orientador, resultados que os levaram à formulação de uma importante conjectura na teoria moderna dos sistemas dinâmicos, relacionando dois conceitos, o de hiperbolicidade e o de estabilidade. A prova da conjectura seria concluída por um dos alunos de doutorado de Palis, Ricardo Mañé, 20 anos mais tarde.

Embora tivesse convites para permanecer nos Estados Unidos, Palis quis voltar ao Brasil, pois anteviu a possibilidade de contribuir para  multiplicar a boa, mas restrita, comunidade de pesquisadores brasileiros em matemática. No Impa, esteve à frente, ao lado de Peixoto, Lima e Manfredo do Carmo, entre outros colegas, da criação de um programa regular de doutorado, considerado de excelência. Na década de 1970, dedicou–se ao estudo das bifurcações (mudança de estruturas dinâmicas em sistemas que dependem de parâmetros) e, a seguir,  à teoria dos sistemas caóticos, aqueles em que um certo grau de incerteza está presente: são sensíveis às condições iniciais e a dificuldade de fazer previsões é bem maior. Seu trabalho e o de diversos outros matemáticos levaram-no à formulação de uma conjectura global dos sistemas dinâmicos, segundo a qual a maioria dos sistemas têm seu comportamento a longo prazo regido por um número finito de atratores, que constituem o “destino final” das trajetórias.

Autor de mais de 80 trabalhos científicos e orientador de 41 teses de doutorado, Palis é detentor de diversos prêmios nacionais e internacionais, membro de 12 academias de ciências, dentre as quais a americana, a brasileira, a francesa e a russa e recebeu a Legion d’ Hounner do governo francês. Foi diretor do Impa entre 1993 e 2003. Nos últimos anos vem se dedicando também à promoção das atividades científicas e tecnológicas. Presidiu a União Internacional da Matemática entre 1999 e 2002. Em 2006 foi eleito presidente da Academia de Ciências do Mundo em Desenvolvimento (TWAS), com sede em Trieste, na Itália, para onde se desloca três ou quatro vezes por ano por curtos períodos. Desde meados de 2007 também preside a Academia Brasileira de Ciências (ABC), no Rio de Janeiro. “O fato de eu ser presidente da ABC ajuda minha atuação na TWAS e vice-versa”, diz. Casado – a oficialização de sua união com Suely Lima está programada para o dia 4 de julho –, pai de três filhos e avô de um neto, Palis deu à Pesquisa FAPESP a entrevista a seguir:

O senhor deixou Uberaba, Minas Gerais, para estudar engenharia no Rio de Janeiro. Depois é que se especializou em matemática. Como foi essa travessia? 
Sempre me interessei pela matemática. Sou o mais novo de uma família com oito filhos. Meu pai veio do Líbano e minha mãe do norte da Síria. Meu pai tinha uma loja grande em Uberaba, vendia de tudo. Mas nunca deixou nenhum dos filhos – eram cinco homens e três mulheres – ajudar na loja. Queria que todos estudassem na universidade. Era uma obsessão. Quando eu tinha 4 anos,  me colocaram numa pequena escola em que eu ia e voltava sozinho – naturalmente perto da minha casa. Quando fui ao grupo escolar, já sabia somar, multiplicar, conhecia elementos de matemática. O curioso é que hoje está confirmado que a criança tem o perfil neurológico para aprender matemática e linguagem já a partir de 2 anos. O meu gosto por matemática vem desde essa época.

O desejo de seu pai se cumpriu, então. 
Foi cumprido à risca. Ele financiava os estudos até o final. Um dos meus irmãos fez engenharia e foi o que mais me influenciou. Vim para o Rio de Janeiro aos 16 anos também para cursar a escola de engenharia, que é onde se fazia a melhor matemática, na minha visão daquela época. Cursei o segundo e o terceiro ano do científico, uma das duas alternativas do ensino médio para entrar na faculdade. Tive muito estímulo e ótima moradia, pois meu irmão engenheiro tinha um apartamento muito confortável de frente para o Pão de Açúcar. Foram anos muito importantes para mim, tanto que ao final do primeiro ano fiz um teste para entrar na Universidade do Brasil [atual Universidade Federal do Rio de Janeiro, UFRJ] e passei em primeiro lugar, mas não valeu porque não tinha idade. No segundo ano fiquei novamente em primeiro lugar e aí valeu. Fui para a escola de engenharia, mas gostava muito de matemática e de física e fazia muitas perguntas nas aulas.

Isso lhe trazia problemas? 
As respostas nem sempre eram satisfatórias para as minhas ansiedades. Duas vezes fui chamado pelo diretor da escola porque professores reclamaram. Um deles dava o curso de motores e depois de seis aulas eu disse a ele, “Professor, o senhor poderia resumir tudo isso em uma aula”. Ele chamou-me ao quadro-negro e, de fato, pude fazer um bom resumo no período daquela aula. Ele queixou-se ao diretor, Rufino Pizarro. Disse que eu estava fazendo ironia, o que de forma alguma era verdade. O diretor me chamou, conversamos e ele disse, “Sou obrigado a repreendê-lo”. Mas na saída falou, “Não mude nunca”. O episódio repetiu-se e outro professor queixou-se ao diretor, que outra vez me encorajou a continuar fazendo perguntas.

E como o senhor chegou à matemática? 
Encontrei professores de matemática dentro da escola de engenharia – engenheiros que optaram por uma carreira ligada à matemática. Um dos catedráticos era Maurício Peixoto, que também me influenciou depois. Entre os relativamente poucos e ótimos matemáticos brasileiros da época um bom percentual deles tinha feito engenharia. Isso era um fenômeno comum na época – as pessoas faziam engenharia e no meio do caminho descobriam a física, a matemática, a química… Comecei a fazer um seminário de matemática e, na parte final do meu curso de engenharia, a frequentar o Impa e, em menor escala o Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, o CBPF. Pensei que quando eu terminasse engenharia iria estudar mais matemática e física e depois voltaria à engenharia, mas com uma formação básica muito mais forte. Esse “retorno” nunca aconteceu. Terminei o curso e ganhei o prêmio de melhor aluno da universidade na época. Naquele momento decidi que queria ir para o exterior fazer o doutorado. Outra característica que tenho até hoje é que às vezes não sei muito bem do que estou falando, mas sei a direção que quero seguir. Não sabia direito o que era fazer doutorado no exterior. Eram poucos os exemplos na época.

Por que escolheu os Estados Unidos?
Perguntei ao Elon Lima, um dos ótimos matemáticos que eu conhecia, qual tinha sido o melhor matemático que havia passado pelo Brasil em anos recentes. E ele me deu um nome: Stephen Smale.  Escrevi para ele. Smale estava na Universidade Columbia, em Nova York. Fiquei meio surpreso quando ele de pronto aceitou ser meu orientador.

FOTOS LÉO RAMOSO que sua família achou? 
Ficou apreensiva, “Você vai estudar mais? Já não estudou o suficiente?”. Tive de convencê-los. O curioso é que me inscrevi em dezembro de 1963 para começar em setembro do ano seguinte nos Estados Unidos. Mas em junho o Stephen Smale decidiu aceitar uma oferta de Berkeley, na Califórnia, e saiu da Universidade Columbia. Ele me avisou que estava indo para Berkeley e escrevi de volta dizendo que as inscrições para lá já haviam se encerrado há tempos. Ele disse que negociaria com Berkeley para que me aceitassem. E assim se passou. Antes disto, em março daquele ano de 1964, houve o golpe militar e o CNPq [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico] praticamente parou por alguns meses. Era o único lugar que eu conhecia que dava bolsas para o exterior. A essa altura eu não tinha como pedir ao meu pai para ajudar – ele já havia me “carregado” até o final de meu curso universitário. Então ouvi falar que existia uma bolsa de nome Fulbright dada pelo Instituto Brasil-Estados Unidos. Apareci para fazer o teste e, para minha surpresa, rapidamente concordaram em me dar uma bolsa. Mas disseram, “Vamos decidir qual é o seu perfil e onde é melhor você ir”. Eu não concordei, “Só aceito se for para a Columbia”. Pedi a inscrição e me aceitaram. Acabei indo para Berkeley, e com esta bolsa americana.

Como foi sua adaptação? 
Meu orientador de início deu-me boas- -vindas, mas não muito mais do que isso, e nem era para ser. Mas ele coordenava um seminário relatando novas pesquisas em sistemas dinâmicos que eu decidi fazer após um semestre por lá. Em setembro de 1967 terminei meu doutorado. Fiquei mais um ano nos Estados Unidos: fui para a Costa Leste, visitei a Universidade de Brown e o MIT [Massachusetts Institute of Technology] e conheci Harvard. Em fevereiro voltei a Berkeley – me ofereceram uma posição de professor assistente. Fiquei até agosto porque queria participar de um grande congresso em julho, de análise global, e aí voltei para o Brasil. Creio que teria facilidade de ficar nos Estados Unidos, mas queria mesmo é dar minha contribuição à ciência de meu país.

Por que quis voltar? 
Nesse tempo estava em Berkeley como professor visitante o Elon Lima, que havia sido professor em Brasília e depois retornou ao Impa, e também se encontrava por lá outro colega matemático, o Manfredo do Carmo, fazendo um pós-­-doutorado. Eu conversava muito com eles e havia a ideia de que nós tínhamos poucos, porém ótimos, matemáticos, sobretudo Leopoldo Nachbin e Maurício Peixoto. Por diversas razões, inclusive científicas, eles passavam bastante tempo no exterior. Tínhamos, Elon, Manfredo e eu, a sensação de que seria importante ter um ambiente científico permanente, em que a pesquisa fosse feita de forma sistemática, assim como a formação de novos pesquisadores. Retroagindo um pouco, no primeiro ano que passei em Berkeley li um pequeno livro escrito por James Watson, ganhador do Nobel, descrevendo a descoberta da estrutura do DNA. O livro chama-se The double helix e me impressionou muito. A descrição do ambiente científico onde tudo aconteceu, no Laboratório Cavendish em Cambridge, Inglaterra, é que me chamou mais a atenção. Acho importante contribuir para criar um ambiente científico onde os alunos e os pesquisadores se sintam estimulados. Então me ofereceram uma posição na UFRJ e também no Impa. Mas, um ano depois de voltar, em 1970, percebi que não dava para me dividir entre a universidade e o instituto.

Por quê? 
O Impa tinha as melhores condições. Àquela altura o BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social] tinha criado o Funtec [Fundo Tecnológico], que produziu uma melhora muito grande no orçamento da ciência e tecnologia básicas. E teve também o parecer Sucupira, do professor Newton Sucupira, do Conselho Federal da Educação, que organizou a pós-graduação no país em bases muito avançadas. Estes dois fatos me entusiasmaram. Certamente o Impa, com o apoio do BNDES, ficou bem mais forte, com potencial de contratar novos pesquisadores, promover aquela ideia de ambiente científico e de lançar um programa regular de pós-graduação. O Impa já tinha doutorado, mas em conjunto com a UFRJ. Só para ver a diferença, nos anos 1960 foram formados no Impa oito ou nove doutores; nos anos 1970, 30. Ainda em 1970 me encontrei com José Pelúcio Ferreira, famoso por ter sido a pessoa instrumental para a entrada do BNDES no apoio à ciência.

Com o ministro João Paulo dos Reis Veloso o senhor não se encontrou? 
Sim e Reis Veloso também foi uma figura importante na criação da Finep [Financiadora de Estudos e Projetos]. A propósito, deu-se comigo um fato inesquecível em 1970. Eu voltava para casa num sábado à tarde carregado de livros. Morava em Laranjeiras, pertinho do Fluminense, e em geral saltava do ônibus em frente ao Instituto de Cegos e descia em linha reta em direção à minha casa. Mas saltei um ponto antes – não me pergunte por quê – e fiz um circuito mais longo. Peguei uma ruazinha muito calma e por acaso encontrei o José Pelúcio. Ele estava com os dois filhos pequenos e me viu carregando livros. Perguntou, “No sábado à tarde?”. Respondi que estava treinando alunos e começando um novo programa de doutorado. Ele deixou que eu falasse e despejei entusiasmo sobre a minha área e a de outro colega. Disse que seria bom em 1971 fazer uma conferência internacional para nossos alunos terem visões diferentes da matemática e dos matemáticos e também para começarem a ser conhecidos internacionalmente. Ele perguntou, “Quanto custaria isso?”. E fiz timidamente um orçamento de cabeça e ele disse, “Mas só isso?”. No final da conversa ele concluiu, “Vamos fazer o primeiro contrato com vocês de US$ 150 mil”.

Era um dinheiro enorme para a época. 
Muito. Eu não conseguia chegar a esse número. Mas em duas ou três semanas nós do Impa estávamos com o ministro Veloso e o Pelúcio assinando o protocolo da concessão do projeto.

Se o senhor tivesse parado do ônibus no ponto certo… 
Aprendi que incerteza é uma coisa ótima. Claro que deu tudo certo, fizemos um grande simpósio em julho de 1971 e eu já tinha um aluno muito bem encaminhado no doutorado. Tínhamos começado no final de 1969, início de 1970 e eu esperava bons resultados quanto à formação de doutores só em quatro, cinco anos. E estes apareceram bem antes: o primeiro a concluir o doutorado comigo foi o Welington de Melo, que está no Impa, é um ótimo matemático e também mineiro como eu. Nessa ocasião, um aluno de um colega uruguaio escreveu uma carta dizendo que tinha demonstrado vários teoremas, resolvendo conjecturas difíceis em minha área. Gostei muito daquela carta e convenci os outros membros do comitê organizador – o Elon e o Maurício – de que nós tínhamos que convidá-lo para nosso simpósio. Mas como, se ele não tinha nem se formado na universidade? Insisti porque as coisas que ele escreveu faziam sentido. Ele veio, conversou comigo, perguntou se o aceitaria como aluno. Respondi, “Pelo conteúdo de sua carta, sim”. Um mês depois ele escreveu-me e eu aceitei ser seu orientador de doutorado.

Trata-se do Ricardo Mañé, matemático nascido no Uruguai e já falecido…
Exatamente. Como o Welington, ele terminou seu doutorado em um tempo recorde, fez uma tese muito boa. O fato é que no início de 1973 eu já tinha orientado três teses de doutorado. A seguir fui para os Estados Unidos com uma bolsa Guggenheim e passei um ano fora. É importante dizer que as teses destes primeiros alunos foram publicadas em ótimas revistas. Fiquei muito entusiasmado porque os frutos apareceram antes do que nós esperávamos. O mesmo aconteceu na área de geometria, do Manfredo do Carmo.

Um site que mapeia a genealogia dos matemáticos informa que o senhor teve 41 estudantes sob sua orientação e 128 descendentes, que são os alunos de seus alunos. Queria que abordasse essa relação de orientadores e seus discípulos na matemática.
Tenho muito orgulho dos colegas que foram meus alunos e seus descendentes. Não tenho conflitos com eles porque acho importante reconhecer o mérito deles e não por terem sido meus alunos. O Ricardo Mañé, por exemplo, foi um matemático que poderia ter ganho a Medalha Fields. Esse prêmio é dado a matemáticos de até 40 anos. Nenhuma Medalha Fields foi dada até hoje a um matemático que tenha feito sua carreira em um país em desenvolvimento. Claro que o ambiente matemático internacional hoje em dia respeita muito mais a comunidade matemática brasileira do que naquela época, meados dos anos 1980, embora já desfrutássemos de um bom prestígio. Mas o fato é que quando se obtém um resultado espetacular em Princeton ou em Paris, todo mundo fica sabendo. Fora dos grandes centros, o impacto de um grande resultado tende a ser mais limitado. O Ricardo certamente era um matemático que poderia ter ganho a Medalha Fields. Outro que veio depois é o Marcelo Viana. Atualmente temos um candidato muito forte.

Quem é? 
Chama-se Artur Ávila. Ele chegou muito cedo ao Impa. Veio do Colégio Santo Agostinho. Foi aluno do Welington de Melo, e doutorou-se aos 20 anos. É brilhante. Hoje tem 30 anos. Está em Paris metade do ano e, com essa idade, já é um diretor de pesquisa, ligado ao Centre National de la Recherche Scientifique, o CNRS. Isso é excepcional. Há três anos ele veio passar uma longa temporada no Brasil e o Impa sabiamente ofereceu a ele permanecer por aqui seis meses anual­mente, com salário, em uma posição muito especial. Isso é possível porque o Impa é uma organização social, com estrutura mais flexível. Enquanto está conosco ele ganha salário e quando vai para a França isso é suspenso. Sem dúvida, ele já é uma liderança aqui e também lá.

Como a pesquisa em matemática no Brasil evoluiu nos últimos anos? 
Atualmente é particularmente forte. Em 1974 e em 1978 dois matemáticos brasileiros deram palestras no Congresso Internacional de Matemáticos, fato até então inédito. Voltou a acontecer nos anos 1990. Ser convidado para fazer palestras em tal congresso é um fator de muito prestígio. Ele só ocorre a cada quatro anos e são convidados cerca de 180 matemáticos e matemáticas. O número de nossos palestrantes neste congresso vem crescendo e esse é um dos sintomas de nossa forte presença no cenário internacional. Não é o único, mas é um bom indicador.

FOTOS LÉO RAMOSE mais recentemente?
Em 2010 vamos ter dois palestrantes neste congresso e ambos são do Impa: Artur Ávila e Fernando Codá. O Artur dará uma palestra plenária. Como é muito jovem, isso aponta para a Medalha Fields. Mas não é certeza. O Marcelo Viana já tinha dado uma plenária em 1998 e não ganhou a Fields em 2002 – em minha opinião, isto foi um erro, mas sou suspeito para dizê-lo. Esse crescimento da importância da pesquisa científica brasileira é recente – como um todo, a ciência brasileira é muito jovem. De fato, ela começa a se consolidar com a criação da Universidade de São Paulo, em 1934. Claro que tivemos um Carlos Chagas, notável cientista, mas não foram muitos como ele. Nossa comunidade foi tomando corpo nos anos 1940 e sobretudo nos anos 1950. É tudo muito recente.

Qual o grau de amadurecimento da comunidade científica brasileira? 
A produção científica brasileira cresceu muito e não por mero acaso. Graças a um investimento regular, que tem crescido nos últimos anos, os ambientes científicos têm  cada vez mais se consolidado. Há uma grande concentração em São Paulo e, a seguir, no Rio. É bom que esses centros sejam fortes. Mas também é importante que surjam ótimos centros em todos os estados. É preciso não confundir essa posição com a de deixar de valorizar as melhores equipes, os melhores centros. A ideia não é essa. Mas a desconcentração é muito importante e foi por isso que a ABC recentemente criou vice-presidências regionais. Criamos também os Membros Afiliados de até 37 anos, jovens cientistas de maior talento de cada região escolhidos anualmente pelos Membros Titulares daquela região por um período de cinco anos não renováveis. Isso está tendo uma repercussão muito boa, graças ao entusiasmo desses jovens.

A ABC mantém grupos de cientistas encarregados de produzir documentos sobre grandes temas. Qual é o saldo dessa experiência?
Os grupos de estudos representam outra frente importante de atividades. No ano que vem teremos uma eleição e há uma orientação no sentido de que os grupos de estudos em andamento concluam, se possível, sua missão de uma forma já propositiva para oferecer documentos conclusivos aos candidatos, sobretudo à Presidência da República, mas também aos que pleiteiam ser governadores de estado quando apropriado. Sempre com base científica. É muito importante que os documentos gerados sejam propositivos. Nesse sentido, graças ao grupo de estudos da ABC de biocombustíveis, marcamos uma presença muito boa no que se chama G8 + 5 de academias de ciências. Temos o G8 + 5, que é o grupo dos sete países mais ricos, mais a Rússia, e os cinco países de economia emergente (África do Sul, Brasil, China, Índia e México). Como os mandatários desses países se reúnem anualmente, as respectivas academias de ciências são convocadas para fazer proposições em dois temas científico-tecnológicos de primeira importância para a sociedade. Este ano foram escolhidos Energias Renováveis e Migração. No primeiro, biocombustível quase não aparecia, devido à questão da segurança alimentar. Aqui quero marcar um ponto: os cientistas brasileiros defendem o etanol brasileiro em bases puramente científicas.

E como foi a apresentação da ABC?
Falei sobre o etanol brasileiro, seguindo as linhas das discussões do grupo de estudo de biocombustíveis da ABC, mas o texto foi essencialmente escrito por Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP, com a colaboração de outra pessoa muito competente, que é o João Jornada, presidente do Inmetro. A certa altura, percebi que o texto nos colocava na defensiva porque dizia, “Podemos produzir usando um pequeno percentual de terra arável do Brasil e da América do Sul,  cerca de 10% do consumo mundial de gasolina”. O “pequeno percentual” havia sido calculado por importantes cientistas da área de segurança alimentar como o limite aceitável para a plantação de cana–de-açúcar. Mesmo assim, pelas minhas contas, o resultado dava mais de 100%. Liguei de Roma para o Brito e disse que se produzia muito mais etanol do que estava no texto. Ele disse que sugeriu aquele número admitindo-se um coeficiente de risco exagerado. Eu respondi que deveríamos apostar em um número mais correto, levando em conta um coeficiente de risco mais plausível. Ele concordou. A conclusão é a seguinte: usando estimativas de cientistas respeitáveis que criticam biocombustíveis em favor da segurança alimentar, apenas com a terra arável que sobra de seus cálculos no Brasil e na América do Sul, podemos produzir etanol de cana que cobre todo o consumo mundial de gasolina até 2050. É espetacular. Além disso, é o menos poluente e não disputa espaço com a terra arável necessária à segurança alimentar. Creio que talvez tenha sido a melhor apresentação da reunião. E o documento final valorizou a posição sobre biocombustíveis de nossa delegação.

Quando o senhor esteve na FAPESP, em abril, assistiu a uma exposição dos coordenadores de três programas da Fundação: o Biota, o de bioenergia e o de mudanças climáticas. O que achou dos relatos?
Fiquei impressionado com a pujança dos estudos, o entusiasmo dos grupos e sua produtividade. São projetos densos. Entendi que o de mudanças climáticas tem essas características, mas ainda está em desenvolvimento. Nos outros, as atividades têm sido intensas.

Na apresentação, o senhor deu sugestões sobre programas de formação de novos pesquisadores em áreas que me parecem ainda carentes no país…
Claro que levantamentos devem ser feitos para consolidar minha opinião, mas de pronto posso dizer que oceanografia mereceria um programa especial para formação de pesquisadores. Esse esforço já foi feito, mas há que ser renovado. Temos uma costa imensa, um ambiente muito especial que também sofre impactos de toda sorte, inclusive mudanças climáticas. Outra área é a de engenharia, que sofreu muito na década de 1980. É uma área vital para o desenvolvimento de qualquer nação. Há também o caso da matemática: trata-se de uma comunidade muito bem qualificada por vários indicadores, mas pequena em relação à demanda. Um exemplo: a média nacional de citações em relação à média mundial é de – 11%. Isto é, estamos colados à média mundial, que se concentra nos países avançados. Trata-se de um índice excelente. Mas a área não tem atraído um número suficiente de talentos. Mencionei oceanografia e engenharia, áreas que considero que tenham o mesmo problema. Isso representa para nós um desafio: criar estímulos para que um número maior de ótimos talentos se dirija a essas áreas. Quanto à matemática, em particular, ela é importante porque perpassa muitas áreas de conhecimento. O que está acontecendo é que estamos formando hoje cerca de 120 doutores por ano nas instituições bem qualificadas pela Capes. É um número pequeno porque não atende à demanda nem dos concursos das universidades. Muitas vezes as vagas são preenchidas por físicos teóricos e eles são bem-vindos, mas também não é sempre que se interessam.

Quando o senhor assumiu a presidência da Academia de Ciências do Mundo e Desenvolvimento (TWAS) há dois anos, apontou como desafios específicos o aumento da participação das mulheres e a questão da fuga de cérebros. A TWAS está conseguindo cumpri-los?
Sim, mas os desafios pela frente são imensos. Essa é uma tarefa que não termina em tão breve período de tempo. Mencionando um exemplo singelo relativo à nossa ABC: este ano, num total de 18, foram eleitas seis cientistas mulheres como membros titulares. Esse número é inédito, correspondente a um terço do total de eleitos. Subimos um pouco o percentual de mulheres dentre os membros titulares, que agora é da ordem de 11,5%. Temos que chegar a 50%! De maneira natural, sem forçar e sempre respeitando o mérito. Na TWAS o percentual é bem menor, mas há programas especiais de doutorado e pós-doutorado para mulheres dos países em desenvolvimento. Temos também  programas financiados em grande parte pelo Brasil, China, Índia e México, que oferecem bolsas de doutorado, bolsas de doutorado sanduíche e de pós-doutorado aos candidatos qualificados dos países em desenvolvimento e isso nas boas instituições de pós-graduação dos países mencionados. Cada vez mais a mulher é consciente da sua competência e participa mais desses programas. Mas há que manter vigoroso estímulo à presença da mulher no ambiente científico.

E em relação à fuga de cérebros? 
A fuga de cérebros é dramática nos países africanos, ao contrário do Brasil. Com a possível exceção da África do Sul, de modo geral, as instituições não são tão estáveis na maioria dos países da África. É fundamental tornar os ambientes de pesquisa mais estáveis. No conjunto, faltam centros de pesqusia adequados para que os talentos que existem por lá fiquem à vontade em suas atividades, sem excessivas preocupações financeiras de sobrevivência. Em relação ao programa que mencionei – doutorado, doutorado sanduíche, pós-doutorado para alunos qualificados dos países em desenvolvimento –, a TWAS fornece a passagem. Em relação à bolsa, é a menor das despesas, mas simbolicamente é importante. Acho que é também importante criar vínculos que permitam ao aluno que vem de um país relativamente menos desenvolvido voltar à sua nação de origem com a certeza de  que suas relações com cientistas do Brasil, China, Índia e México permanecerão no futuro. Por isso é essencial ter o pós-doutorado como parte do programa. Há ainda um grande desafio: convencer os próprios governos dos países menos privilegiados a participarem do processo.

Por que o Brasil tem dificuldades dramáticas de melhorar o rendimento dos alunos de matemática? Temos pesquisa de ponta, mas seguimos patinando no ensino básico.
É um aparente paradoxo. A pesquisa de ponta é feita por uma comunidade bem menor que a de ensino fundamental e médio. O ensino da matemática, nas suas diversas etapas, envolve números completamente diferentes, com milhões de jovens e crianças. Assim, as dimensões relativas às pesquisas e ao ensino de matemática como um todo são muito diferentes. Há dois pontos a discutir: o principal deles é a formação de bons professores. Mas não basta só ter professores competentes com salários razoáveis. É preciso ter também o apreço da sociedade. Isso piorou muito no Brasil porque antigamente não tínhamos pós-graduação e os professores do secundário dos melhores colégios eram figuras importantes na sociedade. Isso tudo se perdeu. O prestígio deslocou-se para a universidade e depois para pós-­ -graduação e pesquisa. Há que recompor esse quadro. Isso vai influenciar toda a cadeia. É algo fácil de desenhar e difícil de implementar. Estamos começando a enfrentar o problema com vigor. Temos olimpíadas para estimular os alunos, mas ainda esbarramos na falta de competência de quem ensina. O professor, às vezes, tem a maior boa vontade, mas não pode ensinar o que não sabe.

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