Quando todos olhavam para um lado, elas olharam para outro. Fizeram perguntas diferentes e descobriram coisas muito interessantes. Duas cientistas do Instituto Butantan, Catarina Teixeira e Cristina Fernandes, viram que uma mesma proteína encontrada em abundância nos estágios mais avançados da artrite (algo que todos dessa área sabiam) pode também ser uma das causas dessa enfermidade (essa é a parte que ninguém mais parece ter pensado ou demonstrado). O que elas descobriram, em conjunto com pesquisadores da Universidade Federal do Ceará e da Universidade de Costa Rica, faz mais do que jogar luz nos tortuosos labirintos da inflamação e da dor que gradativamente se apossam de articulações como joelhos, cotovelos, punhos e mãos. Também ajuda a compreender melhor como e por que os tratamentos atuais podem ou não funcionar para conter essa doença, que persegue principalmente as mulheres, em uma proporção três vezes maior que os homens, e começa a aparecer por volta dos 35 anos. No Brasil aproximadamente 2 milhões de pessoas convivem com a artrite e, nos casos mais graves, evitam se mover para escapar da dor, como se houvessem se tornado prisioneiras do próprio corpo.
“A natureza é econômica”, comenta Catarina, explicando como, a partir desta constatação tão simples, ela e Cristina se perguntaram se a mesma proteína não poderia ter funções mais amplas e relevantes. O artigo que publicaram no ano passado na British Journal of Pharmacology deixa claro como a molécula que estudaram – a BaP1, extraída do veneno de uma serpente e muito similar à de seres humanos – aciona e alimenta os processos inflamatórios típicos da artrite. É também ela que promove a liberação de substâncias inflamatórias conhecidas como prostaglandinas e citocinas, que causam dor nas articulações, e ainda corrói as cartilagens nos estágios mais avançados da doença. Somado aos resultados obtidos por outros grupos de pesquisa, esse trabalho ajuda a eleger essas proteínas – enzimas chamadas de metaloproteases por carregarem um metal, normalmente zinco – como alvo potencial para combater não só a artrite como também tumores e outras doenças de cujo desenvolvimento participam.
Normalmente, diferentes tipos de metaloproteases trabalham como uma equipe de manutenção, removendo o que não é mais utilizado no espaço entre as células, além de participarem da formação e da recomposição de tecidos. Só se rebelam quando o controle habitual do organismo por alguma razão deixa de funcionar. É quando podem favorecer o desenvolvimento de doenças cardiovasculares, o espalhamento de tumores ou a produção intensiva de moléculas bem menores como o fator de necrose tumoral-alfa (TNF-alfa). Quando ativado, o TNF-alfa recruta células do sangue envolvidas na inflamação, um dos recursos do organismo para deter vírus, bactérias e tumores; se abundante, porém, pode intensificar a inflamação e a dor na artrite.
Uma linha de medicamentos contra a artrite adotada atualmente procura bloquear a ação do TNF-alfa, enquanto outra abordagem trata de aplacar a ação de todo o sistema de defesa do organismo, que, por motivos ainda desconhecidos, passa a reconhecer as cartilagens das articulações como algo estranho, a ser eliminado. Pôr rédeas nas metaloproteases, uma possibilidade levantada pelos estudos mais recentes, implicaria controlar a produção dessas pequenas moléculas que inflam a inflamação, os TNF. O que é simples de imaginar, porém, é difícil de executar e, alertam as cautelosas pesquisadoras do Butantan, talvez não muito seguro. Em vista da versatilidade dessas enzimas, a artrite poderia desaparecer, mas processos fisiológicos relevantes como a cicatrização e a fertilização poderiam ser prejudicados.
Alvos
Esse é outro vasto labirinto. Em um artigo de revisão publicado na Expert Opinion on Therapeutics Targets o professor de reumatologia molecular Andrew Rowan e outros pesquisadores da universidade inglesa de Newcastle descrevem 23 metaloproteases de mamíferos, cujas falhas podem levar a problemas tão diferentes quanto esterilidade masculina, nanismo ou obesidade. Analisam também os compostos que poderiam deter essas enzimas, chamados de inibidores de metaloproteases: de mais de 50 identificados como alternativas potenciais para tratar artrite e câncer, a maioria parou pelo caminho, por causa dos efeitos colaterais ou da baixa eficácia, apesar dos resultados iniciais animadores em células e animais de laboratório. Só sete continuam e por enquanto só um foi aprovado – e para a doença periodontal, caracterizada pela inflamação da gengiva e dos ossos que sustentam os dentes.
Em um artigo publicado também na Expert Opinion, Paraic Kenny, da Universidade da Califórnia em Berkeley, Estados Unidos, sai do que chama de litania de decepções para contar dos avanços e dos limites de proteínas que inibem uma enzima desse tipo conhecida pela sigla Tace como forma de deter o desenvolvimento de tumores de pulmão, pâncreas, mama e ovário, entre outros, além da própria artrite. Segundo ele, a Tace já pode ser considerada um alvo terapêutico a ser perseguido, já que seus antagonistas apresentaram efeitos tóxicos toleráveis e uma eficácia razoável nos testes preliminares em câncer em seres humanos; em artrite, porém, os resultados até agora não foram tão bons, possivelmente porque outras enzimas desse tipo continuaram a alimentar a inflamação e a dor.
“O maior avanço até agora foi adicionar mais um mecanismo de ação dessas enzimas, que agora se somam ao caldo de mediadores que promovem a reação inflamatória, possivelmente contribuindo com a perpetuação da inflamação e dano estrutural das juntas”, comenta Francisco Aírton Rocha, médico reumatologista da Universidade Federal do Ceará que trabalhou com a equipe do Butantan. Os pesquisadores chegaram a essas conclusões manipulando enzimas extraídas do veneno de serpentes. Há 20 anos, recém-contratada pelo instituto paulista, Catarina começou a estudar os efeitos do veneno de jararaca (Bothrops jararaca), uma espécie abundante, que causa o maior número de acidentes por picadas de cobra no Brasil. Ela estava interessada especialmente em compreender os mecanismos envolvidos nas intensas reações inflamatórias verificadas no local das picadas e muito pouco neutralizadas pelo soro antiofídico.
Depois de caracterizar a reação inflamatória local causada pelas picadas da Bothrops jararaca e de uma espécie próxima, a Bothrops asper, Catarina começou a procurar os componentes do veneno responsáveis por esses efeitos. Em seguida, incentivada e apoiada por José Maria Gutierrez, pesquisador da Universidade de Costa Rica e do Instituto Clodomiro Picado, equivalente ao Butantan daquele país, Catarina trabalhou para caracterizar as propriedades inflamatórias de uma enzima do grupo das metaloproteases encontradas no veneno da Bothrops asper; essa espécie, também conhecida como terciopelo (em espanhol, veludo), é a que causa a maioria dos acidentes por picadas na América Central.
Tanto Catarina quanto Cristina, a partir de 1999, deixaram-se levar pelos impressionantes efeitos de uma dessas enzimas, a BaP1, cuja estrutura é muito similar à de metaloproteases produzidas no organismo humano. Inicialmente Cristina demonstrou o efeito inflamatório dessa enzima, detalhado em 2006 na Toxicon. Depois, somando esse trabalho a relatos de outros grupos que demonstravam que a articulação de pessoas com artrite reumatóide acumulava metaloproteinases, elas imaginaram que essas enzimas poderiam ter funções ainda mais amplas que ninguém havia visto, até mesmo iniciando ou ajudando a iniciar a inflamação na artrite. Testaram a hipótese aplicando a enzima em ratos, de acordo com o modelo experimental com que Rocha estuda há 15 anos os mecanismos de dor e lesão provocados pela artrite.
Toxinas
Foi Rocha quem ensinou Cristina a injetar a enzima de serpente na minúscula cavidade entre os igualmente minúsculos ossos dos joelhos de ratos. Apenas uma hora depois da injeção da BaP1 um grupo de animais já apresentava uma quantidade notável de células inflamatórias, principalmente neutrófilos, além de substâncias associadas à dor como as prostaglandinas e o TNF-alfa, caracterizando a barafunda de substâncias e células de defesa típica da artrite; outros grupos de animais, que haviam sido previamente tratados com compostos que bloqueavam a ação de TNF-alfa ou a formação de prostaglandinas, não exibiram inflamação ou dor quando receberam a BaP1.
Os resultados representaram dois ganhos simultâneos. O primeiro é mais óbvio: comprovando a hipótese inicial, essa enzima deixou de ser coadjuvante para assumir um papel principal no doloroso enredo da artrite, por iniciar e alimentar a inflamação e a dor que consome as juntas; o próximo passo, claro, é confirmar se as equivalentes humanas produzem o mesmo efeito. O outro, destacado por Catarina, é mais sutil: as toxinas de venenos podem ser usadas também como ferramentas para entender melhor os mecanismos de funcionamento do próprio corpo e do desenvolvimento de doenças como a artrite, esclarecendo por analogia as funções hoje desconhecidas de muitas moléculas do organismo humano.
O projeto
Estudo de efeitos da metaloproteinase BaP1, isolada do veneno da serpente Bothrops asper, na articulação de ratos; Modalidade Auxílio a Projeto de Pesquisa; Coordenadora Catarina de Fátima Pereira Teixeira; Investimento R$ 209.741,63 (FAPESP)