Segura, eficaz e barata, uma nova vacina contra a raiva humana deverá ser lançada pelo Instituto Butantan nos próximos meses. Totalmente desenvolvido na instituição paulista, o produto, que já tinha sido testado com sucesso em camundongos e macacos, passou por sua prova final: foi injetado em mais de 200 seres humanos num estudo feito pelo Instituto Pasteur de São Paulo e os resultados, ainda preliminares, foram bons. Não houve reações significativas de ordem alérgica ou nervosa e, na média dos pacientes, a vacina estimulou níveis de anticorpos 30 vezes maiores que os considerados suficientes pela Organização Mundial da Saúde (OMS) para neutralizar a ação do vírus da raiva. A quantidade de resíduos celulares encontrados nas doses do imunizante foi muito baixa, cerca de cinco vezes menor que a recomendada. A raiva é uma doença fatal ao homem quando não tratada logo após ter ocorrido a infecção pelo patógeno.
A autorização para a venda da vacina, cuja propriedade intelectual está protegida por patentes desde o ano 2000, vai ser pedida neste mês à Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Nos próximos meses, toda a documentação necessária para a aprovação do medicamento será enviada para Brasília. “Até o final do ano, ou no início de 2006, vamos começar a produção da vacina em escala comercial”, afirma Neuza Maria Frazatti Gallina, chefe da seção de raiva do Butantan, responsável pelo desenvolvimento do produto. Inicialmente, a meta é fabricar cerca de 3 milhões de doses anuais da vacina, suficientes para atender a demanda nacional. Num segundo momento, o volume de produção poderá ser elevado, com vistas à exportação. O custo estimado de cada dose é de US$ 5, dois dólares a menos que o preço pago pelo governo federal pela vacina de raiva usada atualmente no país, importada da França e aqui rotulada e testada pelo Butantan.
A qualidade do produto deriva do domínio de uma forma inédita de cultivo do vírus da raiva, agente infeccioso do gênero Lyssavirus. Matéria-prima para a confecção da vacina, onde está presente numa forma inativada, o vírus cresce num substrato composto pelas chamadas células Vero, retiradas dos rins do macaco-verde-africano Cercopithecus aethiops. Trata-se de um tipo de material biológico muito estável, sem risco de provocar problemas de saúde no homem, que pode ser obtido num banco internacional de células Vero. Em razão dessas características, e também da possibilidade de crescerem em altas concentrações no interior de grandes biorreatores, essas células são altamente recomendadas pela OMS na produção de vacinas. Elas são capazes de se multiplicar em meios de cultura para crescimento de células que dispensam a necessidade de soros de origem bovina ou humana. Portanto, há menos traços de DNA animal na composição final da vacina.
Por esse processo, a chance de se fabricar uma vacina contaminada, por exemplo, com a forma degenerada do príon, uma proteína bovina que causa o mal da vaca louca, é nula. “Somos os primeiros no mundo a fazer uma vacina contra a raiva com células Vero num meio livre de soro, uma técnica normalmente muito cara”, assegura Neuza, que, em seu trabalho, contou com financiamentos da FAPESP, da Fundação Butantan e do Conselho Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento Tecnológico (CNPq). “Mas, como nosso método de produção é cinco vezes mais eficiente que os demais, o caro se tornou barato.” Feita no exterior, a vacina de raiva humana hoje disponível no Brasil também usa células Vero em seu método de produção, mas é obtida a partir do cultivo do vírus da raiva em meio que ainda necessita de soro animal.
A adoção da vacina importada foi uma solução-tampão para remediar a situação em que o país se encontrava no fim da década de 1990. Na época havia uma versão nacional da vacina de raiva, feita pelo Butantan e pelo Instituto de Tecnologia do Paraná (Tecpar), só que derivada de uma tecnologia de produção mais antiga. Era uma vacina cujo processo de fabricação utilizava o cérebro de camundongos recém-nascidos. Cerca de 2% de seu contéudo final era tecido cerebral de roedores. “A antiga formulação da vacina nacional era boa e conferia imunidade, mas o risco de efeitos adversos não era desprezível”, comenta Neuza.
No fim dos anos 1990, uma pessoa no país apresentou reações neurológicas graves e morreu depois de tomar a antiga vacina. No ano 2000, o Estado de São Paulo proibiu a fabricação do produto a partir de tecido nervoso de camundongos. Dois anos mais tarde, o governo federal fez o mesmo. Como ninguém no Brasil dispunha então de tecnologia para fazer vacinas mais puras contra a raiva, a saída foi trazer do exterior um medicamento mais seguro. A nova vacina do Butantan, ainda mais segura que a atual, deverá pôr fim à necessidade temporária de importar o imunizante, garantindo de novo independência tecnológica ao país nessa área. De quebra, os estudos de mais de uma década que levaram à nova vacina anti-rábica de uso humano também permitiram o desenvolvimento de uma linhagem mais moderna de imunizantes contra a raiva destinada a cães, gatos e bovinos.
A nova vacina anti-rábica de uso veterinário desenvolvida pelo Instituto Butantan não é tão purificada quanto a versão humana do produto. Mas será mais eficaz e custará menos que o produto hoje usado no programa público de imunização de cães e gatos, feita com cérebro de camundongos lactentes. A nova vacina, cujo processo de produção será transferido para uma empresa paulista, é elaborada num tipo de célula renal de hamster denominada BHK, que necessita de um meio de cultura com soro para crescer. Porém, esse material de cultivo provém de linhagens celulares estabelecidas há anos e seu processo de reprodução em laboratório já é dominado pelo Butantan. Ou seja, não é necessário matar novos animais para obter mais células BHK.
Para confeccionar os 33 milhões de doses anuais de vacina anti-rábica de uso animal que fornece para o Programa Nacional de Profilaxia da Raiva, do Ministério da Saúde, o Instituto de Tecnologia do Paraná (Tecpar) sacrifica toda semana 120 mil camundongos lactentes. Isso porque a empresa necessita de tecido nervoso dos roedores para ser usado na fabricação de sua formulação da vacina. “A vacina em células BHK vai evitar a morte de todos esses animais”, afirma Neuza Maria Frazatti Gallina, do Butantan. Testes feitos em cães e gatos na Universidade Estadual Paulista (Unesp), de Araçatuba, e em bovinos na Universidade do Oeste Paulista (Unoeste), de Presidente Prudente, mostram que a vacina do Butantan é eficaz em conferir imunidade aos animais.
O Tecpar também pretende desenvolver uma vacina anti-rábica humana a partir de um meio de cultivo com células Vero, mas as pesquisas estão num estágio mais atrasado que as do Butantan. “Ainda não conseguimos produzir a vacina no meio livre de soro em escala industrial”, diz o bioquímico Renato Rau, diretor de produção do Tecpar, que se associou recentemente a uma empresa argentina na esperança de dominar o processo. O controle da tecnologia de cultivo de meios celulares livres de soro também será útil ao Butantan na criação de outros produtos farmacêuticos, como uma versão nacional da vacina contra o rotavírus, causa comum de diarréia em crianças. “Esse é o nosso próximo desafio”, diz Neuza.
O processo de produção de um lote industrial com 120 mil doses da vacina anti-rábica do Butantan é rápido: consome nove dias. Num biorreator com capacidade para abrigar 30 litros, que agita seu conteúdo líquido a uma velocidade de 60 rotações por minuto, o vírus da raiva se reproduz em contato com as células Vero cultivadas em meio livre de soro em condições controladas para uma série de parâmetros, como temperatura, quantidade de oxigênio e acidez (pH). Periodicamente, coletas são feitas: retira-se um pouco de solução rica em vírus da raiva do biorreator, ao qual se adiciona mais meio de cultura. Tal procedimento é repetido seis vezes até o final do processo de fabricação de um lote da vacina. Por fim, a suspensão viral é concentrada, purificada e o patógeno nela presente é inativado. Depois de pronta, a nova vacina pode ser estocada por 14 meses a temperaturas entre 2º e 8ºC. Mais detalhes sobre o novo imunizante podem ser obtidos num artigo publicado pelos pesquisadores do Butantan em dezembro passado na revista científica Vaccine.
A raiva é uma zoonose, doença transmitida por animais ao homem (e a outros animais). Qualquer mamífero pode carregar uma cepa do vírus da raiva e passar, por meio da saliva contaminada pelo patógeno, a enfermidade ao ser humano. Não é necessário que a pessoa tenha sido mordida por um bicho doente. Às vezes, basta ter havido contato da pele ou mucosa do indivíduo com a saliva do animal enfermo. “Mas o risco de se adquirir a raiva é 50 vezes maior por meio de uma mordida do que por uma arranhão”, diz Neuza. Na prática, os principais propagadores da raiva no meio urbano são cães e gatos e, em zonas rurais, os morcegos que se alimentam de sangue.
Como o vírus da raiva apresenta um longo período de incubação no ser humano, em geral de um ou dois meses, a vacina anti-rábica deve ser aplicada assim que houver contato com um animal potencialmente infectado. Funciona como se fosse um remédio após ter havido a contaminação. O esquema mais comum de imunização prescreve cinco doses da vacina, aplicadas ao longo de um período de 28 dias. Além de pessoas que entraram em contato com animais com suspeita de infecção, profissionais que apresentam risco maior de contrair a raiva, como veterinários e zootecnistas, tomam a vacina de forma preventiva.
Responsável por até 70 mil mortes por ano no mundo, a raiva humana está sob controle no Brasil, em especial nos centros urbanos. Historicamente, o número de casos da doença apresenta tendência de queda. No início dos anos 1980, a raiva matava no país anualmente mais de 160 pessoas. Vinte anos mais tarde, o número de óbitos girava em torno de dez pessoas ao ano. “Mas, como se trata de uma zoonose, é impossível erradicá-la por completo”, comenta o médico Wagner Augusto Costa, do Instituto Pasteur, que coordenou os testes em seres humanos com a nova vacina do Butantan. No ano passado, a quantidade de mortes voltou a aumentar, embora em níveis menos alarmantes que os do passado. Houve cerca de 30 mortes, dois terços das quais decorrentes de dois surtos no Pará de raiva contraída de morcegos. Esses mamíferos voadores tomaram o lugar dos cães e gatos como o principal vetor da doença entre os brasileiros. Neste ano, a situação se repete. De janeiro a julho de 2005, a doença matou 15 pessoas no Pará e três no Maranhão. Todas pegaram a raiva de morcegos. “O desmatamento está empurrando os morcegos silvestres para as pequenas cidades, aumentando o risco de transmissão da doença ao homem”, afirma Neuza.
O projeto
Estudo da imunidade humoral e celular induzida pela vacina contra raiva em células Vero; Modalidade Linha Regular de Auxílio a Projeto de Pesquisa; Coordenador Neuza Maria Frazatti Gallina – Instituto Butantan; Investimento US$ 85 000,00 (FAPESP)