“A vida das abelhas é como um poço mágico. Quanto mais se tira, mais há para tirar.” A frase é de Karl von Frisch (1886-1982), o austríaco que decifrou a comunicação entre as abelhas e por isso dividiu com dois colegas o Prêmio Nobel de Fisiologia e Medicina, em 1973, e o título de pai da etologia, o estudo do comportamento animal. Os biólogos Zilá Simões, Klaus Hartfelder e Márcia Bitondi, do Laboratório de Biologia do Desenvolvimento de Abelhas (LBDA) no campus de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP), há mais de duas décadas tiram preciosidades desse poço. Eles investigam como genes e hormônios interagem com o ambiente e determinam as castas de abelhas, um dos grandes mistérios da biologia. A equipe brasileira faz parte do consórcio internacional de grupos de pesquisa que em outubro anunciou o seqüenciamento do genoma da abelha, primeiro inseto social a ser estudado dessa forma. O que veio dentro desse balde içado do poço mostra que a declaração de Von Frisch está mais atual do que nunca.
Numa sociedade de abelhas só a rainha se reproduz. As operárias cuidam das larvas e garantem a manutenção da colônia. Charles Darwin chegou a temer que a existência de uma casta estéril pusesse em risco sua teoria da seleção natural – que diz que só vencem o jogo da evolução aqueles que deixam descendentes férteis. O enigma foi estudado de diversos ângulos ao longo do último século, e agora a genômica vem dar uma mãozinha. Como participantes do Projeto Genoma, os geneticistas de Ribeirão Preto são responsáveis por investigar a genética da formação das castas. Com base em experimentos ao longo da última década eles agora anotaram 51 genes decisivos em diferenciar rainhas e operárias e estão desvendando um complexo sistema de regulação gênica protagonista na evolução do sistema social das abelhas.
Logo após nascer
Quem acredita na supremacia dos genes poderá se surpreender ao descobrir que abelhas de castas diferentes sejam iguais do ponto de vista genético. “Já se sabe disso há décadas”, afirma Zilá. Nas primeiras 48 horas de vida, conta Márcia, basta alimentar qualquer larva com geléia real que ela dará origem a uma nova rainha. Os apicultores, que criam abelhas para produção comercial de mel e própolis, usam esse conhecimento para multiplicar suas colméias.
Apesar da homogeneidade genética, as diferenças entre as castas são marcantes. Uma rainha vive entre um e dois anos. Durante esse tempo ela põe até 2 mil ovos por dia, a partir de espermatozóides armazenados em uma única ocasião. As operárias parecem ser de certa forma descartáveis. Elas vivem entre 30 dias e seis meses, e ao se tornarem campeiras têm um sistema imunológico pouco ativo e comem menos, praticamente só carboidratos. Existem às dezenas de milhares em cada colônia e, ao morrer, são substituídas por outras.
Durante sua vida de labuta, essencial à sobrevivência e ao crescimento da colméia, a função das operárias adultas varia conforme a idade: limpar e construir a colméia, alimentar e cuidar das larvas em desenvolvimento, defender a colônia e recolher alimento. Neste último posto elas são chamadas de campeiras. Para monitorar o comportamento dos insetos ao longo desses estágios, no Laboratório de Abelhas os pesquisadores observam colméias envidraçadas, onde as operárias são marcadas com plaquinhas coloridas numeradas grudadas às costas. As abelhas paramentadas não parecem incomodar-se: continuam a voar e, de volta à colônia, a dançar para indicar às companheiras onde a comida está.
Explicar a orquestração de toda essa variedade comportamental e fisiológica move há mais de duas décadas a curiosidade de Zilá, Hartfelder e Márcia. Para entender como se faz uma rainha ou uma operária, eles empreenderam uma extensa investigação do funcionamento genético e hormonal das abelhas. O esforço deu frutos: antes que se iniciasse o Projeto Genoma, o grupo já havia identificado e seqüenciado um gene central na diferenciação de castas. É o responsável pela síntese da vitelogenina (VG), uma proteína essencial para a reprodução, pois representa boa parte do alimento (vitelo) que nutre o embrião dentro dos ovos. Além de sua função reprodutiva, a vitelogenina influi na longevidade e no sistema imunológico do inseto, tanto em rainhas como em operárias.
O projeto de pesquisa conduzido no LBDA indicou que a alimentação das larvas com geléia real tem influência direta sobre seu sistema hormonal, que aumenta a síntese do hormônio juvenil. Essas larvas então se tornam rainhas, que produzem mais vitelogenina. “É possível produzir rainhas sem geléia real”, conta Zilá. “O hormônio juvenil aplicado experimentalmente já leva à sua formação.” Segundo Hartfelder, está programada nas células dos ovários das operárias uma morte celular acentuada. Mais hormônio juvenil na larva da rainha impede a degeneração dos órgãos reprodutivos. As operárias, que escaparam da dose maciça de hormônio juvenil durante o desenvolvimento embrionário, não estão livres de sua influência. Em certo ponto de sua vida a produção do hormônio aumenta, a síntese de vitelogenina cai e elas começam a voar em busca de alimento: viram campeiras.
Cuidado: não é o caso de chamar o gene VG de gene das castas. As interações gênicas são muito complexas e ainda longe de ser completamente compreendidas. Com o genoma completo, agora será possível investigar de forma mais geral a influência dos genes no organismo e no comportamento das abelhas. No caso do LBDA, a equipe identificou no genoma 51 genes ligados ao desenvolvimento de castas. Os pesquisadores acreditam que esses não sejam os únicos genes envolvidos no processo, mas parecem estar entre os mais importantes.
Trabalho acelerado
Os geneticistas acreditam que os resultados sobre o genoma proporcionarão um grande progresso no conhecimento sobre insetos sociais. Trabalhar com um gene de cada vez é muito lento. Zilá estima que leve cerca de um ano para seqüenciar cada um deles. Por isso, o método dez vezes mais rápido empregado nos projetos de seqüenciamento de genomas permite um avanço incomparável. Mas é a experiência laboriosa de Zilá, Márcia e Hartfelder com os sistemas genético e hormonal das abelhas que os leva a integrar o consórcio internacional que reúne 170 pesquisadores de 65 instituições para decifrar o DNA da abelha. A estimativa é que seu genoma seja composto por cerca de 10 mil genes, menos que os outros insetos já seqüenciados: a mosca-das-frutas (Drosophila melanogaster), o mosquito que transmite a malária (Anopheles gambiae) e o bicho-da-seda (Bombyx mori).
Com o seqüenciamento do genoma, surgem fatos que antes não podiam ser estudados. Neste caso questões típicas de insetos sociais, como a divisão de trabalho, as castas reprodutivas ou os sistemas de comunicação. Um processo simplificado, que já foi usado em outros projetos como o do boi e do eucalipto, permite seqüenciar somente os genes ativos – os que levam à produção de proteínas.
Mas o DNA contém uma imensidade de outros trechos que não produzem substâncias diretamente e por isso eram chamados de DNA lixo. Porém cada vez mais pesquisas têm mostrado que essas regiões do genoma têm uma importância imensa. “O genoma completo traz informação sobre seqüências reguladoras”, diz Hartfelder. O sistema de regulação permite entender como o organismo funciona, e pode estar na origem de diferenças marcantes entre animais geneticamente parecidos. A análise do genoma da abelha já trouxe pistas importantes sobre mecanismos de regulação dos genes – o sistema de metilação e os microRNAs. São moléculas capazes de desligar genes e por isso determinam as partes do genoma ativas conforme o indivíduo e o momento. As interações dentro do genoma e a atividade dos genes são conhecidas como redes gênicas. Esse tipo de sistema pode ser responsável por boa parte das diferenças entre a casta reprodutiva e não-reprodutiva, além de determinar as sucessivas funções das abelhas plebéias ao longo de sua vida.
A diferença entre rainhas e operárias, por exemplo, fica evidente quando se estudam as redes gênicas das duas castas. Essas redes são representadas como pequenos círculos que indicam os genes superexpressos (mais ativos), com linhas entre eles que mostram ligações funcionais – um gene ativa ou inativa outro, por exemplo. Zilá mostra dois desses esquemas, um deles tão intrincado que as linhas se embaralham nos olhos: “Esta é uma operária”, aponta. O mais simples mostra uma rainha. Para a geneticista, é como olhar fotografias de abelhas das duas castas. As operárias têm o cérebro maior, com mais neurônios, e sua rede de genes é mais complexa.
Além de representar um avanço importante na compreensão de um inseto social, o Projeto Genoma da abelha pode ter aplicações práticas. Zilá destaca a possibilidade de melhoramento genético de abelhas para produção comercial de mel, pois agora se sabe quais são os genes que conferem características desejáveis. Mas o pesquisador em apicultura Mendelson Guerreiro de Lima, da Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat), vê o avanço com cautela: “Resultados de pesquisa de ponta demoram a ser aplicados no campo”.
O Brasil é um dos maiores produtores mundiais, pois foi aqui que se formou a abelha híbrida entre a variedade européia e a africana, muito mais produtiva e resistente, mas também extremamente agressiva – ou defensiva, como diz Hartfelder. Mas, explica Lima, por causa do caráter extrativista da apicultura brasileira, a produção por colméia é cerca de cinco vezes menor do que no Canadá, por exemplo, onde as condições climáticas limitam o tempo de produção a menos da metade do ano e obrigam os apicultores a otimizar a produtividade.
De sua janela no campus da USP em Ribeirão Preto, Zilá e seus colegas observam colméias onde as abelhas que estudam convivem com cutias, teiús e jibóias. Esse cenário tão brasileiro já fazia parte da paisagem internacional, como prova a presença de Klaus Hartfelder: ele fez seu doutorado na Alemanha em colaboração com o grupo brasileiro e acabou trocando a carreira acadêmica em seu país natal pela USP no interior paulista. Zilá afirma que o Projeto Genoma tem também esse mérito: levou a comunidade internacional dos pesquisadores de insetos sociais a interagir de forma muito mais ativa. Com esse time entrosado, o poço mágico não terá sossego.
Os Projetos
1. Genômica funcional de Apis mellifera – busca de novos genes e redes funcionais no contexto do desenvolvimento, da diferenciação de castas e da reprodução (nº 05/03926-5); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Temático; Coordenadora Zilá Luz Paulino Simões – USP; Investimento R$ 830.083,39 (FAPESP)
2. Modelagem com equações diferenciais do desenvolvimento sexual de Apis mellifera. Coordenadora Zilá Luz Paulino Simões – USP; Investimento R$ 99.000 (CNPq)