No dia 13 de maio do ano passado o dentista Jaider Furlan Abbud, morador do município paulista de Pontal, a 30 quilômetros de Ribeirão Preto, fez 31 anos. Era um sábado e, como quase sempre acontece nessas festas, o aniversariante exagerou um pouco na comida, sobretudo nos doces. No domingo, ao entrar no banheiro, teve uma surpresa: o vaso sanitário estava rodeado de formigas. Era um sinal clássico de que ali alguém, ele provavelmente, estava com excesso de açúcar na urina. Na segunda-feira foi ao médico e suas suspeitas se confirmaram. Tinha diabetes do tipo 1, também chamada de juvenil ou insulino-dependente. Ainda desconfiado do diagnóstico, procurou um segundo especialista. E a resposta foi a mesma do primeiro. Para controlar a doença, teria de tomar durante toda a vida injeções diárias de insulina, hormônio responsável por tirar a glicose do sangue, que seu pâncreas deixara de produzir em razão do ataque inflamatório característico desse tipo de diabetes. A desagradável rotina das picadas tinha de se incorporar imediatamente ao seu cotidiano. “Quase não acreditei”, recorda o dentista.
No dia 29 de julho do ano passado, menos de dois meses depois de ter recebido o diagnóstico, Jaider deixou o Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, 13 quilos mais magro. Mas estava muito feliz: já não precisava mais das duas ampolas diárias de insulina para controlar a doença. Ele se submetera a um agressivo e caro tratamento experimental contra o diabetes do tipo 1, que junta penosas sessões de quimioterapia com drogas que deprimem o sistema imunológico e um autotransplante de medula óssea, e seu pâncreas voltara a produzir insulina. Casado e sem filhos, o dentista agora está há mais de nove meses livre das injeções e é um dos 15 brasileiros com idade entre 14 e 31 anos que, de novembro de 2003 a julho de 2006, testaram a terapia, totalmente desenvolvida por uma equipe do Centro de Terapia Celular (CTC) da universidade. Todos os pacientes – com exceção de um, justamente o primeiro que se submeteu ao tratamento e usou um esquema terapêutico à base de corticóides, diferente do empregado nos demais – obtiveram resultados positivos. Voltaram a produzir insulina. “Não podemos falar em cura do diabetes. Ainda teremos de acompanhar os pacientes por muito tempo para ver se os efeitos se mantêm e fazer estudos com mais pessoas”, afirma o imunologista Júlio Cesar Voltarelli, principal idealizador dessa linha de pesquisa. “Mas nosso trabalho terá um impacto muito grande na área.”
Foi esse aparente sucesso da inédita abordagem terapêutica – o adjetivo aparente se justifica porque ainda não se sabe se os benefícios são temporários ou duradouros – que fez uma equipe de pesquisadores do CTC, um dos Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepids) financiados pela FAPESP, emplacar um artigo científico de nove páginas na edição de 11 de abril do Journal of the American Medical Association (Jama), uma das revistas médicas de maior prestígio. O periódico reconhece a primazia do trabalho e o comenta em editorial. “O estudo de Voltarelli é o primeiro de muitas tentativas de terapia celular que provavelmente serão testadas para deter o avanço do diabetes do tipo 1”, afirma, no editorial do Jama, Jay S. Skyler, do Instituto de Pesquisa em Diabetes da Universidade de Miami. Merece nota também a constatação de que o experimento foi essencialmente feito por brasileiros. “É uma contribuição nacional à pesquisa em diabetes”, comenta Marco Antonio Zago, coordenador do CTC. Dos 13 autores do artigo no Jama, 11 são da USP de Ribeirão Preto e apenas dois colaboradores do exterior.
Há muitas questões em aberto no tratamento experimental em teste na USP de Ribeirão Preto – e os próprios pesquisadores não negam essas incertezas. O que faz a terapia combinada aparentemente funcionar? Os pacientes retomaram a produção de insulina em razão da quimioterapia ou do autotransplante de medula? Ou em decorrência da sinergia entre ambos os procedimentos? Ainda não se sabe. E é justamente por isso que os brasileiros querem continuar as pesquisas. “Esse primeiro estudo tem um caráter exploratório”, diz Voltarelli. Ou seja, o tratamento ainda está envolto em mistérios, a exemplo da própria gênese do diabetes do tipo 1. Apesar da existência de fatores genéticos favoráveis à sua ocorrência, a doença se manifesta no organismo em razão do contato com algum elemento externo que provoca a disfunção do sistema imunológico. O problema é que, até hoje, ninguém conseguiu descobrir o que faz as células de defesa do corpo humano agredir a região do pâncreas que fabrica insulina. E o pior é que pode haver mais de um elemento externo que detone todo o processo. Especula-se, ainda sem nenhuma prova, que a inflamação possa ser causada por vírus, radicais livres, leite de vaca, entre outros agentes.
A procura por um tratamento contra o diabetes do tipo 1 que prescinda das incômodas injeções diárias de insulina é compreensível. Embora respondam por no máximo 10% da população total de diabéticos, estimada em 200 milhões de pessoas no mundo e uns 10 milhões no Brasil, os pacientes que dependem de insulina são os casos mais graves. Em indivíduos com diabetes do tipo 2 e no diabetes gestacional, que acomete temporariamente algumas mulheres durante a gravidez, a doença pode em geral ser controlada apenas com dietas e exercício físico. No diabetes juvenil, que costuma aparecer na infância ou no início da vida adulta, essas medidas não bastam. O combate da patologia requer necessariamente as doses externas de insulina. Caso contrário, o doente pode morrer rapidamente. A insulina é essencial para a vida, pois retira glicose do sangue e a joga para dentro de células, onde se transforma em energia. Os sintomas das três formas de diabetes são os mesmos, apesar de normalmente mais agudos nos pacientes do tipo 1: muita sede, vontade constante de urinar, perda de peso mesmo sem estar de dieta, visão embaçada, cansaço, dores nas pernas.
Três anos sem insulina
Os números que atestam o sucesso do experimento brasileiro são eloqüentes. Um dos doentes que fizeram o tratamento já está sem tomar insulina há 37 meses. Mais de três anos. Outros quatro não vêem as agulhas há pelo menos 23 meses e sete estão livres das injeções há oito meses. Em dois casos o tratamento experimental não produziu resultados imediatos. No entanto, mais de um ano depois de terem se submetido à terapia, esses diabéticos também deixaram de ser dependentes das doses externas do hormônio. Entre os 14 pacientes que responderam à terapia, apenas um apresentou uma recaída, teve uma virose e voltou a receber injeções de insulina. Os efeitos colaterais da nova abordagem terapêutica, embora agressiva, foram, por ora, brandos: um doente teve pneumonia e dois, disfunções endócrinas. Mas, para que a dobradinha quimioterapia e autotransplante de células-tronco tenha chance de funcionar, os pesquisadores acreditam que é preciso selecionar bem os pacientes que serão submetidos ao experimento. Todos os indivíduos que, de alguma forma, se beneficiaram do esquema terapêutico haviam recebido o diagnóstico formal de diabetes do tipo 1 no máximo seis semanas antes do começo do tratamento. Eram pessoas no início do diabetes.
Esse tipo de triagem tem justificativa científica. Nos estágios iniciais da doença, os pesquisadores acreditam que ainda resta uma pequena quantidade de células beta nas ilhotas de Langerhans, do pâncreas, produtoras de insulina. Com o avanço da doença, essas células remanescentes terão o mesmo fim das demais: serão destruídas pela disfunção imunológica que causa o diabetes do tipo 1. As pessoas que participaram do experimento em Ribeirão Preto ainda tinham, por exemplo, entre 20% e 40% das células beta normalmente presentes num organismo sadio. Partindo desse pressuposto clínico, de que no início da doença ainda há células do pâncreas a serem salvas do ataque inflamatório típico do diabetes, os pesquisadores do CTC decidiram testar o tratamento apenas em pacientes recém-diagnosticados com a patologia. Dessa forma, dizem, a terapia terá mais chances de funcionar. O raciocínio é simples. Se as células beta ainda não destruídas forem preservadas, o organismo, uma vez livre da disfunção imunológica que agride o pâncreas, poderá multiplicá-las e, assim, retomar a produção normal de insulina. É o que pode ter acontecido com os doentes que responderam bem ao tratamento.
Inédita no mundo, a abordagem terapêutica usada nos 15 pacientes lança mão de altas doses de quimioterápicos e imunoterápicos (ciclofosfamida e globulina antitimocitária), seguidas de um transplante de células-tronco hematopoéticas – capazes de se diferenciar e gerar outros tipos de células, como as vermelhas do sangue, as plaquetas e as brancas do sistema de defesa do organismo – que previamente haviam sido retiradas da medula óssea do próprio indivíduo e conservadas em nitrogênio líquido. Esse segundo procedimento é conhecido como transplante autólogo de medula óssea (ou autotransplante), desprovido de qualquer risco de rejeição. Portanto, o tratamento experimental promove um ataque duplo ao diabetes, num esquema semelhante ao usado no combate a alguns tipos de câncer, como certas leucemias. Primeiro, a quimioterapia destrói praticamente todo o sistema imunológico do paciente, fonte do problema inflamatório que ataca e mata as células beta do pâncreas. Em seguida, a injeção intravenosa das células-tronco hematopoéticas tem como objetivo acelerar a reconstrução do sistema imunológico do paciente. Ou melhor, de um novo sistema imunológico que, por motivos ainda não conhecidos, parece não apresentar a disfunção inflamatória que ataca as células beta. “É como se zerássemos as defesas do organismo e o paciente voltasse a ter o sistema imunológico de uma criança”, diz Voltarelli, que também testa terapias com células-tronco em outras doenças auto-imunes, como lúpus e esclerose sistêmica. Por isso, quem se submete ao tratamento, além de perder cabelos, ter vômitos e outros desconfortos, precisa tomar de novo todas as vacinas. Afinal, a “memória” de seu sistema imunológico foi aparentemente apagada ou se encontra ao menos dormente.
Os resultados animadores, ainda que preliminares, do tratamento experimental contra o diabetes do tipo 1 foram notícia no mundo. Para o bem e para o mal. Reportagens e mais reportagens sobre o estudo foram feitas no Brasil e no exterior, algumas num tom beirando o sensacionalismo, como se os pesquisadores da USP tivessem anunciado a cura da doença, afirmação que nunca fizeram. Para ficar só em alguns exemplos da mídia impressa internacional, jornais como o francês Le Monde, o britânico Financial Times e o norte-americano The Wall Street Journal noticiaram o estudo. Nessas reportagens surgiram alguns questionamentos a respeito dos resultados obtidos pela equipe de Ribeirão Preto. Talvez a matéria mais crítica tenha sido a publicada na edição de 21 de abril da revista britânica de divulgação cientítica New Scientist, semanário de grande repercussão. Com um título uma oitava acima da realidade descrita pela equipe do CTC, no qual usava a expressão “cura do diabetes com células-tronco”, o texto da publicação deu voz a pesquisadores do exterior que lançaram uma série de dúvidas, técnicas e até éticas, sobre o experimento brasileiro.
MIGUEL BOYAYANEfeito lua-de-mel
Em linhas gerais, a reportagem, que também deu espaço de defesa para Voltarelli, põe em xeque se o tratamento experimental produziu mesmo algum benefício aos pacientes. Insinua também que é mais fácil testar novas e arriscadas terapias com células-tronco na Ásia e na América Latina, onde haveria menos controles legais do que na Europa e nos Estados Unidos. Kevan Harold, da Universidade Yale (EUA), um dos pesquisadores ouvidos pela revista inglesa, diz que pacientes com diabetes do tipo 1 podem passar por uma fase chamada lua-de-mel, na qual voltam, apenas temporariamente, a produzir insulina. De acordo com esse raciocínio, a equipe brasileira estaria atribuindo a retomada de produção do hormônio no pâncreas aos efeitos do tratamento, mas tudo não passaria de uma reação passageira e natural do próprio organismo. Os pesquisadores do CTC rechaçam esse tipo de argumentação. “Não há período de lua-de-mel que explique o fato de 14 dos nossos 15 pacientes terem voltado a produzir insulina, alguns por mais de anos”, rebate o endocrinologista Carlos Eduardo Couri, outro autor do artigo no Jama. “Seria muita coincidência.”
Umas das opiniões contrárias ao experimento brasileiro colhidas pela New Scientist, Lainie Ross Friedman, especialista em ética médica da Universidade de Chicago, também falou a Pesquisa FAPESP. Sua mais aguda restrição diz respeito à inclusão de crianças no estudo. “O Brasil é signatário da Declaração de Helsinque (carta de princípios éticos na pesquisa científica patrocinada pela Associação Médica Mundial), e os primeiros testes com a terapia não deveriam ter incluído crianças, apenas adultos”, afirma Lainie. “Também deveria ter havido um grupo de controle (pacientes que recebem o tratamento convencional do diabetes tipo 1, cuja evolução clínica serviria de base para comparar a eficácia da terapia alternativa).” Oito dos 15 indivíduos que se submeteram ao tratamento tinham, na época da adoção do esquema terapêutico, menos de 18 anos. Essas crianças, a seu ver, só poderiam participar do experimento num segundo momento, quando ficasse demonstrado claramente em adultos que a terapia alternativa é melhor do que a convencional. Lainie ainda considera o experimento muito perigoso para seus participantes e faz a alusão aos riscos aumentados de câncer, infertilidade e até de morte em razão da adoção de um tratamento tão agressivo contra o diabetes. Também no Brasil há pesquisadores que, num tom mais ameno, e sem tirar o mérito do estudo, fazem ressalvas ao experimento do CTC. “Tenho profunda admiração pelo trabalho ousado e corajoso do doutor Júlio”, pondera Mari Cleide Sogayar, do Instituto de Química da USP, outra estudiosa do diabetes. “Mas o tratamento proposto representa um passo heterodoxo e é preciso avaliar bem a sua relação custo/benefício.”
A equipe do CTC é a primeira a admitir os riscos e as limitações do esquema terapêutico em estudo. Faz isso inclusive no próprio texto do artigo publicado no Jama. Ainda assim, os cientistas não se eximem de responder às críticas e de defender a lisura ética do experimento. Segundo Voltarelli, o estudo clínico preencheu todos os requisitos morais e jurídicos exigidos no país e demorou mais de um ano para ser aprovado pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), instância do Ministério da Saúde que autoriza esse tipo de trabalho. “A Conep é mais rigorosa do que o FDA (órgão do governo dos Estados Unidos que zela pela qualidade dos alimentos e remédios e regula os estudos clínicos)”, opina o imunologista do CTC, dando a entender que parte das críticas dos pesquisadores estrangeiros se deve ao fato de o estudo ter sido feito por um grupo de fora dos grandes centros da ciência mundial. Para ele, o uso de menores de idade no experimento se justifica, pois a doença nas crianças e nos adultos se manifesta de formas distintas. Voltarelli também conta que tentou constituir um grupo de controle, mas não conseguiu interessados em número suficiente. “Mas vamos ter de formar um grupo de controle nos próximos estudos”, admite. Sobre a questão dos problemas de saúde que o tratamento experimental pode causar nos pacientes, a equipe do CTC mantém uma política de total transparência. “Falamos de tudo durante o processo de seleção dos candidatos ao experimento, até da possibilidade de morte”, diz Couri. “Ela é mínima, mas existe. Isso tanto é verdade que a maioria dos pacientes entrevistados preferiu não fazer a terapia.”
Uma das grandes preocupações da equipe do CTC é não dar falsas esperanças de cura aos diabéticos do tipo 1. Desde que os resultados positivos do experimento foram divulgados na imprensa, Voltarelli recebe 200 e-mails por dia de pacientes interessados em se submeter ao esquema terapêutico. “Só dos Estados Unidos são dez por dia”, conta o imunologista. Os pesquisadores têm consciência de que o tratamento experimental não representará a solução definitiva para a doença. Além das dúvidas que pairam sobre o mecanismo de ação da terapia e por quanto tempo se estendem seus benefícios, Voltarelli lembra que o tratamento é muito caro e arriscado para ser proposto como procedimento padrão para os milhões de diabéticos do tipo 1 existentes no mundo. Hoje cada paciente tratado no estudo da USP de Ribeirão custa entre R$ 20 mil e R$ 30 mil e tem de ficar pelo menos 20 dias internado numa unidade de isolamento, sob cuidados intensivos no centro de transplante de medula óssea. Portanto os procedimentos necessários para realizar a terapia em teste no CTC só podem ser executados em hospitais altamente especializados. O sonho dos pesquisadores é chegar a um tratamento eficaz contra o diabetes, mas de caráter menos agressivo e dispendioso. Uma das esperanças da equipe do CTC são as células-tronco mesenquimais, um outro tipo de célula primitiva também encontrada na medula óssea. Essas células parecem ser capazes de deprimir o sistema imunológico. “Talvez com elas consigamos prescindir da quimioterapia, a etapa mais agressiva do tratamento”, diz Voltarelli.
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