LEO RAMOSO economista João Paulo dos Reis Velloso, 77 anos feitos neste 12 de julho, é uma personagem singular na cena política brasileira. Ministro do Planejamento de 1969 a 1979, portanto, em dois governos do período da ditadura militar, os dos generais Médici e Geisel, dificilmente alguém o relaciona com o clima de medo, supressão de liberdades políticas e civis, tortura e mortes que assinalou os duros anos inaugurados em 1964. Pensa-se em Reis Velloso antes como o planejador competente da infra-estrutura institucional voltada para o desenvolvimento do país nos anos 1960 e 1970, extremamente sensível ao papel da ciência e da tecnologia nesse âmbito, tanto que criou o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), ajudou a fazer da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) uma agência competente com um fundo respeitável para gerir, o FNDCT (Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e ainda trabalhou para transformar o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) em fundação. Ou pensa-se nele como o coordenador do I e o II PND (Plano Nacional de Desenvolvimento) que paralelamente percebeu, em dado momento, que a universidade brasileira e a pesquisa acadêmica ganhariam muito se os professores trabalhassem em regime de tempo integral e, melhor ainda, com dedicação exclusiva. O ex-ministro é também identificado como alguém que contribuiu decisivamente para que se organizasse a pós-graduação no país em bases eficazes, o que, 30 anos depois, repercutiu de forma visível na expansão e na qualidade da pesquisa nacional.
Quem convive mais de perto com Reis Velloso, casado desde 1975 com Isabel Barrozo do Amaral, cinco filhos no conjunto (um deles já falecido), sabe também de sua ligação especial com o cinema brasileiro, de seu gosto pela literatura, pelas artes plásticas, e de sua relação com a cultura de forma mais geral. E percebe com que delicadeza ele traz à cena suas lembranças do Piauí e de Parnaíba, a cidade em que nasceu.
Depois que saiu do governo em 1979 Reis Velloso fez uma breve incursão pela iniciativa privada, mas se reencontrou na tarefa de pensar o Brasil, apresentar idéias e projetos para o país no Fórum Nacional que inventou em 1988 e que, a essa altura, já acumula 80 livros onde ambos estão muito bem documentados. O XX Fórum, ocorrido entre 26 e 30 de maio último, com o tema “Um novo mundo nos trópicos (sob o signo da incerteza)”, forneceu a ocasião perfeita para a conclusão dessa entrevista que, na verdade, começara em fins de 2005 (para uma tese de doutorado). A conversa, apesar da interrupção de dois anos e meio, continuou fluente.
A impressão que ficou desse XX Fórum Nacional foi de que estamos diante da possibilidade real de um momento de virada no Brasil. Qual o seu balanço das idéias que passaram pelo fórum?
Eu acho que o Brasil realmente está diante de uma grande oportunidade, como há muito tempo não tínhamos. É claro que há alguns problemas na área chamada macroeconômica, com a inflação querendo voltar e uma nuvem escura no horizonte relativamente à questão de vulnerabilidade externa que não havia, mas como somos criativos, inventamos um câmbio flutuante que flutua para baixo e ainda ontem o dólar deu menos de R$ 1,6. Sugiro que você viaje já ou pelo menos compre todas as passagens. Isso se deve em grande medida ao fato de que estamos usando demais a política monetária, quer dizer, elevação de taxa de juros, nós somos o país com maior taxa de juros do mundo, e não estamos usando a política fiscal, contenção de gastos, falando claramente. Quer dizer, nós estamos sob o signo da incerteza mundialmente. Porque há três crises, simultaneamente.
Falou-se muito sobre essas crises no fórum. Quais são elas?
A crise financeira dos Estados Unidos, a crise dos alimentos e a crise do petróleo. Principalmente nas duas últimas, o Brasil é a solução, não é o problema. Nós discutimos muito isso e já vínhamos trabalhando numa idéia que permite incorporar essa nova oportunidade que permitirá ao Brasil transformar-se no melhor dos Brics (Brasil, Rússia, Índia, China). É o que chamo em meu paper de estratégia da economia criativa, baseada na economia do conhecimento. Trata-se de usar as aptidões modernas que a economia do conhecimento fornece para vir a ter uma economia criativa. Ou seja, criatividade nas empresas, criatividade dos trabalhadores e até criatividade no governo, se é que isso é possível, dadas as nossas tradições ibéricas. No fórum tivemos, por exemplo, o pronunciamento de um colunista famoso do New York Times, Roger Cohen, dizendo “o futuro do Brasil é agora”. Então não é mais aquela história de “Brasil, o país do futuro”…
De Stefan Zweig…
… que é mal interpretado. Ele estava certo no que dizia, só que na interpretação corrente é como se o Brasil fosse sempre o país de um futuro sempre adiado… Então vem o Cohen.
Mas quais são os pré-requisitos para que de fato esse futuro seja agora?
Eu colocaria da seguinte forma: existem inúmeros estudos sobre a economia do conhecimento, que é o uso do conhecimento sob todas as formas. Entram aí ciência e tecnologia, engenharia de produto, engenharia de processo, métodos modernos de management, design, até marca – são intangíveis, que constituem as aptidões modernas da economia do conhecimento. E nós procuramos trazer essas aptidões para as condições especiais do Brasil. Quais são elas? Esse é um país muito rico em recursos naturais. Há seis meses, The Economist publicou um survey sobre o Brasil dizendo que a natureza foi talvez pródiga demais com o país. Então temos que atentar para esse fato e, portanto, temos que ter uma estratégia de desenvolvimento e um uso da economia do conhecimento que leve em conta esse fato. O Brasil pode simultaneamente dar conteúdo tecnológico médio ou alto aos setores intensivos em recursos naturais e desenvolver certas vantagens comparativas na área de altas tecnologias.
A que recursos naturais o senhor imagina que deveríamos agregar alto conteúdo tecnológico?
O melhor exemplo histórico é dos países escandinavos. Porque foram países que começaram fazendo esse aproveitamento de seus recursos naturais. Eles tinham desvantagens, afinal um eucalipto na Escandinávia leva 70 anos para poder ser cortado, enquanto no Brasil bastam sete anos, mas se tornaram muito competentes usando muita ciência e tecnologia. E hoje pode-se usar mais, dadas as outras formas de conhecimento que mencionei. Os países escandinavos hoje exportam aviões, bens de capital, são fortíssimos em setores de alta tecnologia. Basta lembrar o exemplo da Nokia, que começou com desenvolvimento florestal para produção de celulose e hoje é a maior produtora de celulares. Os recursos naturais podem ser um trunfo estratégico ou uma maldição, depende da opção que se faz. No caso da Venezuela acho que há um imenso desperdício da riqueza trazida pelo petróleo que, mesmo com esses preços malucos, não levou o país a transformar sua economia. Mas a resposta direta a sua pergunta é que nós podemos tomar aquelas aptidões, aquele capital intelectual, aqueles intangíveis todos a que me referi, para dar médio e alto conteúdo tecnológico a setores de commodities, agronegócios, agribusiness, e também a commodities industriais, como siderurgia, celulose, petroquímica, metais não-ferrosos, inclusive criando non-commodities, quer dizer, produtos diferenciados.
Como fazer isso?
Sua revista publicou uma matéria que dizia que o Brasil já desenvolveu uma espécie de café naturalmente descafeinado [edição 101, julho de 2004]. Guardei, depois fiz um contato com o Instituto Agronômico de Campinas (IAC) e verifiquei que ainda falta alguma coisa para isso ser explorado comercialmente, porque tem significação no mercado de café. É um exemplo de como se fazem produtos diferenciados numa área de commodities. Mas, para dar uma idéia de quais são as oportunidades estratégicas da economia criativa, falemos primeiro de setores intensivos em recursos naturais. Já mencionei os agronegócios: o Brasil teve uma revolução nos anos 90 e hoje tem a melhor agricultura tropical do mundo. Veja-se esse livro da Embrapa [Agricultura tropical: quatro décadas de inovações tecnológicas, institucionais e políticas, Embrapa Informações Tecnológicas, 2008], isso tem muito a ver com o trabalho acumulado da Embrapa e com o aproveitamento dos cerrados, que me leva à referência da Johanna Döbereiner, com a fixação de nitrogênio nas plantas. São coisas contemporâneas, a criação da Embrapa, a conclusão do estudo do Ipea sobre o potencial agrícola dos cerrados e, logo depois, o governo Geisel lançou aquele programa Polocentro, para o desenvolvimento dos cerrados. Temos cerrados não apenas em Mato Grosso e Goiás, mas também no sul do Pará, sul do Maranhão, sul do Piauí, oeste da Bahia. Então, juntando-se o trabalho da Embrapa com essa descoberta dos cerrados, foi uma enorme oportunidade para o Brasil e continua sendo porque aí entra a vantagem brasileira, tanto do ponto de vista do agronegócio quanto do ponto de vista do agrocombustível. O Brasil tem muita terra disponível para fazer agricultura sem destruir a Floresta Amazônica, por exemplo. A primeira oportunidade é esta.
Que está ligada tanto à crise contemporânea de alimentos quanto à crise do petróleo.
É. Portanto, você vê que o Brasil é solução, não é problema. A opção dos Estados Unidos foi fazer etanol à base de milho, que é alimento. Nós temos a cana, que não comemos e não vai competir com alimentos. Outra coisa é que há grande disponibilidade de terras e a existência de tecnologia. Claro que precisamos dar um passo à frente aí, porque ganhamos o primeiro round para os Estados Unidos, mas eles agora estão disputando conosco o segundo round que é produzir etanol à base de celulose, e o Brasil precisa tomar cuidado para não perder a posição de fronteira tecnológica.
Justamente agora a FAPESP está lançando o seu programa de pesquisa em bioenergia, o Bioen, numa articulação com o CNPq e empresas privadas, e uma das quatro áreas de pesquisa está ligada à exploração das possibilidades de retirar o etanol do bagaço, à hidrólise enzimática e tudo isso.
Pois é, precisamos disso. E outra coisa que temos que fazer é induzir as empresas que produzem celulose a ter florestas multiúso para fazer celulose, papel e ainda produzir etanol. Quer dizer, empresas como Aracruz, como Klabin etc. podem fazer isso perfeitamente, porque sabem que existe isso e que é uma questão de prioridade. Se necessário, se deve dar incentivos ou encontrar outras formas de persuasão, porque isso agora se tornou urgente dada a idéia dos Estados Unidos de chegar à nossa frente no segundo round.
Quem for mais rápido em novas soluções tecnológicas para a produção do etanol vai conseguir ter uma influência grande em outros países também, não é?
Sim, nos países emergentes e nos países em geral que tenham terras. Por exemplo, na África – a China está lá. Certamente temos concorrentes, nossa tecnologia será transferida, tudo bem, é por isso que temos que dar um novo salto tecnológico. Por isso devemos dar prioridade à produção de etanol de celulose, e nem devemos nos limitar à cana-de-açúcar e ao bagaço. Entendermos que há uma nova geração tecnológica para produzir o etanol.
O senhor sente uma certa sensibilidade no meio empresarial e no governo hoje em relação a isso?
Bom, eles sabem que existe, tanto as empresas como o governo, BNDES, Finep, mas é preciso que se torne prioridade para não perdermos. Temos isso e temos toda a área de energia. O Brasil pode mostrar ao mundo que é capaz de gerar uma nova matriz energética, esse é que é o ponto, graças ao biocombustível, lembrando que bio é igual a vida. Aí entram etanol, biodiesel, flex oil etc. Quanto à energia hidrelétrica, os dois grandes países do mundo em matéria de potencial hidrelétrico são Brasil e Rússia e é só uma questão de nós sabermos dar uma solução mais rápida para o problema da licença ambiental. Existem todas as usinas de que podemos usufruir e temos que ter uma visão estratégica que havíamos perdido, por isso tivemos o apagão dos anos 1990. Isso não pode mais acontecer. Pelo contrário, temos que estar à frente para aumentar a participação da hidrelétrica em nossa matriz energética.
Há espaço ainda para isso?
Certamente, principalmente na Amazônia. Mas também em outros lugares, o país tem muita água, essa é outra vantagem.
O senhor está incluindo o Nordeste nesses lugares, com a idéia da transposição das águas do São Francisco?
Se fizermos uma coisa bem feita, sim. Há dois vales no Nordeste que são muito ricos em potencial de projetos: o do São Francisco e o do Parnaíba. Irrigação, frutas irrigadas, vinho… eu tomo um champagne ótimo, chamado Rio Sol, custa R$ 25. É feito perto de Juazeiro, Petrolina, por ali. O projeto da transposição tem que ser colocado em etapas para fazer sentido. Se soubermos fazer isso, mais adiante será até possível trazer mais água do Planalto Central para o São Francisco. E não é preciso construir aqueduto, são canais. Mas isso já é uma quarta, quinta etapa. E refiro-me ao Planalto no estado do Tocantins, por ali. Vamos fazer a transposição, faz todo sentido se for conduzida em etapas. Temos uma proposta elaborada por Roberto Cavalcanti, o diretor técnico do fórum, e ele tem algumas idéias muito boas em desenvolvimento social e desenvolvimento regional. Ele cuida dessas duas áreas enquanto eu cuido de ciência e tecnologia, estratégias de desenvolvimento nacional, nós nos completamos. Bem, mas há também a questão do petróleo.
Vamos aproveitar essa referência a sua atenção a ciência e tecnologia para dar agora um enorme salto para o passado e retomar nossa primeira conversa. E antes de falar de seus tempos de governo, vamos voltar lá para a infância. O senhor nasceu no Piauí em que cidade?
Em Parnaíba, que fica no delta do rio Parnaíba. É uma das regiões mais bonitas do Brasil.
É a mesma região de Humberto de Campos?
Ele morou lá por muito tempo, mas nasceu do outro lado do rio, no Maranhão. E uma das coisas mais bonitas da minha cidade é o cajueiro de Humberto de Campos, que existe até hoje. Essa é uma região privilegiada porque tem o delta com 70 ilhas. E o litoral piauiense é pequenininho, mas cheio de praias lindas, ainda não poluídas. As ilhas têm lagoas, inclusive uma formada por um rio que vinha de Parnaíba e cuja foz as dunas cobriram, transformando-o numa lagoa também. É esquisita, longa como um rio, mas não desemboca em lugar nenhum. E a uns 70 quilômetros de Parnaíba você tem as sete cidades de pedra, formações rochosas com inscrições. O autor de Eram os deuses astronautas?, Erich von Däniken, disse que os deuses-astronautas estiveram no Piauí. Conversa, são inscrições indígenas. O Piauí é muito rico. Por enquanto estão sendo investigadas as inscrições de São Raimundo Nonato. Mas nas sete cidades de pedra há uma em forma de biblioteca, outra bem diferente, cada uma tem uma configuração. E bem próximas, cidades barrocas com bonitas igrejas barrocas do século XVIII. Em Parnaíba também há as igrejas barrocas. Enfim, é uma região privilegiada. A ilha com a principal praia, que é a da Pedra do Sal, fica em frente a Parnaíba. É grande, tem um farol onde eu subia quando garoto para ter a vista dos navios…
Até quando o senhor viveu nessa região?
Até 1950, aos 19 anos. Dois anos antes minha mãe morrera, com 38 anos, e pouco antes ela tinha se voltado para mim e perguntado “o que você faz aqui?”. Eu já tinha feito curso médio, lá não havia curso superior. “Por que você não vai para o Rio?”, ela perguntou. E vim, pela primeira vez, em 1950, assistir ao fatídico jogo Brasil e Uruguai. Nunca vi tanto choro na minha vida. E até pensei que o futebol tivesse acabado no Brasil. Bobagem. Quinze dias depois já estava todo mundo torcendo por um Fla-Flu qualquer.
Quando chegou ao Rio, o senhor foi para a universidade?
Não. Minha primeira preocupação era emprego. Fui morar em Nilópolis, que era um pouco diferente do que é hoje. Um amigo meu me convidou para ficar na casa dele. Tinha um primo de minha mãe que morava na Gávea, mas eu não tinha nenhuma intimidade com ele. Fiquei pouco mais de um mês com o amigo, enquanto procurava emprego. Tive sorte, porque houve um famoso desastre de trem em Anchieta, que era a estação seguinte a Nilópolis, no trem anterior ao meu. Escapei por pouco. De modo que achei melhor encontrar outra solução. Eu tinha um amigo, Jorge Lacerda, que era diretor do suplemento Letras e Artes do jornal Amanhã, o melhor suplemento literário do Brasil. Ele acabara de se eleger deputado pela UDN de Santa Catarina e tentou arranjar emprego para mim no jornal. Me levou a Adonias Filho, que tinha acabado de assumir aquilo que se chamava empresas incorporadas ao patrimônio da União, o que incluía A Manhã, A Noite etc., e o Adonias disse “olha, lamento, eu estou demitindo gente”. De modo que o Jorge se voltou para mim e falou “Velloso, você está precisando de emprego e eu estou precisando de um secretário, que na verdade vai ser um homem de sete instrumentos”.
LEO RAMOSE o Banco do Brasil?
Veio depois. Primeiro foi o Iapi [Instituto de Aposentadoria e Pensões dos Industriários]. Fui ser assessor do presidente, pela minha colocação no concurso. Fiquei lá até 1954, mas já em 1953 estava preocupado com o futuro. Fiz o concurso para o Banco do Brasil, comecei em 1955. Eu morava em São Paulo. Quando voltei de São Paulo fui ser assessor do presidente do Banco do Brasil. Brasília, 1960, com a mudança da capital. No dia seguinte à posse do Jânio, me mandei de volta para o Rio para fazer pós-graduação em economia. Foi quando entrei para o Banco do Brasil que resolvi fazer economia. Eu tinha vindo para o Rio para fazer medicina. Depois pensei em fazer direito, mas com o Banco do Brasil percebi que economia era o que me interessava. Já em 1960 fui convidado a participar de um seminário na Universidade de Illinois, e no final cheguei à conclusão de que não sabia economia. Tinha bons professores, que eram em geral economistas do BNDE, mas havia os velhos catedráticos… Bem, fiz pós-graduação na Fundação Getúlio Vargas, e sou professor lá desde 1964. Na pós, minhas áreas de interesse óbvias eram desenvolvimento, economia internacional, política fiscal, política monetária… Fui aluno de bons professores, inclusive do James Tobin, que foi Prêmio Nobel de Economia. Fiz dois cursos com ele. E estudei como um cão danado, porque a competição era muito desfavorável. Resultaram três coisas de minha passagem pela Universidade de Yale: uma, é que realmente tive de me virar e mostrar aquela esperteza do nordestino, como João Grilo no Auto da compadecida. Decidi que tinha que fazer as provas melhor do que os americanos, então eu estudava muito e ia direto ao assunto. Escrevia menos, inclusive por causa do inglês, e tirava notas melhores geralmente. O que procuro transmitir aos meus alunos é isso: vá direto ao ponto. A segunda coisa boa de minha passagem por lá foi a paixão por Nova York, que ainda é minha cidade favorita. Fiquei dois anos em Yale, de 1962 a 1964. Quando voltei, em maio de 1964, terminei sendo fisgado pelo Roberto Campos, que estava como ministro do Planejamento, e me deu uma missão: criar o Ipea, ou seja, pensar o Brasil no médio e longo prazo. A Finep veio um pouco depois, mas reestruturada em 1967. A idéia que Campos me deu foi ter junto ao Ipea um órgão para financiar projetos. Ele dizia que íamos ter muitos recursos de instituições financeiras internacionais e precisávamos de bons projetos. Nasceu daí a Financiadora de Estudos e Projetos.
O senhor continuava no Ministério do Planejamento, ligado a Roberto Campos.
Sim, como presidente do Ipea. Então aproveitei a lei da reforma administrativa e consegui converter o Ipea, que era uma repartição, numa fundação. A Finep foi convertida em empresa pública e o IBGE em fundação.
A concepção da Finep se inspirava em algum organismo externo?
Não, mas a partir da transformação em fundação começamos a rever seu modelo. Aí já não era o Campos, era o Hélio Beltrão o ministro do Planejamento, para o qual, aliás, fiz o Programa Estratégico de Desenvolvimento (PED), 1968-1970. Pela primeira vez no Brasil, o desenvolvimento científico e tecnológico foi colocado como prioridade de governo. Foi inspiração do Beltrão, e nós resolvemos então usar a Finep como agência do programa. Eu já estava em contato com Pelúcio [José Pelúcio Ferreira], que dirigia o Funtec, Fundo de Financiamento Tecnológico, no BNDE. A idéia era de que ele financiaria principalmente bolsas de pós-graduação e várias coisas na área de desenvolvimento científico e tecnológico. Era pequeno, então resolvemos criar o FNDCT, Fundo Nacional de Desenvolvimento Cintífico e Tecnológico. Eu raciocinei que a Finep deveria ficar como secretaria executiva do FNDCT.
Nesse momento, qual era o seu cargo?
Eu aí era secretário-geral do Planejamento e representava o ministério no então Conselho Nacional de Pesquisas. Via suas deficiências, ele era subordinado à Secretaria do Conselho de Segurança Nacional, não tinha recursos, era uma autarquia sem flexibilidade, sem recursos próprios, dependia de recursos orçamentários. Aproveitamos e convertemos o CNPq em fundação.
Enfim: o senhor estava mexendo com toda a estrutura institucional e de financiamento da ciência e tecnologia.
E o Pelúcio veio para a presidência da Finep. Ele era o meu homem de confiança na área de ciência e tecnologia. José Dion de Mello Telles passou a ser presidente mais adiante do CNPq. Já como fundação. E por fim propus a criação do FNDE, Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, com o objetivo de que no futuro viesse a ser uma espécie de banco da educação. Do grupo que trabalhou com a reforma administrativa surgiu a criação, já com o Jarbas Passarinho, dos centros regionais de pós-graduação. Aí a pós-graduação no Brasil explodiu. Com isso se completou o instrumental. De um lado, os planos nacionais de desenvolvimento, do outro, essas medidas administrativas, institucionais. Eu pessoalmente redigi os dois PNDs. Documentos pequenos, enxutos. Ao lado deles, fizemos os PBDCTs, voltados ao desenvolvimento científico e tecnológico.
O senhor sempre foi visto, do ponto de vista político, como um liberal, e em relação à visão econômica, como um desenvolvimentista. Era inclusive um homem que tinha boa relação com os meios culturais do país e do Rio de Janeiro em particular. Dessa forma, nos momentos mais dramáticos do regime militar, entre 1970 e 1973, não foi difícil trabalhar nessa área de planejamento, pensar as estratégias de desenvolvimento, as estratégias de ciência e tecnologia?
Olha, duas coisas permitiam que a gente trabalhasse. A primeira é que todos os governos militares começaram com a promessa de redemocratização. Você vai encontrar a minha análise do regime militar no livro do Cpdoc [Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil], porque essa pergunta me foi feita. A segunda coisa é que, mesmo no regime militar, a área econômica tinha um bom grau de autonomia. Dentro do raciocínio militar, era uma área técnica da qual não entendiam, e era melhor deixar com os economistas. Aí Castello Branco pegou Campos-Bulhões e vieram as duplas: Delfim-Beltrão, depois Delfim-Velloso, depois Simonsen-Velloso… E aumentou certamente o nosso grau de autonomia no planejamento e na área de ciência e tecnologia no governo Geisel, porque o presidente se interessava pelo setor e aceitou uma tese que eu levei a ele. Propus várias coisas, inclusive perguntei a Geisel se ele achava que fazia sentido o CNPq, a área de ciência e tecnologia, ficar no Conselho de Segurança Nacional. Se não lhe parecia muito melhor que ficasse no Planejamento. Sim, sou, sempre fui um liberal, como disse no livro, “nunca sofri a tentação dos anos 1930”, em que havia uma polarização incrível entre extrema direita e extrema esquerda. Não sou neoliberal, não sou pós-liberal, sou liberal à antiga, no sentido clássico. Liberal, ponto. Só isso. Considero-me um franco-atirador, em política e em economia. Sou a favor do desenvolvimento, não diria desenvolvimentista porque tenho medo dos “ismos”. Sou a favor do desenvolvimento no sentido global: econômico, social, político, cultural, até espiritual, porque acho que isso é importante para o país. Então essa para mim é a grande prioridade. Todos os outros objetivos econômicos têm que ficar subordinados a isso. E aí entra a questão da ciência e tecnologia. Porque cada vez mais ciência e tecnologia são o grande agente, o grande motor, do desenvolvimento. Inovação é quase o novo nome do crescimento. E isso está – para encurtar a conversa – num paper que escrevi em 2005 dentro da visão de economia do conhecimento, que é a tendência do novo modelo de desenvolvimento no mundo: “Evoluindo para a economia do conhecimento”. Uma das coisas que acho importantes naquilo que fiz na altura em que estávamos lançando todos os instrumentos de ciência e tecnologia nos anos 1970 foi uma contribuição muito importante do Ipea para o desenvolvimento dos cerrados. Em 1960 a idéia era de que o cerrado era muito ruim para a agricultura. E no meu contato com o chefe do setor de agricultura do Ipea, Maurício Rangel Reis, que depois foi ministro do Interior, eu lhe propus estudar os cerrados, porque minha intuição dizia que poderia ser a nova fronteira do agronegócio brasileiro. Este livrinho tem um valor histórico sobre a fronteira agrícola dos cerrados. E ele foi complementado pelos estudos da Johanna Döbereiner sobre a fixação de nitrogênio nas plantas. Eu conheci a Johanna, acho que ela fez um trabalho admirável.
De volta para o presente: nesse novo desenho da economia criativa, que lugar o senhor concede em seus estudos e projeções para produtos de uma biodiversidade ainda mal conhecida, por exemplo fármacos?
Antes de chegar lá eu gostaria de colocar um assunto ainda bem ligado ao que estamos discutindo. Falei que o Brasil pode dar médio e alto conteúdo tecnológico aos setores intensivos em recursos naturais. E os que não são intensivos em recursos naturais? A nossa proposta concreta, que está na estratégia da economia criativa e há um paper complementar da Brascom, é transformar o Brasil em terceiro centro global de tecnologia da informação (TI). Porque há um certo deslocamento, embora os Estados Unidos continuem sendo o primeiro país do mundo em inovação, da geração de serviços de tecnologia da informação para Índia, China, e o Brasil pode ser o terceiro. Veja, a Índia exporta US$25 bilhões a US$ 30 bilhões de softwares por ano. O Brasil, que é mais criativo, exporta US$ 800 milhões. Como é que isso acontece? É porque não temos uma estratégia. Agora começa a haver nessa nova política industrial que não tem esse nome, é o PDP, Plano de Desenvolvimento Produtivo, já há incentivos para exportação de softwares.
Nos anos 90 e final dos 80 – mas o final dos 80 não conta porque a economia estava um caos…
… é, foi quando o fórum começou, a inflação estava em 80% ao mês.
… mas depois do caos tentou-se dar um certo incentivo aos softwares e a coisa não funcionou bem. O que estava errado?
A questão é a seguinte: vivia-se na dúvida hamletiana de ter ou não políticas ativas de incentivos a setores. O governo se dividia entre os que achavam que o país devia ter e os que achavam que devia ter apenas políticas horizontais, e com isonomia competitiva etc. Isso é muito importante, inclusive porque não existe, mas para desenvolver os grandes trunfos tem que se dar incentivos específicos, setoriais, sim.
E isso vale para qualquer economia do mundo?
Do mundo, sim. Nós somos o último inocente. Todo mundo faz e nós ficamos discutindo. José Roberto Mendonça de Barros, que naquela época era secretário de política econômica no governo federal, um dia cansou, saiu de lá, aí me telefonou e disse “olha eu quero participar do próximo fórum”. Eu disse muito bem, ele é meu amigo, perguntei qual era o tema que tinha escolhido para o paper que ia apresentar. E sua resposta foi: uma nova política industrial. Quer dizer, ele já tinha saído da dúvida hamletiana. De modo que nessa área de tecnologia da informação o Brasil pode se tornar um terceiro centro global, mesmo porque existe a necessidade, o mercado procura um novo player, porque a Índia tem inúmeros problemas. O primeiro é a questão de fuso horário, são 11 horas de diferença. Hoje você usa TI on-line, é tudo instantâneo, e é um problema, quando você quer se comunicar com a pessoa na Índia a quem você fez uma encomenda de software, o fato de na hora em que você está acordando ele estar indo dormir. Para chegar lá são 24 horas. Há também problemas de terrorismo, guerra com o Paquistão, há dois programas nucleares etc. Além disso é aquela coisa de não colocar todos os ovos na mesma cesta. E não se trata só de softwares. Acho que você lembra que a Intel está construindo uma ilha digital em Parintins, uma ilha no coração da Amazônia. E eles dizem “daqui vamos nos comunicar com todo o mundo”. O acesso a Parintins, no fundo da Amazônia, terra do “meu-boi-bumbá”, é só por avião ou por barco.
E em sua opinião, por que eles decidiram se instalar em Parintins?
De propósito, porque é o coração da Amazônia. Poderiam dizer: “Fazendo isso mostramos que desta ilhazinha estamos em contato com o mundo inteiro”. Porque naturalmente eles têm uma nova geração de chips.
O senhor acha que isso serve como efeito demonstrativo de que vale a pena investir mais em TI no Brasil?
É, por que a Intel está fazendo isso? Porque o Brasil já é o terceiro ou quarto maior mercado da empresa. E mesmo na produção de computadores já somos o quarto, embora o país não seja competitivo internacionalmente, o que é uma pena. Não exporta. Mas vamos voltar à sua pergunta sobre nossas chances com biodiversidade. Esta talvez seja a maior oportunidade do Brasil e a menos utilizada. O Brasil só está usando 1% da sua biodiversidade. Temos a biodiversidade da Amazônia, a da Mata Atlântica, de que só resta 6%, 7% da cobertura inicial, a do Cerrado, que é muito grande – há um novo estudo que acaba de ser feito pela Universidade de Brasília mostrando isso –, a da Caatinga e a Marítima, imensa, nesse país com 8 mil quilômetros de litoral. Basta sair daqui, Copacabana e Ipanema, olhar o arquipélago das Cagarras, e há duas universidades estudando ali. Bem, mas fica toda essa discussão sobre como evitar a devastação da Floresta Amazônica, da Mata Atlântica etc. etc., e nossa posição nesse ponto é muito definida: só existe uma maneira de preservar a floresta e de dar densidade econômica à Amazônia: é a biotecnologia, com base na biodiversidade. Qualquer outra forma destrói a floresta e não adianta tentar controlar porque não há maneira. Trata-se simplesmente de proibir qualquer outra atividade, não há meio- termo. Elas são incontroláveis, sempre destruirão a floresta.
Mas aí se precisaria de todo um aparato legal diferente e…
Sim, inclusive um marco regulatório. Estamos tratando de novas formas de vida em nível molecular ou princípios farmacológicos ativos. Há uma interpretação da legislação atual pela qual não se pode patentear moléculas e princípios ativos. Como fazer biotecnologia nessas condições?
Pensar no modelo da economia criativa tem por trás uma longa história que, de resto, é a própria história do fórum, não?
Acho que já lhe disse que tenho uns 30 livros sobre economia do conhecimento, mas há um que é central e está sobre a minha mesa. É um estudo feito pelo Banco Mundial. Todo ano o Banco publica o World Development Report. O que nos interessa é o de 1998 sobre economia do conhecimento. Com base nesse trabalho o banco fez vários estudos para países. Para a China, a Índia, a Coréia, a Irlanda, um estudo muito bom… Nós tomamos o estudo, trouxemos para o Brasil e em 2001 ganhamos o Prêmio Jabuti de Economia com esse livro, publicado pela José Olympio. De lá pra cá evoluímos e chegamos à visão da economia criativa.
Para concluir: entre sua saída do governo e o começo do fórum, o que o senhor fez? Por último, de onde lhe veio essa idéia de encerrar um fórum que fora aberto pelo presidente da República com uma mesa sobre o amor?
Resposta à primeira pergunta: fiz incursões pelo setor privado e até fiquei ameaçado de ficar rico. Já pensou um piauiense rico? Mas o fato é que aí veio o fórum e não foi nem idéia original minha. Houve uma discussão entre o Paulo Guedes, que era meu vice-presidente no Ibmec [Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais, na época] e o Peter Knight, economista sênior do Banco Mundial e da conversa surgiu a idéia de reunir um grupo de economistas para discutir a crise em que o Brasil se encontrava em 1988. Eu propus que fizéssemos uma coisa mais ampla, um fórum nacional de líderes, dentro da pluralidade que sempre houve em todas as instituições que criei. Na capa do dossiê do primeiro fórum já estavam Groucho Marx e Einstein – duas formas de inteligência e a citação do Riobaldo Tatarana. Mas vamos ao amor em tempos do desamor: na hora de preparar o programa para o fórum pensei que tinha que ser diferente. E, mais do que isso, pensei, o mundo está cheio de desamor. Temos aí o Bush, eu não sei se ele gosta de fazer amor, mas ele gosta de fazer guerras, e guerras que não acabam! E a vida em sociedade, toda a violência do Rio de Janeiro, sai o Exército volta o tráfico nos morros… Eu abri o primeiro seminário de favelas no ano passado e disse: há os sem-terra, os sem-teto e vocês são os sem-Estado. Não tem Estado como lei e ordem, não tem Estado como políticas sociais, então o Rio de Janeiro está todo favelizado, com essa coisa de narcotráfico, uma violência impressionante. É um mundo cheio de violência também no plano individual. Então temos de falar de amor…
… para contra-arrestar…
O desamor! As inúmeras formas de desamor. Então pedi à escritora Maria Adelaide Amaral que falasse no fórum sobre grandes histórias de amor