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Imunologia

Coquetel de anticorpos

Equipe coordenada por brasileiro sugere nova estratégia de desenvolvimento de vacinas contra o vírus da Aids

CYNTHIA GOLDSMITH/CDCCamaleão: o HIV, em rosa, que infecta 3 milhões de pessoas a cada anoCYNTHIA GOLDSMITH/CDC

O imunologista brasileiro Michel Nussenzweig, da Universidade Rockefeller, em Nova York, parece ter encontrado a resposta para uma pergunta que o mundo todo vem fazendo aos pesquisadores – e os próprios pesquisadores vêm se indagando – nos últimos anos: quase três décadas após a descoberta da Aids, por que ainda não se chegou a uma vacina capaz de deter com eficiência o vírus que a provoca, o HIV? A explicação para o insucesso é que as dezenas de formulações candidatas a vacina testadas até o momento foram produzidas com base em uma estratégia válida contra alguns vírus, como o causador da hepatite B, mas não contra o HIV, que a cada ano ainda infecta cerca de 3 milhões de pessoas no mundo.

Esperava-se aniquilar o HIV como os caçadores de lobisomens eliminavam os homens-lobo nos filmes de terror: cravando-lhes uma bala de prata no coração. No caso do HIV, a bala seria uma proteína (anticorpo) capaz de aderir a um ponto vital do vírus e o impedir de penetrar nas células de defesa do organismo e se multiplicar. Quatro desses superanticorpos já foram identificados, mas nenhum foi capaz de isoladamente deter o vírus. E talvez nem mesmo produzidos em conjunto consigam, uma vez que o HIV se comporta como um vírus-camaleão, que acumula pequenas alterações conforme se reproduz, tornando inúteis os anticorpos produzidos contra ele.

Ante os resultados desapontadores dessa estratégia, Nussenzweig e sua equipe resolveram tentar algo diferente. Foram investigar como o organismo de um grupo especial de pessoas que produzem uma ampla variedade de anticorpos contra o HIV – eles correspondem a cerca de 10% dos portadores do vírus – combate naturalmente a infecção. Ao analisar o sangue de seis desses portadores especiais, o grupo da Rockefeller descobriu que o organismo deles adota uma estratégia de combate diferente: em vez de produzir apenas um ou dois tipos de superanticorpos contra o HIV, fabrica concentrações elevadas de dezenas de anticorpos diferentes que aderem a pontos distintos do vírus, relataram os pesquisadores em artigo publicado na edição de 2 de abril da revista Nature.

“Esses pacientes produzem níveis elevados de anticorpos distintos que individualmente têm pouco poder de neutralização, mas juntos são muito potentes”, explica Nussenzweig. Desse modo, os controladores de elite mantêm o vírus em concentrações baixíssimas no sangue – inferior a 50 cópias por mililitro – a ponto de evitar o surgimento dos sintomas da Aids. Quem desenvolve a doença em geral apresenta milhões de cópias de HIV por mililitro de sangue.

GABRIEL VICTORA E TANJA SCHWICKERT/UNIVERSIDADE ROCKEFELLERO mapa: precursoras de células dendríticas (verde) em linfonodo GABRIEL VICTORA E TANJA SCHWICKERT/UNIVERSIDADE ROCKEFELLER

Embora os imunologistas conhecessem os controladores de elite havia alguns anos, pouco sabiam sobre como seus corpos enfrentavam a infecção. É que não era possível isolar do sangue as células de defesa produtoras de anticorpos: os linfócitos B, capazes de conservar por meses ou anos a receita de proteínas que neutralizam os microrganismos invasores.

Essa situação só mudou recentemente com o trabalho do imunologista alemão Johannes Scheid. Pesquisador visitante no laboratório de Nussenzweig e primeiro autor do artigo na Nature, Scheid concebeu uma forma de separar os linfócitos B do sangue dos portadores do vírus. Com o auxílio de pesquisadores da Alemanha e de outras instituições dos Estados Unidos – entre eles, David Ho, um dos precursores do uso do coquetel de medicamentos contra o vírus –, ele coletou centenas de linfócitos B do sangue de seis pessoas que produziam elevados níveis de anticorpos contra o HIV. No total, foram identificados 502 anticorpos distintos, dos quais 433 se ligavam a diferentes pontos de uma proteína da cápsula do vírus (a gp140) usada para aderir às células do sistema de defesa.

Por meio de técnicas genéticas, Scheid e Nussenzweig reproduziram os anticorpos e os testaram em laboratório contra o vírus. Constataram que, em separado, nenhuma dessas 433 proteínas tinha o poder de fogo de um dos quatro superanticorpos conhecidos. Mas reunidas em uma espécie de coquetel, contendo de 20 a 50 variedades, elas apresentavam ação mais ampla que a dos superanticorpos. “A base molecular dessa atividade ainda não foi determinada, mas pode resultar da combinação de efeitos aditivos dos diferentes anticorpos”, escreveram os autores do estudo.

Os pesquisadores não excluem a possibilidade de que, no futuro, se encontre um superanticorpo apto a deter o vírus, mas acreditam que o ataque múltiplo seja mais viável. “Com base nesses resultados”, comenta Nussenzweig, “parece mais promissor tentar produzir uma vacina com ação mais global que simule o que acontece no organismo dos indivíduos que combatem o vírus naturalmente”.

Mas nada disso deve se tornar disponível às pessoas tão cedo. Apesar do avanço que essa descoberta representa, ainda serão necessários anos de pesquisa até que se consiga uma vacina com propriedades semelhantes às do sistema imune de quem controla bem o vírus. Antes será preciso desfazer uma série de dúvidas – não se sabe, por exemplo, qual proporção de cada anticorpo seria necessária para neutralizar o HIV, nem contra quais cepas do vírus essa mistura de anticorpos pode ser eficiente. Nussenzweig, no entanto, não desanima e aposta em uma nova forma de produção de imunizantes investigada nos últimos anos: a concepção inteligente de vacinas (intelligent vaccine design, em inglês), que se vale de informações genéticas para estimular a produção de defesas mais eficazes contra vírus, bactérias e outros parasitas, além de células tumorais. “A concepção inteligente de vacinas é a forma de se pensar vacinas do século XXI”, comenta o imunologista que nasceu no Brasil, mas vive nos Estados Unidos há quase quatro décadas. 

CYNTHIA GOLDSMITH/CDCO parto: cópias do vírus da Aids (verde) recém-criadas em linfócito (salmão)CYNTHIA GOLDSMITH/CDC

O sucesso dessa nova estratégia dependerá da habilidade de se controlar a atividade de outro tipo de células do sistema imune – as células dendríticas, acionadoras da cadeia de eventos celulares que culmina na produção de anticorpos –, cujo ciclo evolutivo acaba de ser elucidado pela equipe de Nussenzweig em um artigo que mereceu a capa da edição de 17 de abril da revista Science, ilustrada por uma imagem obtida pelo imunologista brasileiro Gabriel Victora. Chamadas de dendríticas por apresentarem prolongamentos que lembram os ramos de uma árvore (déndron, em grego), essas células funcionam como sentinelas do corpo.

Tão logo deparam com vírus, bactérias ou mesmo células tumorais (que perderam as características que permitem identificá-la como sendo do próprio organismo), as células dendríticas emitem prolongamentos semelhantes aos braços de um polvo e os envolvem, engolem e destroem. Na sequência desse mecanismo de destruição conhecido como fagocitose, as células dendríticas expõem em sua própria superfície pedaços do invasor e os apresentam a outro grupo de células de defesa, os linfócitos T, que, por sua vez, acionam os linfócitos B, produtores de anticorpos.

Células dendríticas maduras, prontas para induzir a produção de anticorpos, são encontradas em órgãos que integram o sistema imune, como o baço e os linfonodos. Também estão presentes na pele e nas membranas que revestem órgãos em contato direto ou indireto com o ambiente, como o nariz, os pulmões e os intestinos. Mas há quase quatro décadas se tentava descobrir quais células do sistema de defesa as originavam.

No laboratório de Nussenzweig, a pesquisadora Kang Liu teve a ideia de usar proteínas encontradas exclusivamente nas células dendríticas maduras para identificar suas precursoras. Da medula óssea de camundongos, ela isolou as candidatas a genitora das células dendríticas marcadas com uma proteína verde fluorescente e as injetou em roedores geneticamente idênticos. Com o auxílio de uma técnica avançada que permite ver as células do sistema imune em atividade no corpo de animais vivos – a microscopia intravital multifótons –, Kang Liu, Victora e Tanja Schwickert acompanharam o percurso dessas células no corpo dos camundongos e documentaram os estágios de desenvolvimento delas.

A equipe da Rockefeller confirmou que as células dendríticas de fato surgem no interior dos ossos, assim como as demais células do sistema de defesa, e ainda imaturas chegam à corrente sanguínea e se espalham pelo corpo. Parte delas se aloja no baço e nos linfonodos, onde amadurece até que, cerca de uma semana mais tarde, esteja pronta para identificar os invasores.

Diferentemente do que muitos imunologistas acreditavam, as células dendríticas evoluem a partir de genitores distintos dos que geram os macrófagos, outro grupo de células de defesa especializadas em realizar a fagocitose, mas menos aptas a desencadear respostas imunes. Estas são descendentes diretas dos monócitos, enquanto as primeiras são geradas por células que a equipe de Nussenzweig chamou de precursores de células dendríticas (pre-CDs).

“Conhecer a origem precisa dessas células e todos os passos de seu desenvolvimento é fundamental para que se saiba como podem ser manipuladas para a obtenção de vacinas”, explica Victora. “A identificação dos órgãos em que se desenvolvem e se localizam deve auxiliar na compreensão das funções que executam”, completa Nussenzweig. Os pesquisadores imaginam que a resposta imune gerada depende do estágio de desenvolvimento em que as células dendríticas são despertadas pelos patógenos invasores.

Acredita-se que também seja possível gerar uma resposta imunológica mais eficiente ao fornecer diretamente às células dendríticas moléculas que elas reconheçam como sendo de microrganismos invasores. A forma tradicional de produção de vacinas baseia-se na injeção de grandes pedaços ou formas inativas de vírus ou bactérias, dos quais apenas parte chega às células dendríticas, acionando a produção de uma variedade restrita de anticorpos. A ideia do grupo de Nussenzweig é desenvolver técnicas que permitam direcionar quantidades muito menores de proteínas virais ao tipo de célula dendrítica necessário para desencadear a resposta imune adequada contra o HIV – estratégia que deve valer para outras enfermidades. Com base nesse princípio, Michel Nussenzweig trabalha em parceria com seus pais, Ruth e Victor, imunologistas de renome mundial que atuam na Universidade de Nova York, no desenvolvimento de uma candidata a vacina contra a malária produzida a partir da estimulação das células dendríticas.

Tanto a produção de vacinas a partir da estimulação das células dendríticas como a criação de uma nova leva de imunizantes contra o HIV, porém, são promessas que devem levar anos para se concretizar. Afinal, como lembra Michel Nussenzweig, apenas recentemente sua equipe conseguiu desenvolver as ferramentas necessárias para isolar os linfócitos B e para acompanhar o desenvolvimento das células dendríticas em animais vivos. “Quatro ou cinco anos atrás”, diz o pesquisador, “esse trabalho era impossível”.

Artigos científicos
SCHEID, J. F. et al. Broad diversity of neutralizing antibodies isolated from memory B cells in HIV-infected individualsNature. v. 458, p. 636-640. 2 abr. 2009.
LIU, K.; VICTORA, G. et al. In vivo analysis of dendritic cell development and homeostasisScience. v. 324,  p. 392-397. 17 abr. 2009.

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