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Ciências atmosféricas

Uma possível origem das estiagens de verão do Sudeste

Aumento das chuvas no oceano Índico gera perturbações que se propagam na atmosfera e concentram ar seco e quente sobre a região mais populosa do Brasil

Em 2014 o sistema Cantareira, responsável por boa parte do abastecimento de água em São Paulo, chegou a níveis perigosamente baixos

Léo Ramos Chaves

No verão de 2014, a seca mais intensa e duradoura dos últimos 50 anos castigou o Sudeste brasileiro, região que produz 60% das riquezas nacionais e boa parte da eletricidade do país, além de abrigar 80 milhões de pessoas. A falta de chuvas causou prejuízos na produção agrícola nacional (em especial, café e soja) e problemas de abastecimento de água nas cidades. Na Região Metropolitana de São Paulo, uma das mais populosas do mundo, os reservatórios hídricos chegaram próximos ao esgotamento e houve racionamento. O verão é o período de maior pluviosidade na região. De modo geral, de dezembro a março, cai um total de 570 milímetros (mm) de chuva. Em 2014, no entanto, a pluviosidade foi 44% inferior ao normal (choveu, ao todo, 250 mm) acompanhada de aumento importante da temperatura sobre o continente e boa parte das águas do Atlântico Sul. Estudos publicados na época sugeriam que a causa da seca naquele ano fosse a formação de um bolsão de ar quente e seco sobre o oceano próximo à costa, que teria se estendido até o continente, impedindo a chegada de nuvens carregadas de umidade vindas da Amazônia.

Agora, em um artigo publicado nesta segunda-feira (8/7) na revista Nature Geoscience, a oceanógrafa brasileira Regina Rodrigues, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), apresentou uma explicação diferente e possivelmente mais completa para a origem da seca e das ondas de calor de 2014. “São fenômenos interligados que têm uma causa comum e remota”, afirma a pesquisadora. Em parceria com colaboradores da Universidade de Nova Gales do Sul, na Austrália, e da Administração Nacional Oceânica e Atmosférica (Noaa), dos Estados Unidos, Rodrigues analisou dados de temperatura média da superfície do mar, umidade e pressão atmosférica em todo o planeta para os verões do período 1982-2016. O grupo encontrou indicações de que as estiagens prolongadas de verão do Sudeste brasileiro, acompanhadas de aumento da temperatura, são fenômenos na maior parte (60%) das vezes originados a quase 20 mil quilômetros de distância, no oceano Índico, que banha o leste da África, o oeste da Austrália e o sul da Ásia.

Entrevista: Regina Rodrigues
     

A formação de nuvens carregadas e a precipitação intensa sobre o Índico geram perturbações na atmosfera que se propagam em direção a leste e chegam à América do Sul depois de quase uma semana. Aqui, essa perturbação se manifesta na forma de uma grande massa de ar seco e quente que se acumula sobre o Sudeste brasileiro e parte do Atlântico Sul. Ela inverte o sentido dos ventos, fazendo-os girar no sentido anti-horário, e impede a formação local de nuvens de chuva por evaporação das águas superficiais. A massa de ar seco também bloqueia a chegada de uma grande massa de vapor-d’água originada na Amazônia, que, no verão, costuma se deslocar rumo à região Sudeste, abastecendo os reservatórios de água superficiais e levando umidade para o oceano. Com o bloqueio, essa umidade é desviada para uma região mais ao sul, provocando chuvas intensas no Uruguai e norte da Argentina.

Causa da estiagem, a massa de ar quente estacionada sobre o Centro-Sul do país também contribui para o aumento da temperatura na região. A ausência de nuvens faz mais radiação solar chegar ao continente e à superfície do oceano, elevando a temperatura. Em 2014, o aumento de radiação foi da ordem de 40% e elevou, em média, em 5 graus Celsius (°C) a temperatura no Sudeste e em 3 °C a de boa parte do Atlântico Sul, gerando, respectivamente, ondas de calor terrestres e marinhas – em 2014, as ondas de calor marinhas duraram quase 100 dos 120 dias do verão. Apesar de o calor levar a um aumento inicial da evaporação no oceano, a intensidade dos ventos carregados de umidade (e capazes de formar nuvens) é menor, o que dificulta a ocorrência de chuvas. Além disso, a partir de certo ponto, o ar próximo à superfície marinha se torna saturado de umidade, reduzindo ainda mais a evaporação. “Alguns pesquisadores chegaram a pensar que o aumento da temperatura na superfície do oceano fosse a causa da seca”, conta Rodrigues. No entanto, parece ocorrer o contrário: a temperatura no oceano aumenta em consequência das condições que originaram a seca.

“É um trabalho inovador por explicar o mecanismo físico que causa a maior parte das secas intensas e dos extremos de temperatura no ar e no oceano que ocorrem no verão no Sudeste brasileiro, ainda que não explique por que, naquele ano, esses fenômenos foram tão intensos e os mais longos do registro histórico”, comenta o climatologista Carlos Nobre, pesquisador sênior do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA-USP). O estudo torna clara a existência de uma interação entre oceano e atmosfera por trás do fenômeno, avalia o meteorologista Tercio Ambrizzi, do Instituto de Astronomia, Geofísica e Ciências Atmosféricas (IAG) da USP. “Esse trabalho abre caminho para aprimorar os modelos que levam em consideração a interação oceano-atmosfera e, assim, melhorar as previsões de tempo e clima”, afirma o pesquisador, que anos atrás havia investigado a seca de 2014 em parceria com colaboradores do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) e da Universidade Federal de Itajubá. Em artigo publicado em 2016 na revista Climate Dynamics, o grupo do qual participou Ambrizzi explicou a seca do ponto de vista atmosférico, mas não fizeram a conexão com o aumento da temperatura da superfície do oceano, que também haviam observado. “A novidade do estudo da Nature Geoscience é mostrar que os dois fenômenos estão ligados e têm uma causa comum.”

O mecanismo apresentado agora não explicaria apenas um fenômeno episódico. Durante um estágio de pós-doutorado realizado em 2015 na Universidade de Oxford, na Inglaterra, Regina Rodrigues e seu supervisor, Tim Woollings, analisaram dados de temperatura, umidade e chuva em todo o planeta para o período entre 1979 e 2014. Na época, eles já haviam notado que o padrão observado no verão de 2014 repetia o ocorrido em 1984 e 2001, dois anos de seca e calor intenso no Sudeste brasileiro – o último foi marcado, inclusive, por queda na produção de energia pelas hidrelétricas, o que exigiu a adoção de medidas para reduzir o consumo de eletricidade. Nos três casos, os dias mais secos e de onda de calor ocorriam cerca de uma semana depois de aumentos anormais na precipitação no oceano Índico, relatou a dupla em artigo publicado no Journal of Climate em 2017.

Para o geocientista Antonio Donato Nobre, pesquisador do Centro de Ciência do Sistema Terrestre do Inpe e estudioso das interações entre atmosfera e biosfera, o estudo da Nature Geoscience indica haver uma coincidência temporal e espacial entre a troca de calor e formação de nuvens sobre o oceano Índico e a propagação de ondas de calor até os oceanos próximos ao Brasil, mas não fornece suas causas físicas originais. Ele e a física Anastassia Makarieva, do Instituto de Física Nuclear de São Petersburgo, na Rússia, investigam a circulação atmosférica da umidade emitida pela floresta amazônica e afirmam que o desmatamento produz supressão da evaporação sobre a região desmatada e aquecimento de áreas próximas. Segundo a dupla, no Brasil, o desmatamento intenso no sul e sudeste da Amazônia poderiam gerar as ondas de calor em uma região vizinha do território nacional, como a que afetou o Sudeste em 2014. Já, na Ásia, a derrubada massiva de floresta na região de Bornéu diminui a formação de nuvens de chuva sobre a ilha, mas aumenta sobre o Índico, o que poderia levar à perturbação atmosférica que se propagou até o Sudeste brasileiro. “Nos dois casos, o desmatamento pode ser a chave para os mecanismos descritos no artigo, mas não é mencionado”, comenta Antonio Nobre.

Léo Ramos ChavesMargens de represas ficaram secas durante estiagem prolongada de 2013-2014Léo Ramos Chaves

Regina Rodrigues acrescenta, no entanto, que a floresta amazônica não é a única fonte da umidade que chega ao Sudeste e afirma que o desmatamento na Amazônia não seria capaz de criar a circulação anti-horária de ventos que desvia as chuvas do Sudeste para uma região mais ao sul. “A derrubada da floresta não causa a seca, mas certamente pode agravá-la”, diz a oceanógrafa.

No trabalho publicado em julho deste ano, a oceanógrafa da UFSC e seus colaboradores também constataram que os verões secos e quentes do Sudeste estão ocorrendo com mais frequência e intensidade nos últimos 20 anos. A análise de valores da temperatura da superfície do Atlântico coletados entre 1982 e 2016 indica uma tendência de aumento na frequência, intensidade, duração e extensão das ondas de calor marinhas, em especial a partir do ano 2000. “Entender os processos físicos que levam à ocorrência desses extremos de temperatura pode nos ajudar a prever quando eles vão ocorrer no futuro”, contou a oceanógrafa brasileira Andréa Taschetto, pesquisadora da Universidade de Nova Gales do Sul (NSW), na Austrália, e coautora do trabalho publicado na Nature Geoscience, em um comunicado à imprensa.

Em terra, os aumentos anormais na temperatura como o de 2014 colocam em risco a saúde das pessoas e, no mar, a sobrevivência de organismos aquáticos. Acima de 36,5 °C, a temperatura do corpo humano, o organismo não consegue mais perder calor e se resfriar por meio da transpiração – o aumento da temperatura corporal pode levar à morte de pessoas com saúde debilitada ou idosas. Rodrigues, Taschetto e os colegas Alex Sen Gupta, de NSW, e Gregory Foltz, da Noaa, observaram, a partir da análise de imagens de satélite, que no verão de 2014 houve uma redução da clorofila no mar, um indicativo da diminuição do fitoplâncton marinho. O fitoplâncton são algas microscópicas que produzem oxigênio e são a base da cadeia alimentar nos oceanos, servindo de alimento para crustáceos e outros organismos marinhos.

“Em outras regiões, como na costa oeste da Austrália, foi comprovado que as ondas de calor marinhas de 2011 causaram mortalidade de certos organismos e diminuíram a pesca na região”, relatou Gupta à imprensa. Segundo Rodrigues, suspeita-se que as ondas de calor marinhas de 2014 possam ter afetado a pesca na porção oeste do Atlântico Sul, como ocorreu na Austrália.

Artigos científicos
RODRIGUES, R. R. et al. Common cause for severe droughts in South America and marine heatwaves in the South Atlantic. Nature Geoscience. on-line. 8 jul. 2019.
RODRIGUES, R. R. e WOOLLINGS, T. Impact of Atmospheric Blocking on South America in Austral Summer. Journal of Climate. v. 30, n. 5, p. 1821-37. mar. 2017.
COELHO, C. A. S. et al. The 2014 southeast Brazil austral summer drought: Regional scale mechanisms and teleconnections. Climate Dynamics. v. 46, n. 11-12, p. 3737-53. jun. 2016.

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