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Etologia

Truques de um sedutor

Parentes das aranhas, os opiliões machos que cuidam dos ovos atraem o interesse das fêmeas

BRUNO A. BUZATTO Acustisoma longipes: secreção amarela de odor desagradável afasta predadoresBRUNO A. BUZATTO

No sítio em que viveu durante boa parte da infância em Petrópolis, região serrana do Rio de Janeiro, Glauco Machado costumava encontrar pelos cantos da casa os pequenos e inofensivos opiliões, animais aparentados das aranhas bastante comuns em áreas da Mata Atlântica com umidade elevada e temperatura amena. Era o início dos anos 1980 e Machado não imaginava que mais tarde voltaria a rever esses aracnídeos de pernas muito longas e delgadas durante a graduação em biologia na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Menos ainda suspeitava que um dia pudesse se tornar uma das maiores autoridades brasileiras no comportamento desses animais, que pode ajudar a entender o de outros seres vivos. “O comportamento dos opiliões pode servir de modelo para compreender como outros animais agem no que diz respeito à corte, à reprodução e às relações familiares”, afirma o biólogo, atualmente professor no Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo (USP), que nos últimos anos demonstrou que o cuidado das fêmeas com a prole é fundamental para o sucesso reprodutivo dos opiliões.

Frequentemente confundidos com as aranhas, os opiliões também têm oito pernas. Mas duas delas, mais especificamente o segundo par de pernas, funcionam como antenas e são usadas para reconhecer o ambiente pelo tato. Aliás, é justamente pelo fato de possuírem pernas longas que provavelmente receberam o nome opilião, que em latim significa pastor de ovelhas. É que na Roma Antiga os pastores andavam sobre pernas de pau para melhor contar seus rebanhos. Diferentemente do corpo das aranhas, separado em duas partes (abdômen e cefalotórax, que une cabeça e tórax), o corpo dos opiliões não apresenta divisões: cefalotórax e abdômen estão fundidos em uma só estrutura. Mas sua característica mais marcante, que permite a qualquer pessoa saber que não está diante de uma aranha, é que o opilião possui glândulas de odor: quando importunado, libera uma secreção com um forte cheiro repulsivo que valeu ao grupo o apelido de aranha-bode ou aranha-fedorenta. À base de compostos químicos como quinonas, fenóis e cetonas, essa secreção permite às diversas espécies de opiliões – são cerca de 6 mil no mundo e quase mil no Brasil – se livrarem de predadores como sapos e formigas, fato constatado recentemente pela equipe de Machado.

GLAUCO MACHADO Sempre alerta: fêmea de Acutisoma discolor protege seus ovosGLAUCO MACHADO

Num estudo coordenado por Machado na Ilha do Cardoso, litoral sul de São Paulo, a bióloga Francini Osses acompanhou durante um ano a escolha de locais para ninhos por fêmeas da espécie Bourguyia hamata. De corpo alaranjado e pernas com até 10 centímetros de comprimento, esses opiliões procuram quase sempre as folhas longas da bromélia Aechmea nudicaulis para depositar seus ovos, embora existam outras 36 espécies de bromélia apenas na região em que foi desenvolvida a pesquisa. Francini avaliou o volume de água e as condições de limpeza das bromélias que essa espécie de opilião escolhia para ter seus filhotes. Constatou que a preferência era por bromélias maiores, que acumulavam mais água, evitando variação de umidade, e onde se depositavam menos detritos caídos das árvores, como descreve em artigo a ser publicado em breve no Journal of Ethology. “A opção por essa bromélia, que geralmente cresce sobre as árvores, oferece segurança contra predadores e condições de limpeza ideal para nascimento dos filhotes”, explica Francini.

O cuidado materno não se restringe à escolha do local mais adequado para procriar. Depois de colocar os ovos, as fêmeas muitas vezes deixam de lado outras atividades diárias – como a própria alimentação, à base de insetos e frutos ou mesmo opiliões mortos de outras espécies – para se dedicar à prole. Passam praticamente um mês sobre os ovos, para protegê-los de predadores. “É uma tarefa bastante árdua. A fêmea tem de renunciar a uma série de situações para garantir o nascimento dos filhotes, mas acaba sendo recompensada”, diz Machado, que havia observado esse comportamento já em 1998, durante seu projeto de iniciação científica. Mais recentemente ele e o zoólogo Bruno Buzatto decidiram analisar a importância de proteger os ovos em um experimento realizado na natureza.

BRUNO A. BUZATTO Opilão da subfamília Gagrellinae, comum na Mata AtlânticaBRUNO A. BUZATTO

Cuidado de mãe
No Parque Estadual Intervales, no Vale do Ribeira, sul do estado de São Paulo, Buzatto encontrou 144 fêmeas da espécie Acutisoma proximum, de corpo esverdeado com o tamanho de uma moeda de 10 centavos, que costumam colocar seus ovos em pedras e folhas próximas às margens de riachos, e as marcou com uma tinta que permanece no corpo por até dois anos. Em seguida, separou-as em dois grupos: metade delas pôde passar o tempo todo cuidando dos ovos, enquanto os ovos do restante das fêmeas foram retirados dos ninhos por duas semanas. Buzatto viu que os ninhos desprotegidos foram atacados por grilos, vespas ou opiliões, que em média consumiam 75% dos ovos. Em artigo no Journal of Animal Ecology de setembro de 2007, Buzatto, Machado, Gustavo Requena e Eduardo Martins relatam que as fêmeas cujos ovos foram experimentalmente removidos dos ninhos procuravam em seguida outro macho para copular e passaram pôr ovos mais vezes – em média depositaram 18% mais ovos que as que cuidaram de suas crias. Colocar mais ovos, no entanto, garantiu apenas uma vantagem aparente, segundo os pesquisadores. Quando calcularam o custo para as fêmeas, viram que o melhor era poder cuidar da prole. “De nada adianta colocar mais ovos se a maioria dos filhotes vai morrer se não receber os cuidados da mãe”, explica Machado.

E não são apenas as fêmeas que se interessam por cuidar dos ninhos. Machado descobriu que machos de algumas espécies posam de bons pais como estratégia de conquista. Nos últimos anos Machado e seus colaboradores identificaram seis espécies de opilião em que são os machos os responsáveis pelos ovos e investigaram esse comportamento em outras seis – antes se conheciam apenas três espécies em que machos cuidavam de ovos. Avaliando a espécie Iporangaia pustolosa, com o corpo verde-vivo com manchas pretas e pouco maior que uma pérola, Machado e Gustavo Requena descobriram que quanto maior o número de fêmeas em uma população de opiliões, mais tempo os machos passam cuidando dos ovos.

Protimesius longipalpis, encontrado na Amazônia

Escolha certa
Ao menos entre os opiliões, a estratégia funciona. Taís Nazareth acompanhou em laboratório os atarracados opiliões do gênero Pseudopucrolia originários do Espírito Santo. Pôs em recipientes de vidro dois machos – um cuidava de ovos, enquanto o outro permanecia sozinho, sem prole. Em seguida, Taís colocou uma fêmea no ambiente. Em menos de duas horas, ela já havia escolhido o macho que cuidava dos ovos e copulado com ele. Numa etapa seguinte, os papéis foram então invertidos. O macho que antes não tinha do que cuidar passou a tomar conta dos ovos. O outro ficou sem o que vigiar. Novamente a fêmea optou pelo macho com a prole. Qualidades físicas como tamanho e cor do corpo não influenciaram na escolha, notou Taís. Esse experimento mostrou ainda que, quando o responsável pelos ovos morre, outro macho assume a proteção da prole, comportamento contrário ao observado em várias espécies. “Se as fêmeas preferem os machos cuidadores, aqueles que fingem ser donos dos ovos se saem melhor”, sugere Machado.

Sem veneno nem presas, os aparentemente frágeis opiliões podem se tornar agressivos para se defender: atacam com os palpos, beliscam com suas pinças (quelíceras) ou com os espinhos das pernas. Mas uma arma exclusiva vem lhes permitindo sobreviver desde que surgiram, há 400 milhões de anos: o mau cheiro. Por meio de um par de glândulas de odor, eles liberam um líquido amarelado com um forte odor ácido, capaz de manter distante vários de seus predadores. Em uma série de testes realizados anos atrás na Unicamp, Machado confirmou a eficiência do odor para salvar a vida dos opiliões. Com a ajuda dos pesquisadores Patrícia Carrera, Armando Pomini e Anita Marsaioli, ele coletou o líquido amarelado e malcheiroso produzido pela espécie Acutisoma longipes, comum em toda a Região Sudeste do país, e isolou dois tipos de benzoquinona.

GLAUCO MACHADO Exemplar do gênero Pristocnemis, sensível ao desmatamentoGLAUCO MACHADO

Em experimentos com sete espécies de formiga, Machado embebeu um pedaço de papel-filtro em água com açúcar e depois acrescentou um pouco da secreção do opilião. Foi o bastante para manter as formigas longe da comida por até dez minutos, tempo mais do que suficiente para um opilião escapar de um ataque. O grupo repetiu o teste com outros predadores dos opiliões. Para assegurar-se de que era mesmo o fedor – e não outra estratégia de defesa – que estava protegendo os pastores de longas pernas, Machado pingou um pouco da secreção amarelada em grilos e os ofereceu também a sapos-de-chifre e aranhas. A maior parte dos predadores não suportou o mau cheiro. Depois de abocanhar o grilo fedorento, o sapo passou a pular e se debater até vomitá-lo vivo. O único predador que conseguiu comer o grilo, ainda que com certa dificuldade, foi o gambá-de-orelha-branca, relatam os pesquisadores em artigo do Journal of Chemical Ecology.

O Projeto
Investimento parental e evolução do comportamento subsocial em opiliões da família Gonyleptidae (arachnida: opiliones) (nº 05/50147-1); Modalidade Linha Regular de Auxílio a Pesquisa – Jovem Pesquisador; Coordenador Glauco Machado – IB/USP; Investimento R$ 141.737,16

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