Começam a surgir evidências robustas de que está em curso um fenômeno que oceanógrafos e estudiosos do clima temiam: o aquecimento das águas profundas dos oceanos. De 2009 a 2019, a temperatura em regiões abissais do Atlântico, situadas a mais de 4 mil metros (m) abaixo da superfície, tornou-se de 0,02 a 0,04 grau Celsius (°C) mais quente. Essa elevação sutil, mas extremamente relevante, foi registrada por um grupo internacional de pesquisadores e apresentada em um artigo publicado em setembro de 2020 na revista Geophysical Research Letters. Para os especialistas, uma das causas mais prováveis do aumento de temperatura dos mares, onde está armazenada 97% de toda a água do planeta, são as mudanças no clima decorrentes da emissão de gases de efeito estufa associada à atividade humana, que já tornaram a atmosfera cerca de 1 °C mais quente do que era em 1900. “Temos agora sinais consistentes de que a elevação da temperatura média da atmosfera está gerando reflexos nas profundezas dos oceanos”, afirma o oceanógrafo brasileiro Edmo Campos, da Universidade de São Paulo (USP), um dos autores do estudo, realizado em parceria com colaboradores da Administração Nacional Atmosférica e Oceânica (Noaa), dos Estados Unidos, e da Universidade de Buenos Aires, na Argentina. “Lentamente, eles estão esquentando”, diz Campos.
No trabalho, os pesquisadores analisaram dados do que provavelmente é a mais longa série de medições contínuas já feitas em regiões abissais dos oceanos ao sul do equador. Durante pelo menos uma década, sensores localizados em quatro pontos no fundo do Atlântico registraram a temperatura da água de hora em hora. Instalados em 2009 em uma expedição feita com o navio hidroceanográfico Cruzeiro do Sul, da Marinha do Brasil, os equipamentos estão a profundidades que variam de 1.360 m a 4.757 m. Eles e outros instalados posteriormente, alguns deles com apoio da FAPESP, assentam-se a 1 m do assoalho oceânico ao longo do paralelo 34,5° Sul, linha imaginária que circunda o globo e passa próximo ao município do Chuí, no Rio Grande do Sul, e à Cidade do Cabo, na África do Sul.
Os oceanógrafos consideram a coleta de dados ao longo desse paralelo fundamental para se conhecer como as alterações na temperatura da atmosfera afetam a zona abissal do Atlântico – essas mudanças de temperatura a grandes profundidades, por sua vez, podem provocar alterações drásticas no clima do planeta. É que, por essa latitude, a profundidades superiores a 4 mil m, passam as águas gélidas (com temperatura da ordem de 0,1 °C) provenientes da Antártida, que fluem para o norte e se espalham pelo fundo do oceano. Essas águas antárticas funcionam como um dos raros pontos de conexão direta entre a atmosfera e as partes mais profundas dos oceanos. Nas regiões tropicais do planeta, o ar é mais quente do que a água e transfere calor para as camadas mais superficiais dos mares (até mil m de profundidade). Próximo aos polos, porém, a situação se inverte: o ar é bem mais frio do que a água e extrai calor dela. Esse fenômeno ocorre, por exemplo, em uma região do oceano Austral chamada mar de Weddell, ao redor do qual estão instaladas várias estações de pesquisa antárticas – entre elas, a brasileira.
As águas superficiais do mar de Weddell perdem calor para a atmosfera, tornam-se mais densas e afundam. Ao submergir, mergulham sob uma camada intermediária de águas relativamente mais quentes e avançam ao ritmo de algumas centenas de quilômetros por ano rumo ao hemisfério Norte. Como quase não há variação térmica a grandes profundidades, a temperatura medida próximo ao assoalho oceânico no paralelo 34,5° é praticamente a mesma da água que afundou na vizinhança da Antártida. O problema é que, com o aumento da temperatura média da atmosfera, o degelo nas regiões polares vem aumentando e a água parece estar submergindo ligeiramente mais quente.
Um aumento de poucos centésimos na temperatura da água em regiões abissais pode parecer irrisório, mas não é. A água é uma das substâncias da natureza que exige maior quantidade de energia para se aquecer. “A energia necessária para promover um aumento de centésimos de grau na água no fundo do oceano provocaria uma elevação da ordem de graus na atmosfera”, conta o oceanógrafo. Além disso, as regiões profundas do Atlântico armazenam um volume de água gigantesco. “Essas pequenas alterações podem causar efeitos significativos na circulação global do oceano e, consequentemente, na forma como o calor é absorvido e redistribuído pelas diversas regiões do planeta”, explica Campos, que também é pesquisador na Universidade Americana de Sharjah, nos Emirados Árabes Unidos, e foi um dos coautores do capítulo 3 do 5º Relatório de Avaliação do Clima do Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC), da Organização das Nações Unidas, apresentado em 2014.
Havia tempos se suspeitava de que os oceanos estivessem aquecendo. Medições feitas nas últimas quatro décadas por instrumentos transportados por navios, capazes de registrar a temperatura ao longo de toda a coluna de água, ou, mais recentemente, aferições da temperatura das camadas mais superficiais dos mares feitas por satélites ou flotilhas de boias, já indicavam uma tendência de elevação. Esses dados, no entanto, geravam alguma desconfiança porque as medições nem sempre eram feitas nos mesmos pontos ou realizadas com intervalos de tempo suficientemente longos. “As medições infrequentes deixavam dúvida”, relata o oceanógrafo argentino Alberto Piola, da Universidade de Buenos Aires e do Serviço de Hidrografia Naval da Argentina, um dos coautores do estudo. “Os novos dados permitem confirmar que a tendência de aquecimento nesses 10 anos é robusta e semelhante à observada em levantamentos anteriores, sugerindo que se trata de uma resposta ao aquecimento global”, afirma.
Para o meteorologista Pedro Leite da Silva Dias, diretor do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP, que não colaborou nessa pesquisa, as medições realizadas hora a hora no fundo do oceano eliminam a possibilidade de que a mudança de temperatura observada seja decorrente de uma amostragem inadequada, que poderia falsear os dados. “O aumento medido nesse estudo é compatível com o que se espera que o aquecimento global cause”, conta Dias, que participou da elaboração do 4º relatório de avaliação do IPCC, em 2007. “Se a causa fossem ciclos naturais de variação da temperatura, a magnitude da elevação seria menor”, explica.