Este ano o Prêmio Nobel de Química foi concedido a dois médicos e um bioquímico que descobriram como as células desmontam e reaproveitam suas proteínas velhas ou defeituosas. Em 2002, um químico e um engenheiro dividiram outro Nobel de Química por terem aprimorado duas técnicas que permitiram a análise de proteínas, a espectrometria de massa, hoje essencial nessa área. Não é de estranhar que uma das mais altas honrarias da ciência no mundo tenha reconhecido recentemente, por duas vezes, o valor do estudo dessas moléculas abundantes em qualquer microorganismo, animal ou planta.
Nos últimos cinco anos, após o seqüenciamento do genoma de quase 150 organismos, a identificação da estrutura, da função e dos modos de interação dessas moléculas, codificadas pelos genes, tornou-se uma prioridade mundial, por representar um caminho aparentemente seguro para entender com mais detalhes as reações químicas que mantêm os organismos vivos ou os fazem perecer. Desse conhecimento, espera-se obter formas mais eficazes de combater as doenças – uma simples gripe ou uma praga agrícola – ou mesmo de prolongar a vida.
É um mundo imenso, cuja exploração mal começou. O Protein Data Bank, uma base de dados específica sobre proteínas, armazena informações acerca da estrutura de aproximadamente 25 mil dessas moléculas de plantas, animais e microorganismos. É pouco se comparado, por exemplo, ao número de proteínas humanas, estimadas de 100 mil a até 1 milhão. Hoje não passa uma semana sem que as proteínas sejam destaque em revistas científicas de primeira linha – em meados de setembro, por exemplo, 20 dos 51 estudos publicados nos Proceedings of the National Academy of Sciences abordavam de forma direta ou indireta essas moléculas.
Mesmo sem um projeto unificado como o Genoma Humano, que reuniu dezenas de laboratórios no seqüenciamento do material genético de nossa espécie, o estudo das proteínas avança rapidamente na Europa e nos Estados Unidos – e também no Brasil. Por aqui já existem cerca de 200 grupos de pesquisa nessa área, denominada proteômica, que ganharam impulso com a entrada em operação de dois novos equipamentos do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), em Campinas.
Com essasnovas máquinas,que determinam a seqüência dos blocos constitutivos das proteínas, os aminoácidos, o Brasil passa a integrar o seleto time de países com tecnologia para analisar em detalhes a estrutura das proteínas. Instalados em julho de 2003, os novos aparelhos do LNLS – dois espectrômetros de massa adquiridos por US$ 1,3 milhão, financiados pela FAPESP – foram liberados em setembro para grupos de pesquisa de qualquer estado do país, desde que as propostas de trabalho sejam aprovadas pelo LNLS e os resultados partilhados com outras equipes.
Os selecionados
Do primeiro lote de 51 propostas de uso desses equipamentos, o LNLS selecionou 20, elaborados por grupos de pesquisa de quatro estados – São Paulo, Rio de Janeiro, Ceará e Rio Grande do Sul. São projetos dedicados à análise de proteínas de microorganismos causadores de doenças em plantas, como a Xylella fastidiosa, que ataca os laranjais, ou em animais, caso das bactérias Mycoplasma hyopneumoniae, uma das causadoras da pneumonia; da Leptospira interrogans, o agente da leptospirose; e do protozoário Trypanosoma cruzi, responsável pelo mal de Chagas. As equipes selecionadas têm até dezembro para investigar também as proteínas associadas ao desenvolvimento de tumores e à ativação e desativação de genes. Em janeiro, o LNLS lançará edital de seleção do segundo lote de propostas.
“Evidentemente não nos encontramos no mesmo nível de países como Estados Unidos e Inglaterra, nos quais o uso dos espectrômetros de massa é bastante difundido, mas somos pioneiros na América Latina na pesquisa de proteínas”, comenta o bioquímico Rogerio Meneghini, que dirigiu o Centro de Biologia Estrutural do LNLS até fevereiro deste ano e hoje é o coordenador de projetos do laboratório.
“Nosso objetivo é consolidar ou formar grupos de excelência em proteômica, do mesmo modo que existem hoje equipes de primeira linha em genômica no Brasil.” Segundo ele, de todos os grupos dessa área no país, cerca de 40 devem, em alguns anos, estar em condições de competir internacionalmente com descobertas relevantes sobre a estrutura das proteínas, a vertente que explica como essas moléculas interagem entre si ou com outras. É um número similar ao de laboratórios hoje capacitados a fazer o seqüenciamento e a análise de genes.
É fácil entender por que os pesquisadores se sentem atraídos pelas proteínas, cuja importância vai bem além do senso comum – a de serem os principais componentes de alimentos como a carne, a soja e o leite. São essas moléculas que formam e mantêm em funcionamento as células e os tecidos dos seres vivos, onde são encontradas em quantidades consideráveis, quando comparadas com outros tipos de moléculas: correspondem a cerca de 30% da massa dos músculos ou do fígado, por exemplo.Seus papéis variam de acordo com a situação e o lugar em que se encontrem. As proteínas podem atuar como transportadores e, como os carregadores de mala dos aeroportos, levar compostos de fora para dentro das células, envoltas por membranas constituídas de lipídios, açúcares e outros tipos de proteínas.
Outras vezes elas funcionam como uma espécie de antena, captando informações enviadas por células vizinhas. Também participam das reações químicas que resultam na produção de energia, na formação da memória, enfim, do controle do organismo como um todo. São as operárias – sempre alertas – dos seres vivos. Em uma situação de perigo, é uma proteína que funciona como hormônio, a adrenalina, que faz o coração disparar, abastecendo os músculos com mais sangue e deixando assim o corpo preparado para lutar ou fugir.
Não foi agora que os pesquisadores brasileiros entraram nesse labirinto. Nos últimos cinco anos, laboratórios nacionais começaram a importar os primeiros espectrômetros de massa, que somam uma dezena no país. Eles se encontravam em laboratórios como o do biólogo Carlos Bloch Junior, da Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) em Brasília, do químico Mario Sergio Palma, da Universidade Estadual Paulista em Rio Claro, e de Lewis Greene, da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto.
Contavam ainda com esses equipamentos os bioquímicos Antonio Carlos de Camargo, do Instituto Butantan, e José Camillo Novello, da Universidade Estadual de Campinas. Na USP em São Paulo, o farmacologista Gilberto De Nucci e o parasitologista Igor de Almeida tinham espectrômetros de massa, também existentes nos laboratórios dos biofísicos Luiz Juliano Neto, da Universidade Federal de São Paulo, e Paulo Bisch, da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
“Esses primeiros equipamentos são poderosos, mas a sensibilidade e a acurácia dos espectrômetros de massa para o estudo de proteínas aumenta a cada dia”, explica Meneghini. Segundo ele, os novos aparelhos do LNLS permitirão o estudo de proteínas maiores, com possibilidade de determinar a seqüência dos aminoácidos que as formam.
Ação complementar
Para dar esse salto, porém, Meneghini e Bloch trabalharam durante cerca de um ano na escolha, compra e montagem dos espectrômetros. Eles adotaram três critérios básicos: os aparelhos deveriam ter grande sensibilidade para detectar proteínas em amostras com bilionésimos de grama de material biológico; apresentar resolução que possibilitasse a identificação de cada um dos aminoácidos, que têm massas muito próximas; e fornecer os resultados rapidamente – um dos equipamentos analisa mil amostras por hora.
“Ainda na fase de seleção”, conta Bloch, “levamos amostras de proteínas da bactéria Xanthomonas citri para serem testadas pelos quatro fabricantes de espectrômetros que mantêm representantes no país, para compararmos a sensibilidade e a precisão dos equipamentos”. É do próprio Bloch, aliás, o primeiro estudo científico utilizando os novos aparelhos: uma análise da proteína hylaseptina P1. Extraída da secreção da pele da Hyla punctata, uma perereca verde-vivo encontrada na Amazônia, a hylaseptina age contra bactérias causadoras de infecções hospitalares, como a Staphylococcus aureus e a Pseudomonas aeruginosa, ou um fungo, o Candida albicans, que se manifesta em pessoas imunodeprimidas, como mostra estudo publicado em março deste ano no Journal of Biological Chemistry.
Os dois equipamentos do LNLS são levemente diferentes – a vantagem é que um complementa a leitura do outro. Um deles aplica uma descarga elétrica nas proteínas e as fragmenta em partes eletricamente carregadas, que são então identificadas de acordo com sua massa. Essa é a técnica conhecida como Electrospray Q/TOF, empregada no estudo de moléculas solúveis em água, como a hemoglobina, a proteína que transporta o oxigênio e dá a cor vermelha ao sangue.
O outro equipamento dispara um laser sobre as proteínas armazenadas em um cristal, queassim se tornameletricamente carregadas. Por meio dessa técnica, chamada Maldi-TOF/TOF, podem-se avaliar as estruturas de proteínas encontradas nas membranas das células. “Conhecer a estrutura dessas moléculas é essencial para encontrar novas formas de combater diversas doenças, uma vez que a membrana de um parasita funciona como seu órgão sensorial e permite, por exemplo, que ele reconheça sua célula hospedeira”, explica Bloch.
A principal vantagem em relação aos espectrômetros existentes no país é que os equipamentos recém-instalados em Campinas – sob os cuidados do químico Fabio Cesar Gozzo, coordenador do Laboratório de Espectrometria de Massas do LNLS – identificam cada um dos aminoácidos que compõem uma proteína e a seqüência em que se encaixam para formá-la. Desse modo, pode se tornar mais fácil, por exemplo, desenhar moléculas de medicamentos que se encaixem com precisão em uma determinada proteína e impeçam o surgimento de um câncer ou a ação de bactérias como a Xylella fastidiosa ou a Xanthomonas citri, hoje vistas como pragas dos laranjais. Será um avanço e tanto.
“É como se até agora tentássemos montar um quebra-cabeça de olhos vendados, tateando no escuro para encaixar uma peça aqui, outra ali, e verificar se um fármaco funciona para combater uma determinada doença”, compara Glaucius Oliva, coordenador do Instituto de Física da USP em São Carlos e diretor do Centro de Biologia Molecular Estrutural, um dos dez Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão financiados pela FAPESP. Com a estrutura das proteínas em mãos, os pesquisadores passam a trabalhar sem a venda nos olhos.
Mas muitos relutam em mergulhar no mundo das proteínas. Não é à toa. “Por mais interessados que estejam, os biólogos consideram o tema complexo demais, enquanto os químicos acreditam que as proteínas são moléculas grandes demais”, comenta Bloch.O desafio intimida até os mais experientes, talvez por ser superior ao enfrentado até o momento no seqüenciamento de diversos genomas. Embora os genes contenham as receitas das proteínas, conhecer o conjunto de genes – o genoma – de um organismo não é suficiente para saber como elas são nem como agem. Além disso, cada gene pode originar mais de uma proteína.
Estruturas distintas
São coisas bem diferentes. Os genes são trechos específicos da molécula de DNA – ácido desoxirribonucléico, o material genético das células. Têm a forma de longas seqüências de quatro pequenas moléculas conhecidas pelas letras A, T, C e G (respectivamente, adenina, timina, citosina e guanina). Já as proteínas são moléculas bem mais complexas, compostas por longas seqüências de 20 diferentes tipos de aminoácidos, resultando em conjuntos de dezenas a milhares de unidades – a insulina, enzima que facilita a entrada de açúcar nas células, é formada por apenas 51 aminoácidos, enquanto a miosina, uma das principais proteínas dos músculos, agrega em sua estrutura cerca de 1.800 desses blocos.
Outra distinção fundamental: enquanto a molécula de DNA assume sempre a forma de uma escada em espiral ou de dupla hélice, como descobriram James Watson e Francis Crick em 1953, as proteínas podem ter formas muito distintas – variando de um pequeno globo a um bumerangue, por exemplo. Há ainda um complicador: tão logo deixem o interior das células, onde são fabricadas, as proteínas podem se associar a açúcares e gorduras, formando complexos ainda maiores – a glicoproteína CD 44 funciona como uma espécie de cimento celular, mantendo as células próximas. No caso das proteínas, essa estrutura tridimensional faz todaa diferença, umavezque a forma está diretamente ligada à função que ela é capaz de executar.
O Projeto
Proteomics Studies at the São Paulo State; Modalidade Linha Regular de Auxílio à Pesquisa; Coordenador Fabio Cesar Gozzo – LNLS; Investimento R$ 5.391.153,26