Um esforço silencioso de quase 20 anos pode levar a um avanço sem precedentes na história da luta contra a hipertensão, a chamada pressão alta. Trabalhando de maneira quase tão discreta quanto o modo sorrateiro com que esse mal se instala no organismo, a bióloga molecular Dulce Casarini, do grupo de Nefrologia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), identificou uma nova forma da enzima conversora de angiotensina I (ECA) que funciona como marcador biológico da doença em ratos e – aí vem a melhor parte da história – parece desempenhar o mesmo papel em seres humanos. Trata-se da ECA de peso molecular de 90 kDA (quilodáltons, unidade de massa atômica), forma alternativa da enzima descoberta pela própria Dulce em 1982.
Seus estudos revelam que animais hipertensos ou mesmo sadios, mas com predisposição a desenvolver pressão alta, sempre carregam esse composto na urina. Já animais sadios, sem tendência a desenvolver pressão alta, não apresentam essa forma da enzima. Se a relação entre a ECA de 90 kDa e a hipertensão também for verdadeira para nossa espécie, Dulce terá descoberto o primeiro marcador relacionado ao aparecimento da hipertensão.
“Com a supervisão de Frida Plavnik e de Odair Marson, da Nefrologia, analisamos a urina de cerca de 1.500 pessoas hipertensas e de 550 indivíduos com pressão normal e todas as evidências científicas levam a crer que essa forma da enzima é mesmo um marcador da hipertensão humana”, afirma a pesquisadora da Unifesp. A conclusão é sempre a mesma: quem tem o marcador e ainda não é hipertenso, poderá um dia ser hipertenso. A menos que mude de estilo de vida – deixe de fumar, passe a fazer exercícios, diminua o consumo de álcool, perca peso e reduza o sal na dieta -, a elevação de sua pressão arterial é apenas uma questão de tempo.
As evidências de que a ECA de 90 kDa pode ser um marcador eficiente de hipertensão são fruto do cruzamento de dados de uma série de estudos com ratos e seres humanos. Confrontando as informações fornecidas pela análise da urina de animais e de pessoas com pressão normal e hipertensas, Dulce e o médico José Eduardo Krieger, diretor do Laboratóriode Genética e Cardiologia Molecular do Instituto do Coração da Universidade de São Paulo (Incor/USP) e seu principal colaborador nas pesquisas, perceberam o papel-chave dessa forma da enzima. Três situações apareceram. Os indivíduos sabidamente hipertensos sempre apresentavam dois tipos de ECA, a de peso molecular de 90 kDa e outra de 65 kDa. O quadro fornecido pelos indivíduos sem pressão alta era mais complexo: alguns exibiam somente duas formas da enzima, as de 65 e 190 kDa, e outros tinham três variedades da ECA (65, 90 e 190 kDa).
Isoladamente, esses resultados não eram conclusivos, mas já apontavam uma boa pista a ser seguida. O acompanhamento sistemático dos dois grupos de pessoas sem pressão alta – aqueles com três e dois tipos de enzima – ajudou a fechar o raciocínio. Quem era sadio e não carregava a ECA de 90 kDa não se tornou hipertenso. Quem era saudável mas sua urina continha essa variedade da enzima tornou-se, depois de algum tempo, hipertenso. “Em alguns casos, essas pessoas começaram a apresentar pressão alta depois de três anos”, diz Dulce. Obviamente, a partir do momento em que ficaram hipertensos, esses indivíduos passaram a apresentar na urina apenas as duas formas típicas de ECA verificadas nesse tipo de doente, as de 65 e 90 kDa. Resumo de todo esse trabalho: a ECA de 90 kDa comporta-se como um marcador da hipertensão para a população em geral. O teste desenvolvido por Dulce é capaz de indicar a presença de cada uma das três formas estudadas da ECA na urina humana.
Enzimas bloqueadas
Em parceria com as equipes de Krieger, de Adriana Carmona e de Eduardo Cilli, do Departamento de Biofísica da Unifesp, Dulce desenvolveu umkit para medir a presença da proteína na urina humana. Na prática, se ficar comprovado que a ECA de 90 KDa é um marcador biológico da pressão alta, okit ganhará status de teste preditivo de hipertensão. Inédito no mundo, o exame poderá auxiliar os médicos na árdua tarefa de identificar os pacientes potencialmente hipertensos. A hipertensão atinge cerca de 10% da população do planeta, elevando os riscos de problemas cardiovasculares e renais.
Os pesquisadores paulistas já pediram a patente sobre o uso do marcador e do teste no Brasil, que pode detectar a existência da enzima com o auxílio de várias técnicas laboratoriais, como cromatografia ou espectrometria de massa. A partir do momento em que o registro de propriedade lhe for concedido em solo nacional, o que deve ocorrer em breve, a equipe tem seus direitos intelectuais preservados por um ano no exterior. “Vamos aproveitar esse período de moratória para entrar com os pedidos de patente nos Estados Unidos, Europa e Japão”, diz Krieger. Com essa proteção temporária praticamente em mãos, os pesquisadores, que mantinham a descoberta em sigilo, decidiram tornar público seu trabalho com o marcador de hipertensão. “Vamos enviar para várias revistas científicas seis artigos que já estamos escrevendo”, conta Dulce.
Para um mal com as peculiaridades da hipertensão, a criação de um teste capaz de apontar as pessoas que irão desenvolver essa doença é uma ótima notícia. Com fama justificada de ser uma assassina silenciosa, a alta pressão arterial não dá nenhuma dica de que se instalou no organismo. Durante um bom tempo, a pessoa não sente nada. Quando finalmente nota alguma alteração e procura um médico que lhe mede a pressão, vem o diagnóstico de hipertensão. O problema é que esse veredicto sempre é tardio. Nesse ponto, a pressão alta já promoveu danos nos sistema cardiovascular e, muitas vezes, também no rim. Segundo a Organização Mundial da Saúde, há cerca de 600 milhões de hipertensos no mundo. No Brasil, 20% dos adultos e metade das pessoas commais de 50 anos têm pressão alta. A população negra também é mais afetada do que as demais. Um terço das mortes do planeta se deve a problemas cardíacos, agravados pela hipertensão.
Sabe-se há décadas que a enzima conversora de angiotensina I desempenha um papel crucial no desencadeamento da hipertensão. A ECA atua no chamado sistema renina-angiotensina, importante para o equilíbrio da função cardiovascular. Produzida pelo rim, a renina é uma enzima proteolítica, capaz de quebrar grandes proteínas em compostos menores. Sua principal função é atuar sobre o angiotensinogênio, um substrato, uma proteína maior, que dá origem a um hormônio inativo, a angiotensina I. Como a enzima ECA entra nessa história? Quando o sangue passa pelos pulmões, a ECA transforma a inofensiva angiotensina I na perigosa angiotensina II, talvez a maior vilã da hipertensão. Essa segunda forma de angiotensina aumenta a constrição das artérias e estimula a liberação de hormônios que elevam a pressão sanguínea. A maior parte das drogas anti-hipertensivas, como o captopril e o enalapril, inibe a ECA. São remédios que impedem a ação dessa enzima, que, enfim, evitam a conversão da angiontensina I em angiotensina II.
Resultados intrigantes
Por causa de sua participação decisiva no mecanismo que eleva a pressão arterial, a ECA é objeto de muitos estudos. Várias formas de ECA, com diferentes pesos moleculares, já foram encontradas na urina humana. A mais comum de todas é a de 190 kDa. Dulce descobriu duas novas formas, a de 90 kDa, o candidato a marcador de hipertensão, e a de 65 kDa. “Não sei como ninguém observou isso antes”, reconhece a bióloga molecular. “É tão simples de medir.” Na primeira vez em que detectou a presença de ECA de 90 kDa na urina humana, há quase 20 anos, Dulce pensou que a medição era fruto de um artefato de técnica, jargão utilizado pelo pessoal de laboratório para designar a observação de um fenômeno ilusório causado por alguma imprecisão do método empregado ou, às vezes, do aparelho usado no experimento. Achava, em bom português, que a detecção dessa forma da enzima era decorrência de algum erro de procedimento. O tempo passou, a bióloga molecular iniciou outras pesquisas, mas nunca se esqueceu da intrigante experiência.
Nos anos 90, durante um de seus dois pós-doutorados realizados na França, a pesquisadora da Unifesp teve a oportunidade de discutir a questão com Pierre Corvol e François Alhenc-Gelas, duas autoridades mundiais em hipertensão e descobridores dos dois centros ativos da ECA. Fizeram novas análises com urina humana e o resultado foi o mesmo: a brasileira efetivamente havia encontrado uma nova forma da ECA, não descrita pela literatura científica. Ainda não se sabia para que poderia servir a descoberta, mas Corvol a incentivou a prosseguir nas pesquisas com a enzima. E, numa espécie de acordo de cavalheiros, assegurou que ninguém de sua equipe iria iniciar qualquer estudo sobre a ECA de 90 kDa. A promessa foi mantida.
De volta ao Brasil, em 1994, Dulce continuou suas pesquisas e estabeleceu uma parceria com Krieger, no Incor, que já estudava as bases genéticas da hipertensão. À medida que ganhava corpo a hipótese de a ECA de 90 kDa ser um marcador da hipertensão, a dupla passou a adotar uma postura bastante crítica em relação à possível descoberta. “Começamos a pensar em experimentos que pudessem mostrar que estávamos errados”, diz Krieger. Essa postura de “advogado do diabo” tinha como objetivo buscar respostas para algumas indagações que incomodavam os pesquisadores. Se parecia ser tão simples identificar essa forma da enzima na urina humana, por que ninguéma tinha encontrado até então? Seria apenas coincidência a enzima em sua forma de 90 kDa “perseguir” os hipertensos ou candidatos a sofrer de pressão alta?
Para ver se conseguiam encontrar algum furo na teoria do marcador de hipertensão, Dulce e Krieger executaram vários estudos, sobretudo com roedores. Viram, por exemplo, que ratos sadios, mas com predisposição a ser hipertensos – que carregavam, portanto, a ECA de 90 kDa -, continuam apresentando essa forma da enzima mesmo quando recebem tratamento para não desenvolver pressão alta. Independentemente de apresentar ou não a doença, os animais mantêm o marcador biológico, como era esperado.
Em outro trabalho, os pesquisadores literalmente apertaram com presilhas as artérias de animais com pressão arterial normal que não apresentavam predisposição a se tornar hipertensos (sem a enzima candidata a marcador biológico). O intuito, bem-sucedido, era criar hipertensão em ratos que, de forma natural, não iriam sofrer de pressão alta. Os ratos realmente ficaram hipertensos, mas, nem por isso, passaram a carregar a enzima. Enfim, tudo correu dentro do esperado, para alegria dos pesquisadores. “Felizmente, não conseguimos nos desmentir, pois tudo parecia muito bom para ser verdade”, comenta Krieger.
Testes em Vitória
O que ainda falta fazer para comprovar que a ECA de 90 kDa é um marcador da hipertensão humana? Em linhas gerais, os pesquisadores precisam produzir estudos de mais longo prazo para mostrar a prevalência dessa forma de enzima em várias gerações de uma mesma família, composta de indivíduos hipertensos e sem pressão alta. Com esse intuito, novas pesquisas serão conduzidas no Hospital do Rim e Hipertensão, da Unifesp, e no Incor. De imediato, Dulce e Krieger dispõem, para análise da eficiência do marcador, de 1.600 amostras de urina da população de Vitória. O material faz parte de um estudo coordenado por José Geraldo Mill, da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), que, em conjunto com a Secretaria de Saúde de Vitória, mapeou os principais fatores de risco cardiovascular entre os habitantes da capital capixaba.
Um ponto ainda obscuro é a origem da ECA de 90 kDa. Por enquanto, os pesquisadores desconhecem o mecanismo biológico que leva à sua formação. Não sabem se a enzima deriva de uma proteína maior, talvez de ECAs com pesos moleculares mais elevados que seriam quebradas por alguma enzima, ou se decorre de alguma alteração genética. Nessa segunda hipótese, uma mutação no gene responsável pela codificação da enzima poderia levar à síntese da ECA de 90 kDa.
Está praticamente descartada a hipótese de essa variante da enzima ser fruto de um “evento renal”. Ou seja, ser originada pelo processo de filtração feito pelo rim. O fato de Dulce já ter identificado, em ratos, a ECA de 90 kDa em vários tipos de tecidos – pulmão, adrenal, pâncreas, coração e aorta – ajuda a excluir essa hipótese. Afinal, se está presente em várias partes do corpo, essa forma de enzima não pode ser fruto da filtração renal. Durante o trabalho de elucidação das origens do misterioso composto, Krieger espera não só provar que a enzima é um bom marcador da hipertensão humana, mas, quem sabe, mostrar também que ela pode estar diretamente relacionada à gênese da pressão alta. “De qualquer forma, vamos ficar mais do que satisfeitos se conseguirmos mostrar que a enzima é, de fato, um marcador”, diz Krieger.
A identificação do possível marcador de hipertensão reforça a tradição da ciência brasileira de produzir boas notícias no setor. Na década de 60, o pesquisador Sergio Henrique Ferreira, da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da USP, descobriu a molécula BPF (fator de potenciação da bradicinina), que deu origem ao captopril, um dos remédios mais utilizados no mundo para o controle da pressão alta. Infelizmente, naquela época, não havia preocupação em requerer patentes e os lucros advindos do feito acabaram indo para a conta de um laboratório estrangeiro, que produziu o medicamento. No início deste ano, mais uma contribuição: o Centro de Toxicologia Aplicada do Butantan, um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids) financiados pela FAPESP, patenteou o princípio ativo de outra molécula, o Evasin, que poderá ser usada para produzir um fármaco anti-hipertensivo.
Agora, num claro sinal dos novos tempos, em que é prioritário defender os interesses da pesquisa nacional, foi a vez de o grupo da Unifesp e do Incor dar a sua contribuição para o combate à hipertensão. “Não patenteamos o marcador e okit pensando em ganhar dinheiro com isso”, afirma Dulce. “Queremos evitar é que alguém lucre com nosso trabalho e que, no futuro, tenhamos de pagarroyalties para usar produtos derivados de nosso esforço.”
Em setembro, quando esteve em Paris e contou os últimos resultados de suas pesquisas com o marcador ao amigo Pierre Corvol, a quem costuma levar a massa de brasileiríssimos pães de queijo, a pesquisadora da Unifesp ouviu o seguinte comentário: “É uma pena, para nós (que não descobrimos isso antes)”. A reação bem-humorada do atual presidente do conselho científico do Inserm (Instituto Nacional da Saúde e Pesquisa Médica) dá bem a dimensão do impacto do trabalho dos pesquisadores nacionais na luta contra a hipertensão.
Doze por oito para leigos
Quase todo mundo já ouviu o médico dizer que 12 por 8 é uma boa pressão. O que isso quer dizer? Antes de entender o significado dos dois números, é preciso compreender o próprio conceito de pressão arterial. Quando bate, o coração bombeia sangue pelas artérias, levando assim nutrientes para os tecidos. A força que o fluxo de sangue exerce sobre as paredes das artérias é chamada de pressão arterial. Todo mundo, obviamente, tem pressão arterial, e o ideal é que ela seja na maior parte do tempo dessa ordem, de 12 por 8. Mas e os dois números? O esfigmomanômetro, o popular aparelho para medir pressão, registra a força máxima e a mínima com que o sangue pressiona as artérias.
O primeiro número, de valor mais elevado, também chamado de pressão sistólica, é o pico de pressão sanguínea obtido no interior dos vasos durante a contração do coração. A pressão diastólica – ou mínima – é o valor da pressão sanguínea final obtida com o relaxamento do coração. A unidade usada universalmente para medir a pressão arterial é milímetros de mercúrio. Na linguagem coloquial, costuma-se omitir a unidade e dizer simplesmente “doze por oito”.
Quando as artérias se encontram estreitadas, o coração tem de bombear com mais força para que o sangue percorra os vasos e chegue aos tecidos. Isso faz com que a pressão arterial se torne permanentemente mais alta, sobrecarregando o músculo cardíaco. Se atinge freqüentemente os valores de 14 (durante a sístole), 9 (diástole) ou ambos, a pressão é classificada de alta.
Pressão alta não tem cura, mas pode ser controlada com remédios e um estilo de vida mais saudável: deixar de fumar, fazer exercícios, perder peso, reduzir o consumo de sal e de álcool. Com exceção de algumas formas de pressão alta originadas por problemas específicos, como distúrbios nos rins ou em glândulas endócrinas, nove de cada dez casos da doença não têm causa conhecida. Sabe-se apenas que há um componente hereditário. Filhos de pais hipertensos apresentam maior risco de desenvolver a doença. Os negros também são vítimas preferenciais da hipertensão. Na medicina, predomina a visão de que a doença é um problema com origens complexas. A pressão alta não decorre da ação de um único gene ou mecanismo, mas de um conjunto de fatores ainda obscuros.
O Projeto
Caracterização Molecular da Enzima Conversora de Angiotensina I (99/01531-0); Modalidade: Linha regular de auxílio a pesquisa; Coordenadora: Dulce Casarini – Unifesp; Investimento: R$ 193.214,88