Às vezes, o professor Carlos Menck provoca os alunos com a seguinte pergunta. O que surgiu primeiro: a molécula de DNA, portadora do material genético dos seres vivos, ou o mecanismo de reparo do DNA? Questões como essa não apenas intrigam e divertem esse pesquisador do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da Universidade de São Paulo. Também o levaram a obter avanços conceituais e aplicados: ajudaram a elucidar os mecanismos de sobrevivência da célula e, ao mesmo tempo, mostraram formas de corrigir defeitos genéticos que surgem em algumas células quando falham os dispositivos de reparo – e como resultado aparece o câncer.
Dos achados, resultaram uma série de artigos recentes, publicados em revistas de alto impacto científico, e algo raro para um pesquisador brasileiro: o convite para escrever um comentário acerca de uma pesquisa sobre genes de reparo feita por um grupo holandês, que saiu na edição da novembro da Nature Genetics.
Contida no núcleo de todas as células vegetais e animais, a molécula de ácido desoxirribonucléico não é das mais resistentes. A todo momento, quando as células se multiplicam, de modo a permitir a substituição da pele queimada pelo sol ou o crescimento das folhas, o DNA pode se quebrar ou ser copiado de maneira diferente da receita original. Altera-se também por ação da luz solar, por reações químicas ou mudanças no equilíbrio químico no interior da célula.
Mas por sorte existe um controle de qualidade rigoroso: já durante a replicação do DNA, algumas proteínas – as enzimas de reparo – verificam se a cópia saiu de acordo com o original, como um corretor ortográfico que substitui as letras trocadas tão logo as palavras terminam de ser escritas. Outras enzimas permanecem em alerta para, como funileiros, soldar o DNA nos pontos em que se romper. Não há folga. No organismo humano, apenas um tipo de lesão do DNA, gerada pelo próprio calor do corpo, a 37º Celsius, ocorre cerca de 10 mil vezes por dia em cada uma dos quase 100 trilhões de células.
Usando um desses genes de reparo, Menck conseguiu algo que desejava havia 15 anos: corrigir a falha genética de células retiradas de portadores de xeroderma pigmentosum (XP), um raro tipo de câncer de pele. Mais comum no Japão e no norte da África, esse tumor atinge cerca de 100 pessoas no Brasil e obriga seus portadores a evitar a exposição direta ao sol e a utilizar óculos escuros e roupas longas, para prevenir lesões na pele e nos olhos. Desse modo, a equipe da USP abriu um caminho para a pesquisa de terapia genética contra essa doença – uma abordagem inédita porque ninguém havia conseguido manipular esse gene, também chamado de XP por causa do problema que provoca, usando um adenovírus.
As descobertas da equipe da USP podem ainda facilitar o diagnóstico da enfermidade e a caracterização mais precisa de cada uma das oito formas em que a xeroderma se apresenta – algumas com complicações neurológicas, como retardo mental e espasmos musculares. Melissa Armelini e Ricardo Leite, integrantes desse grupo do ICB, trabalham para produzir um exame que permita diagnosticar a doença a partir de células extraídas do sangue – uma possível alternativa à técnica em uso, a biópsia, que consiste na retirada de um pedaço de pele.
Facilitar o diagnóstico, aliás, é um passo extremamente importante para prevenir o surgimento da doença, segundo um dos maiores especialistas sobre o assunto, o pesquisador James Cleaver, da Universidade da Califórnia, em São Francisco, nos Estados Unidos, que, em 1968, descobriu a causa da doença. Logo após os relatos dos primeiros casos, Cleaver verificou que a xeroderma pigmentosum aparecia quando havia um defeito num gene de reparo – hoje já se sabe que oito genes podem falhar em combinações variadas e gerar as diferentes formas da doença.
Quando sofrem mutações, esses genes se tornam incapazes de consertar os estragos que a luz ultravioleta do sol causa ao DNA. Como conseqüência, substâncias químicas disparam um alerta vermelho e a célula se suicida, num processo de morte celular programada chamado apoptose – um recurso extremo, acionado em caso de perigo iminente. A apoptose é também um processo de limpeza essencial por evitar que os erros se propaguem para as gerações seguintes e se intensifiquem a ponto de levar ao câncer. Em pessoas com xeroderma, a falha de reparo aumenta a freqüência de tumores na pele, em regiões expostas à luz solar.
Vetores virais
A equipe de Menck conseguiu consertar o DNA de um grupo de células in vitro valendo-se de um adenovírus modificado, incapaz de se replicar na célula. O adenovírus funcionou como vetor de dois genes que provocam formas distintas da doença, o XPA e o XPC, encontrados também em outros animais e em fungos. Como resultado, de 90% a 100% das células infectadas com o adenovírus voltaram a corrigir o DNA lesado pela luz ultravioleta do sol, enquanto apenas 9% das não-infectadas conseguiram restabelecer essa capacidade. Descritos na edição de outubro na revista Human Gene Therapy, esses resultados representam ainda um avanço metodológico, por terem sido obtidos com adenovírus, mais eficientes que os vetores usados anteriormente, os retrovírus – hoje uma escolha secundária também porque inserem seu material genético no genoma das células e podem se reproduzir ou ativar genes que induzem o aparecimento de câncer.
“Fomos os primeiros a produzir um adenovírus contendo o gene XPA”, assegura Menck. “Quando surgiram os primeiros resultados, não acreditei na eficiência desses vetores.” Com o tempo, os pesquisadores conseguiram ainda acrescentar outros genes no material genético do vírus. Em conjunto com Armando Moraes Ventura, do laboratório de vetores virais do ICB, por exemplo, puseram o vírus para levar um gene suicida, que chama para si tipos específicos de medicamentos e, portanto, pode ser usado para eliminar células tumorais. Em janeiro, uma pesquisadora da equipe, Maria Carolina Marchetto, embarca para a Universidade do Texas, nos Estados Unidos, com planos de realizar os primeiros testesin vivo do uso desses vírus XP, em camundongos com xeroderma pigmentosum. Se os vírus conseguirem proteger a pele desses camundongos da luz ultravioleta, estará aberta a possibilidade de melhorar a vida dos pacientes com essa doença, por meio da terapia genética.
Morte controlada
A equipe da USP fez outra descoberta importante: bastam pequenas doses da proteína XPA, produzida a partir do gene de mesmo nome, para evitar que as células morram quando expostas à radiação ultravioleta. É realmente uma quantidade discreta, equivalente a 20% da encontrada normalmente em células humanas. “Provavelmente, a proteína é bastante estável e não se degrada facilmente”, comenta Melissa. Num artigo publicado em março na Carcinogenesis, Alysson Muotri, da mesma equipe, demonstrou que a proteína XPA é segura e não afeta o funcionamento da célula, mesmo quando produzida em quantidades elevadas – a chamada superexpressão, que ocorre quando o gene é conduzido pelos adenovírus.
Mas não se deve pensar que os resultados se aplicam somente à xeroderma pigmentosum. Em primeiro lugar, porque há outras doenças causadas por problemas nos mecanismos de reparo de DNA e, entendendo-se uma, fica mais fácil compreender as outras, até porque agora está razoavelmente esclarecido o papel dos genes XP: são comprovadamente essenciais para a célula consertar o DNA lesado e adquirir resistência à luz ultravioleta. Atuam também como protagonistas em vários mecanismos de conserto de DNA.
Além disso, os estudos do laboratório de reparo de DNA dão suporte para pesquisas em outras áreas por revelarem nuances do funcionamento da apoptose. Em um artigo publicado também em outubro na Cell Death and Differentiation, Menck e outra pesquisadora do ICB, Vanessa Chiganças, associaram – provavelmente pela primeira vez – a apoptose a tipos de lesões específicas no DNA. Os defeitos provocados pela luz ultravioleta impedem a leitura correta dessa molécula por outra, o RNA (ácido ribonucléico), nas etapas preliminares do processo de produção das proteínas que formam qualquer ser vivo – e a célula que não consegue ler o DNA para transformá-lo em RNA entra em processo de morte celular. “Os genes XP são importantes no processo de sinalização que leva à apoptose”, diz Menck.
Protetor solar
Os resultados que a equipe de Menck vem obtendo podem também ajudar, ainda que demore um pouco, as pessoas que têm pele clara e sonham em ir à praia sem se preocupar com o sol. Além do XP, a equipe do ICB trabalha com o gene que contém a receita de produção da fotoliase, outra enzima que repara os danos causados no DNA pela luz ultravioleta. É um gene comum em bactérias, plantas, insetos e peixes, mas raro entre os mamíferos: ocorre apenas nos marsupiais (sem placenta), mas não nos placentários, o grupo de que faz parte a espécie humana. “Um gene que não temos mais resolve um problema que ainda temos”, diz Menck. Segundo o pesquisador, o gene da fotoliase perdeu-se há cerca de 170 milhões de anos do genoma, durante o processo evolutivo que levaria aos seres humanos.
Vanessa conseguiu implantar um gene de fotoliase retirado de um marsupial – um canguru rato (Potorous tridactylus) – em células humanas normais. Depois, expôs as células a uma intensa irradiação de luz ultravioleta e em seguida à luz visível para ativar a fotoliase. Poucas morreram, numa indicação de que conseguiram um mecanismo extra de desfazer e de evitar os danos causados pela radiação, conforme relatado em maio de 2000 na prestigiosa revista Cancer Reseach. Agora, a equipe de Menck está nas etapas finais da produção de um adenovírus carregando o gene da fotoliase. Se esse vetor funcionar em culturas de células in vitro, poderão ser testados in vivo, infectando camundongos, de forma similar ao que será feito por Maria Carolina nos Estados Unidos com adenovírus e os genes XP. Os camundongos poderiam assim ganhar uma proteção extra contra a radiação solar.
Ainda que não seja fácil, a tarefa não parece impossível, pois os grupos de Jan Hoeijmakers e Gijsbertus van der Horst, da Universidade Erasmus de Roterdã, na Holanda, obtiveram camundongos transgênicos que produzem a fotoliase nas células do corpo inteiro, reforçando a capacidade do DNA de se consertar – foi esse o trabalho que Menck analisou em duas páginas na Nature Genetics de novembro. Dessa vez, porém, não se trata mais de corrigir uma deficiência genética, mas de reforçar um mecanismo de reparo das células.
Ao submeter os camundongos transgênicos com as costas depiladas a doses intensas de radiação ultravioleta e à luz visível, os holandeses verificaram que os animais não desenvolviam as feridas nem as queimaduras na pele, características das pessoas inadvertidamente expostas à insolação intensa. Em vista dos resultados, toma forma a idéia de um protetor solar à base de fotoliase, a ser usado na forma de creme tanto por pessoas comuns – sobretudo as de pele clara, que sofrem mais no verão – quanto pelos portadores de xeroderma pigmentosum, que assim poderiam se esconder menos do sol. Mas isso não é para tão cedo. Cauteloso, Menck comenta: “Por enquanto, eu preferiria os protetores químicos, que ainda são mais seguros”.
Num outro experimento mais recente, o grupo de Menck está usando os vetores adenovírus como uma estratégia para acompanhar, passo a passo, o conserto da molécula de DNA. Os pesquisadores da USP montaram um adenovírus com um gene de reparo (fotoliase ou XP) e adicionaram uma espécie de cauda, um gene que leva à produção de uma proteína verde fluorescente, a GFP (do inglês Green Fluorescent Protein). Com essa estrutura, observam os genes, agora verdes, migrando para o núcleo da célula e pondo o DNA em ordem. Mais elegante e prático que a técnica em uso, esse método já indicou que proteínas XPA aparecem rapidamente, em menos de uma hora, para consertar o DNA – sabe-se que as lesões levam algumas horas para serem removidas. “Abrimos excelentes perspectivas de trabalho, porque essa técnica pode ser aplicada em qualquer tipo de célula humana”, afirma Menck.
Os mecanismos de reparo de DNA que Menck estuda há tanto são comuns a animais e plantas – recentemente, a propósito, Keronninn de Lima, de seu grupo, descobriu na cana-de-açúcar o gene de uma fotoliase que age de modo diferente de todas as outras já conhecidas. Por serem extremamente bem conservados – quase imutáveis -, os genes de reparo contêm informações preciosas sobre a origem e a diferenciação dos seres vivos.
Respondendo agora à pergunta do início deste relato, Menck acredita que os mecanismos de reparo de DNA surgiram antes mesmo do próprio DNA e prepararam as bases químicas para o surgimento da vida no planeta, há cerca de 3,8 bilhões de anos, a partir da molécula de RNA. Segundo ele, um DNA quebrado ou incompleto não conseguiria ir muito longe. Seria como um carro sem rodas: dificilmente teria originado até mesmo a primeira célula na Terra primitiva.
O Projeto
Reparo de DNA e Conseqüências Biológicas; Modalidade Projeto temático; Coordenador Carlos Frederico Martins Menck – ICB/USP; Investimento R$ 818.618,78