MIGUEL BOYAYANEmbora úteis e participantes do nosso dia-a-dia, as embalagens PET, que acondicionam água e refrigerantes, provocam um sério problema ambiental. Todos os anos, mais de 50% da produção nacional, estimada em cerca de 380 mil toneladas, é depositado em lixões onde permanece durante anos e anos até sua completa decomposição. O restante é aproveitado em processos variados de reciclagem, resultando em outros produtos como cordas, carpetes e peças de artesanato. Uma boa notícia vinda do Japão aponta que, dentro de pouco tempo, pode tornar-se realidade uma nova forma de degradação dessas embalagens por uma via microbiológica. Estudos nesse sentido são conduzidos pelo pesquisador Kohei Oda, professor emérito do Instituto Tecnológico de Kyoto, no Japão, e um dos precursores do descobrimento, na década de 1970, de um inibidor de proteases, um tipo de proteína com a função de quebrar outras proteínas para ativá-las ou desativá-las, conhecido como pepstatina, que, anos depois, serviu para inibir uma enzima proteolítica (formada por proteases) do HIV. Ele conseguiu que embalagens PET, polímero fabricado a partir da resina poli (tereftalato de etileno), fossem degradadas em apenas oito semanas por um consórcio de bactérias e, na metade desse tempo, por uma bactéria específica isolada desse consórcio. Esses microorganismos, que não são patogênicos, secretam para o meio externo uma variedade de enzimas que decompõem o polímero. As características das bactérias e das enzimas responsáveis pela rápida degradação são guardadas em segredo por força de contrato com o Instituto de Tecnologia de Kyoto.
“A degradação microbiana oferece a possibilidade de recuperar locais onde as embalagens estão enterradas ou acumuladas ao longo dos anos e é uma alternativa capaz de competir, em nível econômico, com a degradação química”, diz Oda. Ele esteve em São Paulo, entre abril e outubro deste ano, como professor visitante na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e fez palestras e reuniões em outros institutos de pesquisa paulistas. As bactérias identificadas por ele em lixões no Japão metabolizam poliésteres, tais como o PET. Poliésteres são polímeros cujas ligações químicas resultam da união de um ácido com um álcool. Essas ligações, chamadas ésteres, podem se desfazer por tratamento ácido ou ainda por meio de enzimas. “Se a degradação ocorrer por meio de um grupo de bactérias ou por uma única bactéria, são produzidas enzimas, as proteases ou proteolíticas, que hidrolisam – quebram a ligação na presença de água – as ligações ésteres e depois degradam os monômeros, que são as unidades que compõem os plásticos, formando dióxido de carbono e água”, explica Luiz Juliano, professor do Departamento de Biofísica da Unifesp.
O maior desafio para tornar comercialmente viável o processo descoberto pelo microbiologista japonês – já existem conversações com algumas empresas do Japão – é resolver a quebra da cristalinidade do PET, sem a qual as bactérias não conseguem fazer a decomposição das embalagens. Quando o poli (tereftalato de etileno) é processado para formar as garrafas, ele adquire uma consistência cristalina que impede qualquer interação das paredes da garrafa com a água. Essa propriedade é benéfica, porque permite o uso da embalagem PET na preservação e no acondicionamento de bebidas, mas, ao mesmo tempo, dificulta sua degradação. Segundo Oda, a saída para quebrar a estrutura cristalina do PET é submetê-lo a um aquecimento de 260° Celsius (C) em autoclaves ou por tratamento por microondas. O calor quebra a cristalinidade do material e deixa as ligações ésteres mais expostas à hidrólise, tornando possível o processo de decomposição.
Múltiplas aplicações
O uso de microorganismos para degradação de produtos que poluem o ambiente – um processo conhecido como biorremediação – é apenas uma das áreas da microbiologia aplicada. Esse ramo da ciência visa à prospecção e utilização de microorganismos que produzam enzimas ou outras substâncias para uso nos mais diversos ramos de atividade, como na medicina, na indústria alimentícia, de curtume, cosmética, de tecelagem, sucroalcooleira e de papel e celulose, entre outros. Hoje, um dos focos da microbiologia é a fermentação de açúcares para biocombustíveis. “O Brasil também tem contribuições em microbiologia de patologias humanas, como doença de Chagas, leishmaniose, tuberculose e dengue, mas, por sua biodiversidade, oferece muitas possibilidades para o avanço da microbiologia em outras áreas”, afirma Juliano. “O Brasil está acordando para esse potencial”, diz o pesquisador brasileiro, coordenador de um projeto temático sobre o tema, que tem o objetivo de identificar enzimas de humanos, fungos, bactérias e venenos de animais com alguma utilidade industrial ou farmacológica. Ele aponta o trabalho da professora Maria de Lourdes Teixeira de Moraes Polizeli, do Departamento de Biologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (USP). Ela isolou de compostagem de cogumelos uma variedade de fungo, Rhisopus microsporus, que se mostrou um excelente produtor de amilase. Essa enzima é usada na produção de adoçantes, xarope de glicose para as indústrias de cerveja e de medicamentos. O mais interessante é que esses fungos crescem em suportes sólidos muito baratos como sabugo de milho e bagaço de cana e em temperaturas acima de 45°C, facilitando a produção industrial.
Um dos trabalhos do grupo de Juliano está relacionado à doença celíaca, caracterizada pela intolerância das pessoas ao glúten. Esse problema decorre de o glúten ter uma proteína denominada gliadina, que é muito rica em prolina, um dos 20 aminoácidos naturais que compõem as proteínas. Isso torna a gliadina pouco suscetível à digestão, dificultando a hidrólise pelas enzimas digestivas do estômago e do intestino. Os fragmentos dessa proteína não digeridos podem ser absorvidos e desenvolver em muitas pessoas (numa proporção de uma para 200, nos países ocidentais) um quadro clínico de intolerância. “Estamos sintetizando centenas de substratos peptídicos (fragmentos de proteínas) contendo prolina para examinarmos enzimas proteólicas com preferência por prolina. Isso nos permitirá buscar proteases de alta eficiência na degradação dos fragmentos de gliadina”, diz o pesquisador da Unifesp. O objetivo final do projeto, portanto, é descobrir enzimas que possam ser usadas no tratamento do glúten ou administradas, na forma de cápsulas, em pacientes que sofrem de intolerância ao produto.
Riqueza animal
A prospecção de microorganismos foi um dos motivos da visita que Luiz Juliano e Kohei Oda fizeram à Fundação Parque Zoológico de São Paulo em outubro passado. Há pouco tempo, Oda conseguiu isolar em fezes de animais de zoológicos do Japão cerca de 500 cepas de bactérias que têm em comum a produção de ácido láctico ou ácido acético. Em geral, essas bactérias não são patogênicas nem tóxicas e podem produzir enzimas ou outras substâncias de interesse biológico.
Juliano acredita que material igualmente rico, diverso e abundante possa ser encontrado no zôo paulistano, onde as fezes dos bichos são misturadas a cavacos de madeira e outros restos de vegetação e são compostados. “No processo de compostagem, a temperatura chega a 70°C. Podemos encontrar fungos e bactérias crescendo em condições extremas de temperatura”, diz ele. “Creio que temos uma oportunidade de prospectar uma variedade imensa de microorganismos vindos de diferentes espécies de animais”. Tudo isso sem precisar tocar ou importunar os animais.
Além do zoológico, Juliano e Oda visitaram outras instituições de pesquisa em microbiologia da capital e interior paulista para propor o estabelecimento de uma rede de cooperação na área, como a USP de Ribeirão Preto, Universidade Estadual Paulista de São José do Rio Preto e de Rio Claro, e Universidade Estadual de Campinas, e da unidade da Unifesp em Diadema. A associação dos grupos de pesquisa do professor Juliano e do professor Oda incrementará os estudos das proteases já descobertas e, ao mesmo tempo, será uma oportunidade para disseminação, também para outros grupos interessados, das experiências em prospecção de microorganismos de uso prático. “Queremos também oferecer a nossa contribuição na área de enzimas proteolíticas, disponibilizando a plataforma de estudo das proteases que o nosso grupo montou nos últimos 27 anos”, conta Juliano.
Os Projetos
1. Substratos e inibidores peptídicos para enzimas proteolíticas; Modalidade Projeto Temático; Coordenador Luiz Juliano Neto – Unifesp; Investimento R$ 376.320,26 e US$ 111.757,59 (FAPESP)
2. Kohei Oda, Kyoto Institute of Technology, Japão; Modalidade Auxílio à vinda de Pesquisador Visitante; Coordenador Luiz Juliano Neto – Unifesp; Investimento
R$ 41.193,00 (FAPESP)