Quem poderia supor que minúsculos ovos de libélula pudessem ser problema para a poderosa indústria automobilística? No entanto, depois de uma revoada de libélulas é prática comum nos pátios das montadoras esguichar água sobre os carros. Poucos entendiam por quê, mas o fato é que os ovos desses insetos aquáticos deixam manchas irreversíveis na pintura dos carros. Recentemente, um estudo de Etelvino Bechara e Cassius Vinicius Stevani, do Departamento de Bioquímica do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP), revelou que o dano é químico: em contato com a lataria quente do carro exposto ao sol, os ovos de libélula produzem um ácido forte, semelhante ao sulfúrico, capaz de corroer a camada protetora da pintura. Em novembro último, esse estudo ganhou o Prêmio Abrafati (da Associação Brasileira de Fabricantes de Tintas).
O problema é mais freqüente de março a maio, época de revoada e acasalamento. As libélulas voam em direção aos carros, atraídas pela luz refletida na superfície – lisa e brilhante como a água onde costumam pôr os ovos -, e ali fazem a postura. Três ou quatro horas depois, os danos são visíveis: manchas opacas mais ou menos circulares com cerca de 5 milímetros de diâmetro. E de nada adianta lavar ou polir o carro.
Boa pergunta
Levantado pela General Motors, o problema foi levado à Renner DuPont, fabricante da resina acrilomelamínica que faz parte da tinta usada nos carros. Na época, a imprensa destacava uma pesquisa de Bechara sobre a bioluminescência de vagalumes. Então, os técnicos da Renner procuraram o pesquisador com a pergunta óbvia que os atormentava: por que os ovos de libélula danificam a resina?
Achar a resposta não era simples, alertou Bechara. Ele e Stevani nunca haviam trabalhado com libélulas e, aparentemente, o assunto nada tinha a ver com as pesquisas que faziam. Mas aceitaram o desafio: atacaram o problema com um estudo bem específico – Natureza Química de Danos Causados a Filmes de Resina por Ovos de Libélulas: um Problema da Indústria de Tintas Automotivas -, financiado pela FAPESP como projeto de pós-doutoramento de Stevani. Além de dois anos de trabalho, a pesquisa exigiu habilidade para transitar por várias áreas do conhecimento. “O primeiro passo”, conta Bechara, “foi buscar informações sobre esses insetos.”
Acasalamento
Uma pesquisa que envolveu o Museu de Zoologia e o Instituto de Biociências da USP mostrou o que eles precisavam saber sobre o comportamento das libélulas. Aquáticas e predadoras, elas vivem em regiões de águas limpas, mas podem ser encontradas a alguns quilômetros de lagos, rios e represas – o tipo do lugar, aliás, onde ficam as montadoras de carros da região paulista do ABC. Na fase larval, as libélulas alimentam-se de insetos aquáticos, girinos e até peixinhos – e servem de comida para peixes maiores. Adultas, comem abelhas e outros insetos alados, inclusive os da própria espécie. Também são um dos alimentos prediletos de pássaros.
Para entender o que ocorre com a pintura dos carros, foi importante descobrir que as libélulas são atraídas pela luz refletida em espelhos d’água, onde depositam os ovos. Ou seja: tudo indica que confundem a lataria brilhante dos carros com um laguinho. Outros detalhes curiosos vieram à tona. As libélulas copulam durante o vôo e, como a fecundação só ocorre na fase da postura, o macho persegue a fêmea até que ela ponha os ovos, para evitar o assédio de outros machos. A disputa pela reprodução é acirrada. O macho tem um aparato que usa como espátula para remover o esperma eventualmente já depositado por outro. Por isso, depois do coito, é comum que o macho segure a fêmea pelo pescoço com uma pinça abdominal, até que ela ponha os ovos.
Pontos fracos
Outro caminho foi o estudo da composição da resina acrilomelamínica. Muito usada no revestimento das chapas de automóveis e também de eletrodomésticos, ela forma sobre a pintura uma camada protetora, como um verniz. Assim, confere à pintura mais durabilidade e dureza, bem como resistência ao calor e aos riscos. Uma análise da estrutura química desse polímero, contudo, mostrou seus principais pontos de fragilidade. “A resina poderia ser atacada por ácidos, luz, enzimas presentes nos ovos ou radicais livres”, afirma Stevani.
O levantamento desses dados levou os pesquisadores a formular três hipóteses para explicar o efeito dos ovos na resina. O dano poderia ser fotoquímico: alguma substância presente nos ovos seria capaz de absorver a luz solar, causando a degradação da resina. Outra possibilidade seria de dano microbiológico: o material orgânico que envolve os ovos – um gel protéico que garante proteção e serve de alimento para o embrião quando o ovo eclode – poderia servir de substrato para o desenvolvimento de fungos, capazes de lesar o polímero. A terceira hipótese era de dano químico: alguma substância ácida presente nos ovos seria responsável pela transformação da resina, de modo que o ácido funcionaria como agente corrosivo da resina na área de contato com o ovo.
Chuva ácida
Devido à sensibilidade da resina a substâncias ácidas, a suspeita de dano químico foi a mais cogitada desde o início. E um acontecimento relativamente casual – uma chuva ácida ocorrida em Sumaré (SP) – os fez perseguir com mais convicção essa hipótese. “Mais uma vez fui procurado pela Renner DuPont, que nos convidou a ir até a fábrica da Honda em Sumaré, para analisar os danos que haviam ocorrido nos carros”, conta Bechara.
O pH da chuva coletada era 3 – grau de acidez bem superior ao das chuvas da capital, que gira em torno de 4,5 – e ela era rica em ácidos sulfúrico, nítrico e clorídrico, além de compostos orgânicos. O que mais chamou a atenção foi a semelhança entre os danos provocados pela chuva ácida e pelos ovos de libélula. A partir daí, os pesquisadores passaram a estudar os efeitos de vários ácidos sobre painéis recobertos com pintura automotiva, cedidos pela Renner DuPont, e a compará-los com os danos produzidos por ovos de libélula.
Captura no Tietê
Para obter os ovos necessários aos experimentos, Stevani partiu para a caça às libélulas. Viajou para Novo Horizonte (SP) durante o período de oviposição (postura) da espécie – entre março e maio – e planejou uma aventura de barco por entre a vegetação aquática do rio Tietê, sempre entre as 11 horas e as 3 da tarde, o horário mais propício.
Stevani diz que não foi difícil coletar a matéria-prima para o estudo: “Segurava as libélulas pelas asas para identificar as fêmeas, fáceis de distinguir porque os machos têm uma protuberância no abdome. Com um toque suave dos dedos no abdome, as fêmeas liberavam os ovos, colhidos num tubo de ensaio com água destilada.” Dos insetos capturados, só dois foram trazidos, para reconhecimento da espécie – os outros eram soltos imediatamente.
Ovos inocentes?
Até então, pensava-se que os ovos continham alguma substância ácida capaz de danificar a resina. Mas, depois de uma análise química, descobriu-se que a ação dos ovos não era ácida, mas neutra. Essa constatação poderia ter derrubado a hipótese de hidrólise ácida da resina, mas acabou por ajudar a reforçá-la, graças à experiência multidisciplinar dos pesquisadores.
Envolvido em estudos com vagalumes e radicais livres por mais de duas décadas, Bechara sabia de um processo que ocorre assim que os ovos são postos: “O ovo absorve grande quantidade de oxigênio, numa atividade conhecida como explosão respiratória, para a produção de água oxigenada, e esta reage com uma proteína presente no ovo para formar um polímero que dá maior resistência.” Nesse processo, chamado esclerotização, a superfície externa do ovo endurece e escurece – ou seja, forma-se a casca. Ainda acreditando na hipótese de dano ácido à resina, Bechara considerou que a substância ácida não precisaria estar presente no ovo: ela poderia formar-se a partir de determinadas condições físico-químicas.
Os pesquisadores atentaram então para o fato de que o processo de esclerotização dos ovos postos nos automóveis ocorria a alta temperatura – que, num carro ao sol, pode chegar a 50° C se ele for branco ou prateado e 92° C se for preto. Perceberam então que a cisteína – um aminoácido do ovo -, quando em contato com água oxigenada, produzia ácido cistéico, semelhante ao ácido sulfúrico. Isso reforçou a hipótese de hidrólise ácida e justificou testes que, afinal, comprovaram: em temperatura igual ou superior a 70° C e na presença de água oxigenada, os ovos produzem ácido cistéico, capaz de danificar a resina de forma ainda mais intensa do que o ácido sulfúrico.
Pesquisadores
Os testes que comprovaram e consolidaram a hipótese de dano químico envolveram outros pesquisadores. Dalva Lúcia de Faria, do Instituto de Química da USP, cuidou da caracterização espectroscópica do dano por uma técnica que permitiu constatar, indiretamente, a presença de ácido cistéico nos ovos tratados com água oxigenada. Maria Teresa de Miranda e Cleber Liria, também do Instituto de Química, quantificaram o ácido cistéico formado nos ovos.
Marcelo Bariatto e Fábio Arraes, do Laboratóriode Sistemas Integrados (LSI) da USP, fizeram exames de microscopia de varredura de elétron e perfilometria, que permitiram a comparação visual dos danos causados à resina automotiva por diversos agentes químicos. Colaboraram também Jefferson Porto e Delson Trindade, da Renner DuPont, que forneceram os corpos-de-prova para os testes e tiraram eventuais dúvidas sobre a formulação de resinas automotivas. Ainda na USP, Cleide Costa, do Museu de Zoologia, e Francisco Cordeiro, do Instituto de Biociências, identificaram as libélulas.
Para o público
Embora a pergunta da indústria tenha sido respondida, o trabalho de Bechara continua. Na seqüência do projeto, ele pretende desenvolver um produto que o consumidor possa usar para proteger o carro de danos provocados por insetos aquáticos. Por isso, algumas descobertas do estudo são mantidas em sigilo. Segundo o pesquisador, o produto deverá beneficiar principalmente os carros escuros, mais afetados porque absorvem mais luz e cuja lataria atinge temperaturas superiores a 70° C ao sol. Já os brancos e prateados raramente são afetados.
Segundo Bechara, algumas montadoras, como a Honda, adotaram uma solução paliativa: “Elas passaram a recobrir os carros com filmes de polietileno, para protegê-los enquanto permanecem nos pátios.” Mas, além de pouco ecológica, a solução não resolve o problema do consumidor. Na opinião de Bechara, a solução definitiva envolveria um empenho da indústria para mudar a composição da resina, tornando-a mais resistente à ação de ácidos, o que também reduziria os danos provocados por chuva ácida – mas não impediria que as inocentes libélulas continuassem a perder a prole, ludibriadas por uma ilusão de ótica.
Miragens fatais
Originada de uma indagação da indústria, a pesquisa também tem implicações ecológicas. Afinal, longe da água, os ovos de libélula não cumprem seu ciclo natural: eles se perdem, o que é um obstáculo à preservação da espécie. E, além dos automóveis, outras superfícies lisas, como o asfalto – principalmente quando molhado -, os pisos cerâmicos e os vidros, também produzem reflexos que atraem libélulas.
Por isso, as descobertas de Bechara e Stevani chamaram a atenção do pesquisador húngaro Gábor Horváth, da Lorand Eotvos University, de Budapeste. Por estudar há vários anos esse fenômeno de atração, ele ajudou a esclarecer o que ocorre em centenas de lagoas de óleo formadas no deserto do Kuwait com a explosão de poços de petróleo na Guerra do Golfo, em 1991.
Segundo um artigo de Horváth publicado pela revista Nature (25 de janeiro de 1996, vol. 379, pág. 303), essas lagoas brilhantes produzem um efeito ainda mais forte do que a superfície da água, atraindo grande quantidade de libélulas e outros insetos aquáticos, além de aves. No outono e na primavera, transformam-se em armadilhas devastadoras para espécies em migração.
A visão é desoladora: grandes depósitos de carcaças, onde os que conseguem sobreviver perdem ali talvez sua última chance de procriar, o que põe certas espécies sob risco de extinção.
O PROJETO
Natureza Química de Danos Causados a Filmes de Resina por Ovos de Libélulas: um Problema da Indústria de Tintas Automotivas
Modalidade
Auxílio a projeto de pesquisa
Coordenadores
Etelvino José Henriques Becharae Cassius Vinicius Stevani -Departamento de Bioquímica do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP)
Investimento
R$ 12 mil mais US$ 8 mil