MIGUEL BOYAYANQuando, num programa de entrevistas, perguntaram a Nelson Rodrigues que conselho ele daria aos jovens, o escritor, encarando a câmera, disse, quase implorando: “Envelheçam. O mais rapidamente possível”. Afinal, ele crescera, palavras suas, num “Brasil que era uma paisagem de velhos” em que “os moços não tinham função, nem destino, uma época que não suportava a mocidade”. Hoje parece haver lugar de sobra para eles e são os adultos que “sumiram”. “A juventude tornou-se um ícone moral do espetáculo, ou seja, de condição de mudança passou a ser um objetivo de mudança. A cultura somática é marcada pelo empenho encarniçado da maioria das pessoas em permanecer jovem para continuar sendo e permanecendo jovem”, afirma o psicanalista Jurandir Freire Costa em Adolescentes, estudo recém-lançado, organizado por Marta Rezende Cardoso. Ao mesmo tempo, consternados pela morte do garoto carioca João Hélio, sociedade, mídia e parlamento tentam ressuscitar a antecipação da maioridade penal, ainda que, entre os cinco envolvidos no caso, apenas um era adolescente.
Como entender essa relação de amor e ódio que a sociedade mantém com a adolescência, curiosamente uma invenção moderna, um mito do século XX (tão jovem, aliás, como o ideal da infância sagrada), que se consolidou apenas no pós-Segunda Guerra Mundial? “O adolescente é uma criação da cultura ocidental contemporânea, em que prevalece um culto da infância, que se acompanha de um movimento de postergação da entrada na fase adulta, seja porque vigora a idéia de aproveitar ao máximo um período supostamente isento de preocupações, seja porque se tem em vista favorecer um desenvolvimento que possibilite um preparo para a assunção de tarefas adultas da vida”, observa Jacqueline Barus-Michel, da Universidade de Paris VII, em seu artigo Entre sofrimento e violência.
“Os adolescentes estão cada vez mais no imaginário dos adultos. O problema é que, quando eles olham para nós, essa nossa idealização fica manifesta, fica evidente que os adultos gostariam de ser adolescentes”, afirma o psiquiatra Contardo Calligaris no III Dossiê universo jovem, apresentado no ano passado pela MTV. Nele descobrimos que 55% dos jovens manifestam desconforto com a ausência da porção pais e o excesso do lado amigo que eles assumiram na relação familiar. “A juventude virou valor máximo, obsessivamente preservado por quem naturalmente a tem e arduamente perseguido por quem está biologicamente se distanciando dela”, afirma a pesquisa. “A vaga de adulto na nossa cultura está desocupada. Ninguém quer estar do lado ‘de lá’, o lado careta do conflito de gerações, de modo que o conflito bem ou mal se dissipou. Podemos entender o aumento da delinqüência juvenil em nosso tempo como efeito da ‘teenagização’ da cultura ocidental”, afirma a psicanalista Maria Rita Kehl. “O adolescente ‘sem lei’, ou à margem da lei, é efeito de uma sociedade em que ninguém quer ocupar o lugar do adulto, cuja principal função é ser representante da lei diante das novas gerações. Quando os adultos se espelham em ideais teen, os adolescentes ficam sem parâmetros para pensar o futuro. Como e por que ingressar no mundo adulto, onde nenhum adulto quer viver? O que os espera, então?”
O culto ao adolescente (e, ao mesmo tempo, a preocupação com eles, o medo e a raiva deles, chamados de “aborrescentes”) surgiu da divinização da infância, observada por Freud em Sobre o narcisismo (1914), em que o pai da psicanálise fala do amor extremado dos pais pelas crianças como uma forma de alimentar o narcisismo paterno. Já que a morte seria o fim de tudo, as crianças são a esperança de continuidade e até mesmo de imortalidade. Na corrida da vida, os adultos vêem nos filhos uma extensão que faria a triste existência moderna suportável, já que haveria para quem “se passar o bastão”. Por meio de “sua majestade, o bebê”, como escreveu Freud, se tentaria burlar as leis da natureza, o envelhecimento, a doença, a morte, ao se recuperar, por procuração dada ao filho, o período de felicidade irresponsável perdida. Nessa linha, se a criança, assexuada, seria o anjo, o adolescente, para usar a expressão feliz do psicanalista francês Bernard Nominé, encarnaria o papel do “anjo caído”, invejado e temido. Impossível não concordar com Calligaris em sua separação de adolescência e puberdade, em que esta última seria uma fase de maturação sexual, enquanto a primeira teria que ser analisada como fenômeno cultural, uma fase não natural do desenvolvimento humano.
“A adolescência na modernidade tem o sentido de uma moratória, período dilatado de espera pelos que já não são mais crianças, mas ainda não se incorporaram à vida adulta”, analisa Maria Rita. O “anjo caído” se olha no espelho e nota que perdeu a graça infantil que cativava os adultos. “Essa segurança perdida deveria ser compensada por um novo olhar dos adultos, que reconhecessem a imagem púbere como a de outro adulto, seu par iminente. Mas esse olhar falha e o adolescente vive a falta do olhar apaixonado que merecia quando criança e a falta de palavras que o admitam como par na sociedade adulta. A insegurança se torna, assim, o traço próprio da adolescência”, escreve Calligaris em Adolescência. “Como reconquistar o espaço perdido’ O que eles esperam de mim?’, são as perguntas que fazem. Para piorar, desenvolvem-se numa sociedade, nota o psiquiatra, em que ‘o imperativo cultural dominante é o individualismo, é ‘desobedecer’, ‘provar sua autonomia’. Então, desobedecer pode ser, na cabeça do adolescente, uma maneira de obedecer. E obedecer, quem sabe, talvez seja o jeito certo de não se conformar”. Como nota Calligaris, querem que o adolescente seja autônomo e lhe recusam essa autonomia. Querem que persiga o sucesso social e amoroso e pedem que postergue esses esforços para “se preparar melhor”. “É justo que o adolescente se pergunte: ‘Querem que eu aceite essa moratória, ou preferem, na verdade, que eu desobedeça e afirme minha independência, realizando assim os ideais deles'”.
MIGUEL BOYAYANSe o “anjo” recebe toda a carga de perfeição e felicidade que não conseguimos cumprir e projetamos sobre nossas crianças, então os adolescentes recebem o fardo de levar adiante os ideais adultos de liberdade, transgressão e gozo sem limites. “Se a adolescência é uma patologia, então ela é a patologia dos desejos de rebeldia reprimidos pelos adultos”, explica Calligaris. Assim, se os adultos idolatram e estetizam suas fantasias do que seja uma infância feliz, eles temem e rejeitam os obscuros desejos projetados sobre os jovens. Essa relação delicada se expressa na própria etimologia das palavras: “adolescente” vem do particípio presente do verbo em latim adolescere, crescer. Já o particípio passado adultus deu origem à palavra “adulto”. Em português, as palavras seriam equivalentes a “crescente” e “crescido”. Aumentar de tamanho implica desequilíbrio, mudança do status quo, que sempre vem acompanhada pela dor. “Que desgraça! Perdi toda a energia, vejo-me caído numa inquieta indolência; não posso fazer coisa alguma. Já não tenho imaginação nem sensibilidade; a natureza já não me impressiona e os livros me entediam”, lamenta o patrono dos adolescentes, o Werther, de Goethe, ao se deparar com as perdas inerentes à adolescência, como a da liberdade e a tranqüilidade da infância. “A adolescência provoca uma fragilização identitária. A imagem do corpo no espelho é um teatro de mudanças incontroláveis e o jovem vive, do mesmo modo, pulsões desordenadas. O olhar dos demais se modifica, o outro deixa de ser continente e apoio, como foi o pai da infância, para se tornar rival e predador, em meio a relações conflitivas de poder”, avalia Barus-Michel. “O adolescente se atira em condutas de risco, brinca com a morte para se sentir viver, para provar que é alguém, que vale algo, para driblar um mal-estar aparentado à infelicidade de viver num universo em que já não vê sentido. Atacar o corpo, com piercings e tatuagens, dá ao jovem a sensação de existência e de valor pessoal, provado por meio de tais provas.”
Mais: como nota Calligaris, recusado pela comunidade dos adultos, indignado pela moratória imposta, ele se afasta dos adultos e inventa microssociedades que vão de grupos de amigos a gangues, sempre buscando a ausência da moratória ou, ao menos, uma integração mais rápida e com critérios de admissão mais claros e precisos. Anthony Burgess recriou genialmente esse gregarismo em Laranja mecânica. “O adulto demoniza o grupo adolescente temido, como uma espécie de tribo na tribo. A própria constituição de grupos adolescentes é, do ponto de vista adulto, uma transgressão”, observa Calligaris. A contradição é cada vez maior entre discurso e prática dos adultos. Já no Brasil do século XIX surge, oculta sob o discurso higienista, a relação entre adolescência e delinqüência juvenil, já que as famílias pobres não teriam, era o pensamento da época, condições de criar cidadãos decentes. “No século XX, com o discurso científico, a adolescência apresentou-se como uma fase do desenvolvimento humano em que o risco de transgressão e, logo, de delinqüência era um dado da natureza, rondando os jovens. A vigilância era a arma de combate e a segregação foi tomada como solução”, revela Maria Rita César, psicóloga da Universidade Federal do Paraná, em Da adolescência em perigo à adolescência perigosa. Nasce a “juventude transviada”, de início ligada aos “lambretistas” e “playboys“, “autênticos desamparados da família”, segundo o pedagogo Imídeo Nérici, e, mais tarde, associada à idéia de subversão política, passando ainda pelo estigma das drogas, dos “estupefacientes” usados na “busca insaciável do gozo”.
Para a marginalização urbana atual foi um pulo. “Um jovem pobre e negro é ser socialmente invisível nas ruas brasileiras. Saltando para fora do escuro em que o esquecemos, o jovem, armado, adquire densidade antropológica, vira um homem de verdade. O mundo vira de ponta-cabeça: quem passava sem o ver obedece a ele. Celebra-se um pacto fáustico: o jovem troca seu futuro, sua alma, sua vida, por um momento de glória fugaz; seu destino pelo acesso à superfície do planeta, onde se é visível”, observa o antropólogo Luiz Eduardo Soares em Juventude e violência. “Não parece lógico que jovens invisíveis, carentes de tudo o que a participação em um grupo pode oferecer, procurem aderir a grupos cuja identidade se forja na e para a guerra” Junte-se a isso a transformação do jovem, de angustiado perdido, em “nova fatia de mercado” e a reação é explosiva. “O jovem passou a ser considerado cidadão porque virou consumidor em potencial. A associação entre jovem e consumo criou uma cultura adolescente altamente hedonista, em que o jovem desfruta as liberdades da vida adulta sem responsabilidades”, analisa Maria Rita. “Do universitário ao traficante, todos se identificam com o ideal publicitário do jovem livre, belo e sensual. O que favorece, é claro, um aumento exponencial da violência entre os que se sentem incluídos pela via da imagem, mas excluídos das possibilidades de consumo.” E não nos esqueçamos: a cultura jovem convoca pessoas de todas as idades.
MIGUEL BOYAYANO adolescente também não resiste ao apelo do look da periferia. “Seu filho me imita/ Ele ginga e fala gíria/ Esse não é mais seu, tomei, cê nem viu/ Entrei pelo seu rádio, fiuuu… subiu!”, canta o rapper Mano Brown. “Os jovens estão se identificando com os marginalizados, os meninos e meninas da periferia e das favelas. O preocupante é quando a curiosidade e a ousadia em romper com o círculo estreito da vida burguesa desembocam na identificação com a estética da criminalidade”, adverte a psicanalista. Mas os pais talvez devessem se preocupar não apenas com o exemplo dos traficantes, mas dos criminosos da elite. “A transmissão de valores pela família esbarra cada vez mais na fragilidade dos valores culturais a serem transmitidos. Como sair da adolescência numa cultura que desvaloriza a própria posição do adulto como aquele que pode renunciar ao gozo da imediatez em nome de um ideal a ser atingido?”, pergunta-se a psicóloga da Universidade Federal do Rio de Janeiro Luciana Coutinho em O adolescente e os ideais. “Os adultos ensinam os jovens a julgá-los como pessoas desprovidas de mérito social ou moral. Ao criar filhos arrivistas atiram no próprio pé. Começam por desvalorizar e ridicularizar os honestos, mostrados como ‘patos’, e acabam por serem vistos como ‘patos’ pelos filhos”, avisa Freire Costa.
“Paradoxo da relação entre gerações: os adolescentes transgridem, até gravemente, não para burlar a lei, não na esperança de escapar da conseqüência de seus atos, mas, ao contrário, para excitá-la, para que a repressão corra atrás deles e assim os reconheça como pares dos adultos, ou melhor, como a parte escura e esquecida dos adultos”, nota Calligaris. “Daí o perigo de deixar a porta aberta para que o tribunal decida se jovens devem ser julgados como menores ou adultos. Se for julgado e condenado como adulto, será a demonstração do fato de que os adultos só ouvem a linguagem do crime e de que essa linguagem funciona.” A questão da antecipação da maioridade penal é, logo, polêmica, ainda que muitos psicólogos advirtam para o fato de que existam psicopatas em qualquer idade e o artigo 121 do Estatuto da Criança e do Adolescente (que estabelece o período máximo de internação de adolescentes em três anos) não dá tempo para que instituições psiquiátricas possam resolver problemas mentais graves. Seja como for, a mais recente pesquisa Crime Trends, feita pela ONU, revela que são minoria (apenas 17% das 57 nações analisadas) os países que definem o adulto como pessoa menor de 18 anos e que a maior parte deles é composta por países que não asseguram os direitos básicos de cidadania aos jovens.
Nos países pesquisados, os jovens representam 11,6% do total de infratores, enquanto no Brasil a participação adolescente na crimininalidade está em torno de 10% (surpreendentemente, no Japão ela chega a 42% e a idade penal é de 20 anos). “Nos países desenvolvidos pode fazer algum sentido argumentar que a sociedade deu aos jovens o mínimo necessário e, com base nesse pressuposto, responsabilizar individualmente os que transgridem a lei. Mas em países como Índia e Brasil isso é falso. É imoral equiparar a legislação penal juvenil brasileira à inglesa ou norte-americana, esquecendo-se da qualidade de vida dos jovens desses países”, diz o cientista político da Universidade de São Paulo Túlio Kahn.
Em artigo recente para a Folha de S. Paulo (Maioridade penal e hipocrisia: nossa alma “generosa” dorme melhor com a idéia de que a prisão é reeducativa), Calligaris faz uma importante ponderação sobre o tema, sem paixões exaltadas: “Em suma, a maioridade penal poderia ser reduzida para 16 ou 14 anos, mas não é isso que realmente importa. A hipocrisia está no artigo 121 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Caso ele seja reconhecido como menor ou como portador de um transtorno da personalidade, o jovem só deveria ser devolvido à sociedade uma vez “completado” seu desenvolvimento ou sua cura, que isso leve três anos, ou dez, ou 50″.
Deixando polêmicas de lado, qual é afinal a moral da história? O dever dos jovens, como já dizia Nelson Rodrigues, é envelhecer. “Suma sabedoria. Mas o que acontece quando a aspiração dos adultos é manifestamente a de rejuvenescer?”, pergunta Calligaris. “É tão difícil ficar velho sem um motivo/ Eu não quero perecer como um cavalo moribundo/ A juventude é como diamantes ao sol/ E diamantes são para sempre”, diz a música, de gosto duvidoso, cujo refrão, no entanto, é um primor: “I want to be forever young”. Quero ser jovem para sempre.
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