Uma sala de pouco mais de 11 metros quadrados numa nova ala da Faculdade de Medicina Veterinária e Zootecnia da Universidade de São Paulo (USP), cuja porta está sempre fechada a estranhos, abriga uma pequena façanha da engenharia genética. Nesse acanhado compartimento, onde dois condicionadores de ar e um exaustor garantem a temperatura controlada entre 22 e 25 graus Celsius e as lâmpadas simulam a luz natural em 14 das 24 horas do dia, funciona um biotério com cobaias especiais.
Dentro de gaiolas de plástico dispostas nas prateleiras que ocupam as duas maiores paredes do ambiente, vive a primeira leva de camundongos geneticamente modificados no país. Os animais, mais de 30 exemplares – o primeiro nasceu em julho, mas o número pode variar de semana a semana, em razão de novos cruzamentos e eventuais baixas -, carregam alterações num gene, o Fbn1, responsável pela síntese da fibrilina 1, proteína fundamental para a formação do tecido conjuntivo.
Uma parcela dos roedores recebeu uma versão inativada do Fbn1, que simplesmente não produz fibrilina. Outra recebeu uma cópia do Fbn1 que dá origem a uma forma degenerada dessa proteína. Em seres humanos, essa segunda mutação genética leva à síndrome de Marfan, doença hereditária rara que causa crescimento excessivo dos membros, deslocamento da retina e problemas cardiovasculares, limitando a expectativa de vida a 40 anos. As duas linhagens de camundongos transgênicos foram obtidas por meio da manipulação das células-tronco de embriões, a metodologia mais avançada hoje em dia disponível para essa finalidade.
Os roedores transgênicosmade in Brazil representam, portanto, a independência nacional num campo importante: a produção de cobaias sob medida para o estudo de problemas de saúde de origem genética. “Com o domínio dessa técnica, vamos produzir nossos próprios modelos animais para o estudo de uma série de doenças que afetam o homem”, diz Lygia da Veiga Pereira, coordenadora do Laboratório de Genética Molecular do Instituto de Biociências da USP, que conduziu a manipulação nas células-tronco dos roedores. “Será mais prático e ainda vamos economizar dinheiro.”
O biotério com as cobaias fica na Medicina Veterinária porque não havia espaço físico no laboratório de Lygia para abrigá-lo. Além disso, pesquisadores da Veterinária, coordenados por José Antonio Visintin, estavam interessados em colaborar com o experimento do IB, montando um biotério para os camundongos, e dispostos a aprender a técnica para empregá-la na geração de animais transgênicos de grande porte. “Queremos alterar geneticamente suínos e bovinos”, comenta Visintin.
Encomendas
O sucesso na produção de camundongos geneticamente modificados levou a pesquisadora a receber as primeiras encomendas de cobaias sob medida, feitas pelo Instituto do Coração de São Paulo (Incor) e pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) do Rio de Janeiro. Atualmente, os brasileiros que precisam de cobais transgênicas têm de importar esse tipo de animal. O custo desses roedores modificados pode ser baixo, se pertencerem a linhagens já desenvolvidas lá fora. E muito elevado, na casa dos milhares de dólares, quando se trata de um animal com uma alteração genética ainda não realizada em nenhum laboratório do mundo.
A obtenção de animais geneticamente modificados depende do pleno domínio das técnicas de manipulação e cultura das células-tronco de embriões, uma das áreas de pesquisa que mais despertam debates hoje em dia, porque essas células podem ser usadas para fins como a clonagem de espécies. Lidar com esse tipo de célula suscita polêmicas das mais variadas, sobretudo se forem de embriões humanos. Por quê? Porque os embriões dos quais se extraem as células-tronco acabam morrendo após a retirada desse material. Por não trabalhar com células-tronco de embriões humanos, Lygia não enfrenta esse dilema ético.
Na prática, seu primeiro desafio para produzir camundongos transgênicos foi conseguir boas células-troncos de embriões de roedores, ou, na linguagem dos biólogos moleculares, células-tronco altamente pluri ou totipotentes. O que são exatamente essas células e para que servem? São as células primordiais, indiferenciadas, que darão origem a todas as células de um organismo com funções específicas: células nervosas, sanguíneas, musculares, germinativas, cardíacas e as demais (ver quadro). Portanto, a introdução de uma modificação genética no DNA (ácido desoxirribonucléico, portador do código genético e presente em todas as células) de células-tronco de embriões, como a executada pela bióloga molecular do IB nos camundongos, tem grandes chances de ser incorporada por todos os tipos de células que vão formar um organismo, gerando assim um ser transgênico.
A exemplo dos embriões, os seres adultos também têm células-tronco. O problema é que, até agora, só há evidências concretas de pluripotência no material retirado de embriões – e não no de animais em idade avançada. Por isso, quem se dedica a produzir cobaias transgênicas se vê obrigado a arranjar e cultivar em laboratório células-troncos de embriões de roedores, onde vai ser injetado o DNA alterado.Foi exatamente isso o que Lygia fez. Do blastocisto (um tipo de célula que antecede a formação do ovo-zigoto) de camundongos de pelagem agouti, a bióloga molecular retirou o chamado botão embrionário, a partir do qual estabeleceuin vitro linhagens de células-tronco embrionárias. Em seguida, substituiu no DNA dessas células-tronco uma das cópias normais do gene Fbn1 por uma das duas versões do gene modificado, o Fbn1 incapaz de produzir fibrilina ou o Fbn1 programado para codificar uma forma degradada dessa proteína.
Os quiméricos
Essas células-tronco modificadas foram, então, cultivadas e agregadas em laboratório a morulas – células que representam o estágio inicial do desenvolvimento embriônico, retiradas de óvulos fertilizados – de roedores normais, de pelagem branca. Esse novo conjunto de células formou um embrião, que, por sua vez, foi transplantado para uma “mãe de aluguel”, um camundongo de sexo feminino – e de pelagem branca. A ela cabe a tarefa de gerar uma ninhada de animais quiméricos.
Por que quiméricos? Esses animais são formados por dois tipos de células geneticamente distintas, uma vinda do embrião original e outra das células-tronco alteradas geneticamente. “O nível de quimerismo pode ser estimado a partir da coloração da pele, variando de 0 a 100%”, diz o russo Alexandre Kerkis, professor visitante do IB, que auxiliou Lygia no desenvolvimento dos camundongos transgênicos. Como a tonalidade agouti é dominante em relação à branca – e o gene alterado foi inserido em células-tronco de animais agouti -, as quimeras mais escuras apresentam maior quantidade de células derivadas das células-tronco modificadas. Ou seja, nelas a alteração genética se incorporou plenamente ao DNA. Já nas quimeras mais claras, obviamente, o grau de expressão da alteração genética é menor.
Nova linhagem
É por essa razão que, na hora de promover os cruzamentos finais que vão resultar na criação de uma linhagem estável de roedores transgênicos, os pesquisadores usam fundamentalmente as quimeras de pelagem agouti. “O processo de gerar uma nova linhagem de camundongos transgênicos demora cerca de um ano”, comenta Lygia, que aprendeu a técnica de manipulação de células-tronco embrionárias no início da década de 90, durante doutorado no Hospital Monte Sinai de Nova York.
É um processo demorado e, além das dificuldades com células-tronco e manipulação genética, sempre há o risco de se perder uma ninhada de camundongos transgênicos. Em setembro do ano passado, por exemplo, um leve descuido na assepsia do biotério fez uma colônia de camundongos que estava sendo manipulada para um experimento pegar sarna e ser descartada. Um pequeno acidente de percurso que atrasou o cronograma dos pesquisadores do IB e da Veterinária, mas não os tirou da rota traçada.
O futuro das células-tronco
As células animais capazes de se dividir indefinidamente em meio de cultura e originar outras, que desempenham tarefas específicas – formam o tecido nervoso, muscular ou cardíaco, por exemplo -, são chamadas de células-tronco. Há duas grandes categorias: as derivadas do embrião e as de adultos. As células-tronco embrionárias são mais pesquisadas que as adultas por serem mais versáteis. Normalmente, provêm do tecido fetal de uma gravidez interrompida ou, com maior freqüência, de óvulos fecundados in vitro não utilizados por casais com problemas de infertilidade. Os óvulos ficam armazenadas em clínicas e hospitais.
De acordo com seu estágio de evolução, esses óvulos podem oferecer células-tronco totipotentes (podem gerar todos os tecidos de um ser, além do próprio ser), pluripotentes (originam a maior parte dos tecidos) e multipotentes (transformam-se em alguns tipos de células). A retirada das células inviabiliza o embrião, fato que alimenta a polêmica das pesquisas com células-tronco embrionárias. “Essa questão está mal-posta”, opina Marco Antonio Zago, professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da USP. “Esses embriões foram descartados e nunca iriam gerar um ser.”
Em adultos, as células-tronco provêm da médula óssea, do cordão umbilical e, em menor quantidade, da própria corrente sanguínea. O problema é que ainda faltam evidências indiscutíveis de pluripotência nas células-tronco obtidas de seres desenvolvidos. “Houve alguns avanços nessa área nos últimos anos, mas o assunto ainda é controverso”, diz Zago, que pesquisa o sangue do cordão umbilical como fonte de células para doenças como leucemias.
O Projeto
Desenvolvimento de um Modelo Animal para a Síndrome de Marfan através da Manipulação do Genoma do Camundongo (nº 96/09031-9); Modalidade Programa Jovem Pesquisador; Coordenadora Lygia da Veiga Pereira – IB/USP; Investimento R$ 70.382,31 e US$ 100.645,00