Marcos André / Opção Brasil ImagensHá bons motivos para não gostar dos manguezais: são feios, lamacentos, repletos de mosquitos e geralmente cheiram mal. Mas há também boas – e novas – razões para dar mais valor a esses espaços que misturam água do mar e de rios em meio a árvores de raízes expostas. Aprofundando a antiga explicação de que os manguezais são berçários de animais marinhos, uma equipe da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) verificou que várias espécies de peixes precisam de redutos distintos no mangue, com salinidade maior ou menor, para desovar e criar seus filhotes até que sejam capazes de seguir para o oceano.
“O local de acasalamento dos peixes é um, o de desova é outro e o berçário é um terceiro, às vezes distantes entre si dezenas de metros, tudo dentro do estuário”, diz Mario Barletta, que, com seu grupo, percorre os estuários da América do Sul. Outra conclusão é que esses locais de reprodução, desova, crescimento, proteção e alimentação de peixes variam ao longo do ano, de acordo com as fases da lua e o regime de chuvas, com diferentes níveis de turbidez, salinidade e concentração do oxigênio dissolvido na água. “Esses refúgios, muitas vezes localizados em canais bem estreitos dos manguezais, podem estar mais longe da costa, quando chove muito, ou mais perto, quando chove pouco”, diz Barletta.
Comuns em todo o litoral brasileiro, exceto no Rio Grande do Sul, os manguezais são protegidos por lei federal, mas estão perdendo espaço para estradas, condomínios residenciais e indústrias, e ganhando poluição. Sem seus refúgios, peixes e tartarugas marinhas em crescimento mudam a dieta e comem até plástico. No estuário do rio Goiana, uma área de 475 mil metros quadrados coberta por manguezal entre os estados de Pernambuco e Paraíba, Barletta e sua equipe analisaram 60 bagres-amarelos (Cathorops spixii), 60 bagres-brancos – (C. agassizii) e 62 bagres-guiris (Sciades herzbergii), espécies bastante consumidas pelos ribeirinhos. Abriram a barriga de cada um deles e, em pelo menos 20% dos exemplares de cada espécie, encontraram pedaços de fios de náilon de cordas de barcos ou de redes de pesca. Fernanda Possatto, Barletta e outros pesquisadores da UFPE alertam que não é possível quantificar o alcance desse fenômeno nem as consequências desse tipo de poluição, mas recomendam mais cuidados para evitar que ela prejudique ainda mais a vida dos peixes e das pessoas.
Não é só lá. No estuário de Paranaguá, uma área de 600 quilômetros quadrados coberta por matas e manguezais na Região Sul do país, pesquisadores da UFPE, da Universidade Federal do Paraná e do Instituto de Pesquisas Cananeia, de Campinas, coletaram 80 carcaças de tartarugas-verdes (Chelonia mydas) jovens capturadas em redes de pesca de junho de 2004 a julho de 2007. No estômago e nos intestinos de 76 delas, além de algas, plantas do mangue e conchas com que costumam se alimentar, eles encontraram restos de sacolas plásticas, fios de náilon e pedaços de placas de poliestireno, como detalhado na edição de fevereiro da revista Endangered Species Research. Segundo Barletta, esse fato indica que as separações espaciais do estuário – dividido em áreas de preservação ou de pesca artesanal, porto e desenvolvimento urbano ou turístico – não estão funcionando. Outros estudos de seu grupo haviam detectado resquícios de metais pesados, principalmente mercúrio, e de outros tipos de resíduos em peixes que passam ao menos parte da vida em manguezais.
Barragens
Os manguezais estão encolhendo e se tornando mais poluídos em toda a costa da América do Sul. Especialistas do Brasil, da Argentina, da Venezuela e da Colômbia concluíram que, além da sobrepesca, a perda desses ambientes naturais causada pelo despejo de esgotos e resíduos da mineração e de outras atividades industriais marca as nove principais bacias hidrográficas e estuários sul-americanos: a bacia do rio Madalena, na Colômbia; a do rio Orinoco, na Venezuela; a bacia amazônica, incluindo terras do Brasil, Peru e Bolívia; os estuários do rio Goiana, entre Pernambuco e Paraíba, do rio Paranaguá, no Paraná; da lagoa dos Patos, no Rio Grande do Sul; a bacia e o estuário dos rios da Prata e Paraná, na fronteira de Argentina, Paraguai e Brasil.
De acordo com esse levantamento, que resultou em um estudo de 59 páginas publicado em 2010 na Journal of Fish Biology, a construção de barragens fragmentou o curso de rios como o Paraná e o Uruguai e promoveu mudanças severas em manguezais e em outros ambientes costeiros em que os peixes vivem. A dragagem de estuários, como foi feito em Paranaguá para a construção do porto na porção mais interna do estuário, causou uma redução no número de espécies. Na bacia do rio Urucu, um afluente do Amazonas, o principal problema detectado foi a poluição causada pelo vazamento de óleo no momento da prospecção.
Barletta recomenda a valorização, a preservação e a recuperação desses ambientes. Para ele, os manguezais, mesmo sob tantas pressões, não precisam permanecer intocados. “Podemos explorar, claro, mas com critérios”, sugere. Metade da área de manguezais desapareceu nos últimos 50 anos no mundo todo, como resultado do crescimento de cidades nas zonas costeiras, de acordo com um estudo de Daniel Donato, do Serviço Florestal dos Estados Unidos, publicado em abril na Nature Geoscience. Esse trabalho traz uma conclusão que pode contribuir para preservar esses espaços inegavelmente fétidos: os manguezais são uma das florestas mais ricas em carbono do mundo. A perda dessas matas pode gerar o equivalente a 10% do total de gás carbônico emitido pelo desmatamento, mesmo que os manguezais respondam por apenas 0,7% do total das florestas tropicais do mundo.
“Os manguezais são ambientes muito frágeis e sensíveis à contaminação”, observa Itamar Soares de Melo, pesquisador da Embrapa, que coordenou um levantamento de microrganismos em manguezais de São Paulo. No município de Bertioga, ele encontrou bactérias do gênero Pseudomonas que produzem compostos capazes de degradar hidrocarbonetos como os do petróleo.
Henrique Santos, Raquel Peixoto e outros pesquisadores da Universidade Federal do Rio de Janeiro verificaram que as populações de microrganismos antes e depois da chegada dos contaminantes mudam bastante. As populações de bactérias dos gêneros Mirinobacterium, Marinobacter, Clostridium e Fusibacter se ampliam, enquanto as dos gêneros Haliea e Chromatiales caem bastante. Os pesquisadores acreditam que essas alterações podem ajudar a prever os possíveis impactos ambientais em regiões como a baía de Sepetiba, no Rio de Janeiro, que abriga o porto de Itaguaí, em obras de dragagem para receber navios maiores.
Melo e sua equipe identificaram novas espécies de microrganismos adaptados à alta salinidade nos manguezais, um ambiente seletivo também para as plantas, pois apenas poucas espécies de árvores vivem nesses espaços, algumas com raízes expostas, que facilitam sua fixação no lodo. Em manguezais sem poluição, Melo encontrou também espécies não patogênicas de bactérias do gênero Vibrio vivendo no interior de árvores. “As bactérias podem estar suprindo as plantas com nitrogênio e fósforo, nutrientes importantes para o crescimento, mas escassos naquele ambiente”, comenta.
GUEBERT-BARTHOLO, F.M. et al. Using gut contents to assess foraging patterns of juvenile green turtles Chelonia mydas in the Paranaguá Estuary, Brazil. Endangered Species Research. v. 13, p. 131-43. 2011.
BARLETTA, M. et. al. Fish and aquatic habitat conservation in South America:
a continental overview with emphasis on neotropical systems. Journal of Fish Biology. v. 76, p. 2.118-76. 2010.