fabio colombiniO improvável aconteceu na cidade japonesa de Nagoya, no dia 29 de outubro, quando delegações de 193 países reunidas na 10a Conferência das Partes da Convenção sobre Diversidade Biológica (CBD), convocada pela ONU, chegaram a um inédito acordo para a proteção da diversidade de espécies e dos recursos genéticos de plantas, animais e microrganismos. As medidas aprovadas em Nagoya vinculam-se a três frentes. A primeira, e a mais difícil de avançar, foi um protocolo sobre acesso e repartição de benefícios dos recursos genéticos da biodiversidade (ABS, na sigla em inglês). Ele estabelece que cada país é soberano sobre os recursos genéticos de sua biodiversidade e que o acesso a essa biodiversidade só poderá ser feito com o seu consentimento. Se a riqueza biológica levar ao desenvolvimento de um produto, os lucros deverão ser divididos com o país de origem, embora a forma de partilhar o dinheiro ainda precise ser definida.
O segundo avanço foi a aprovação de um plano estratégico para o período 2011-2020, com metas para a redução da perda de biodiversidade. A porcentagem dos territórios a serem conservados foi ampliada. No caso das áreas terrestres, esse quinhão deverá ser de 17% até 2020 – a meta anterior, não alcançada pela maioria dos países, era de 10%. No caso dos ecossistemas marinhos, as áreas protegidas deverão passar de 1% para 10%. Outra novidade importante foi a inclusão do valor da biodiversidade nas contas públicas dos países e a redução dos subsídios destinados a atividades consideradas prejudiciais à biodiversidade. O terceiro passo é o compromisso dos países desenvolvidos com o financiamento de ações de preservação da biodiversidade. “Ficamos surpresos de o jogo ter virado a ponto de se definir um protocolo”, diz Carlos Alfredo Joly, professor do Instituto de Biologia da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e coordenador do programa Biota-FAPESP. “Tratava-se de uma agenda tensa, com temas que se arrastavam há quase 18 anos, e nada indicava que isso pudesse sair do papel.”
Parâmetros
Ganhou importância após o acordo em Nagoya uma conferência científica agendada pelo programa Biota-FAPESP, a Academia Brasileira de Ciências e a Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência entre os dias 11 e 15 de dezembro, em Bragança Paulista (SP). Com a presença de vários negociadores, entre os quais Ahmed Djoghlaf, secretário executivo da Convenção sobre Diversidade Biológica, o encontro vai discutir, entre outros temas, as metas estabelecidas em Nagoya e os meios de o Brasil alcançá-las. “A grande dificuldade de atingir as metas do plano estratégico estabelecido em 2002 foi a falta de parâmetros mensuráveis. Vamos tratar disso na reunião em Bragança Paulista”, afirma o coordenador do Biota-FAPESP.
O Brasil, na presidência de um grupo que reúne 17 países megadiversos, teve um papel importante na articulação do acordo de Nagoya. O desfecho foi surpreendente porque superou um impasse que parecia intransponível até as vésperas do encontro. Desde a Conferência Rio-92, as negociações sobre a proteção à biodiversidade giram em torno de uma trinca de objetivos: a conservação, o uso sustentável da biodiversidade e a chamada repartição de benefícios. Sobretudo o último tópico, que envolve o compromisso dos países ricos de compensarem financeiramente as nações em desenvolvimento pelo uso de suas riquezas, sempre representou um entrave nas negociações. “Os três objetivos são imbricados. É difícil falar em conservação sem avançar no uso sustentável, assim como é difícil falar em uso sustentável sem estabelecer regras para a repartição de benefícios”, diz o biólogo Braulio Dias, secretário de Biodiversidade e Florestas do Ministério do Meio Ambiente (MMA), um dos negociadores brasileiros em Nagoya. Numa reunião preparatória realizada em maio, em Nairóbi, em que se negociou o rascunho de um novo plano estratégico para 2020, ficou claro que persistia o impasse. “Ninguém queria assumir compromissos”, diz Dias. E a Cúpula de Johannesburgo, em 2002, havia estabelecido 2010 como prazo final para que se chegasse a um acordo envolvendo a repartição de benefícios. “Se não fosse agora, perderíamos o momento e sabe-se lá quantos anos levaríamos para conseguir um acordo”, afirma o secretário.
Antes da conferência, o Brasil fez uma proposta radical: ou se obtinha um pacote envolvendo os três objetivos, ou não haveria acordo parcial. Na segunda e última semana da conferência, como não se obtinha avanço, o Brasil iniciou conversas bilaterais com os países da União Europeia, que acabaram flexibilizando suas posições e, na reta final das negociações, tornaram-se os principais defensores das decisões em pacote. O Japão, país anfitrião, também se esforçou para alcançar um acordo. Mas persistiram dúvidas até o final.
Países como Irã, Malásia e Índia exigiam que os países ricos fossem obrigados a divulgar as informações sobre a origem dos recursos naturais utilizados na hora de apresentar patentes. A ideia não prosperou, mas, em contrapartida, definiu-se que serão designadas instituições para verificar como aquele material genético foi obtido. Da mesma forma, os países africanos queriam que a repartição de benefícios fosse retroativa – ou seja, que os países ricos pagassem também por toda a riqueza biológica que utilizaram no passado. Como houve consenso de que a ideia era inaplicável, combinou-se a criação de um fundo para compensar o uso pretérito da biodiversidade. A dois dias do final da conferência, ainda havia seis artigos e uma dezena de parágrafos em colchetes, lembra o secretário Braulio Dias. Na véspera, alguns países em desenvolvimento, notadamente os do grupo da Aliança Bolivariana para as Américas (Alba), que reúne Equador, Cuba, Bolívia e Venezuela, entre outros, fizeram questionamentos sobre a ideia de estabelecer um valor para a biodiversidade e incluí-lo nas contas públicas dos países, sob o argumento de que não se deveria precificar a biodiversidade e ficar a reboque de mecanismos de mercado. “Argumentamos que não era preciso monetizar tudo e que, hoje, as riquezas naturais valem zero no cálculo do PIB”, diz Dias. “Mas ficamos com receio de que eles apresentassem objeções e o acordo não saísse.” Na hora agá, nenhum país quis assumir o ônus de inviabilizar o acordo, que só poderia ser obtido por consenso, e repetir o fiasco da Conferência do Clima de Copenhague, no ano passado.
Detalhes
Euforia à parte, o Protocolo de Nagoya terá agora de vencer uma sucessão de obstáculos até se provar viável e gerar resultados. Trata-se, na verdade, de um acordo genérico, que dependerá de muitas rodadas de negociação nos próximos quatro anos, além da criação de legislações ambientais principalmente nos países pobres. “O protocolo ABS não resolve todos os problemas. Os detalhes serão resolvidos pela legislação nacional. Ficou amplo, pois nada ficou excluído, exceto os recursos genéticos humanos”, diz Braulio Dias. O elo mais frágil do acordo foi o compromisso dos países desenvolvidos de financiar a proteção à biodiversidade, que, por enquanto, se resume a ofertas já conhecidas da Alemanha e do Japão. Para Cláudio Maretti, da entidade ambientalista WWF-Brasil, o protocolo demorará pelo menos duas novas conferências para se tornar operacional. Os acordos de uma conferência desse tipo são considerados soft law, ou seja, não têm força de lei, embora os países assumam compromissos de implementá-los. Só após a ratificação do acordo pelos parlamentos de 50 países é que o Protocolo de Nagoya entrará em vigor. E o país mais rico do planeta, os Estados Unidos, não participou da conferência e não será alcançado por suas decisões. “O acordo geral sobre acesso e repartição de benefícios permite que os esforços de conservação caminhem, mas ainda falta trabalhar alguns detalhes”, diz o biólogo norte-americano Thomas Lovejoy, um estudioso da Amazônia há quatro décadas que introduziu o termo biodiversidade na comunidade científica nos anos 1980. Reiterando a posição que defendeu em maio passado, quando a convite do programa Biota-FAPESP apresentou a terceira edição do Global Biodiversity Outlook no Palácio dos Bandeirantes, em São Paulo, Lovejoy criticou os entraves à pesquisa impostos por leis contra a biopirataria. “Ressalto a importância de permitir a pesquisa, ao invés de sufocá-la, uma vez que nenhum país, isoladamente, tem expertise necessária para caminhar sozinho”, afirma Lovejoy. “Há mais de 10 anos a burocracia criada pela atual legislação brasileira emperra as pesquisas, principalmente nas questões associadas ao uso sustentável e à repartição de benefícios”, reforça Carlos Joly. O secretário do Meio Ambiente, Braulio Dias, prevê um abrandamento da legislação antibiopirataria no Brasil com a aprovação do Protocolo de Nagoya. “Com a proteção à biodiversidade de caráter internacional, vai ficar mais fácil criar uma legislação menos restritiva e menos burocrática, que ajude a pesquisa e o desenvolvimento tecnológico”, afirma.
Na avaliação de Thomas Lovejoy, os objetivos propostos pelo plano estratégico para 2020 são exequíveis. “Pessoalmente, preferia metas mais ambiciosas, como a interrupção da perda da biodiversidade causada pelo homem, em vez da redução, como foi aprovado. Mas como a maioria dos países não conseguiu cumprir as metas para 2010, considerou-se isso ambicioso demais”, diz o biólogo, referindo-se ao fato de que todos os países falharam no cumprimento de metas estabelecidas pelo plano estratégico estabelecido em 2002 com metas para 2010. Para Anne Larigauderie, diretora executiva da Diversitas, programa internacional da ciência da biodiversidade patrocinado pela Unesco, os desafios à frente são grandes. “Sou cautelosamente otimista com os resultados de Nagoya”, diz Anne, que participou do encontro no Japão. “Em diversos aspectos, a conferência foi um sucesso. Mas devemos ter em mente que um dos resultados da reunião foi também o fracasso coletivo nas metas para 2010. Esperemos que os instrumentos de política desenhados em Nagoya estejam à altura dos desafios que virão”, afirma.
Um momento importante da conferência de Nagoya foram os debates em torno do estudo Economia dos Ecossistemas e Biodiversidade (TEEB, na sigla em inglês), produzido pelo Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma), que apontou o valor econômico de plantas, animais, florestas e ecossistemas. O estudo avaliou os custos da perda da biodiversidade, que ficaram entre R$ 3,6 e R$ 8,2 trilhões por ano. “A importância do TEEB é que ele possibilitou, com a utilização de argumentos econômicos, ampliar o debate sobre a necessidade de conservação da biodiversidade para outras esferas da sociedade além da ambiental e influenciar tomadores de decisão”, afirma Cláudio Maretti, superintendente de conservação da WWF-Brasil. “Além disso, no caso de países em desenvolvimento que precisam de dinheiro para investir em conservação, o estudo TEEB aponta possibilidades de retorno econômico com a exploração dos serviços prestados pela biodiversidade”, afirma.
No plano nacional, os desdobramentos do Protocolo de Nagoya também enfrentarão desafios. Não existe, hoje, consenso nem sequer dentro do governo para implementar certos tópicos. A repartição de benefícios, por exemplo, foi questionada pelo Ministério da Agricultura, num reflexo dos temores do setor ruralista de que o país tenha de pagar para usufruir os recursos genéticos de outros países para melhorar suas culturas. “Temos uma sinalização do Ministério da Agricultura de que há interesse em conversar sobre uma proposta única de governo”, diz Braulio Dias. “Se conseguirmos criar um pacote redondo de propostas para apresentar ao Congresso, ficará mais fácil mobilizar os parlamentares da base do governo. Mas se isso não acontecer será difícil”, explica o secretário. “As dificuldades são concretas, como a batalha do Código Florestal mostra”, afirma Carlos Joly, referindo-se à possibilidade de o Congresso flexibilizar a proteção à biodiversidade em propriedades privadas, por pressão dos políticos ruralistas.
Mensagem
Cláudio Maretti, do WWF-Brasil, diz que a chave para levar adiante os avanços de Nagoya é a mobilização da sociedade. “Os resultados da conferência levantaram o ânimo, mas agora precisamos despertar o interesse da sociedade para as metas, algo que a mobilização em torno das mudanças climáticas conseguiu fazer”, afirma. “Precisamos mostrar que a briga não é entre ambientalistas e ruralistas, mas entre um modelo novo e sustentável, que já obteve a adesão de parte do empresariado, e uma economia antiga, que ainda vê os recursos naturais como inesgotáveis”, afirma.
Mesmo sem ter cumprido as metas para 2010, o Brasil foi um dos países que mais avançaram nesse sentido – o que deu força aos negociadores brasileiros nas conversas de Nagoya. Houve redução significativa na taxa de desmatamento da Amazônia, que caiu 75% entre 2004 e 2009, e ampliaram-se as áreas protegidas. “Por outro lado, as metas brasileiras que dependiam do avanço do conhecimento científico não foram tão bem”, diz Carlos Joly, do Biota-FAPESP. Cada país deveria publicar listas oficiais de espécies que ocorrem nos seus territórios, a fim de estabelecer o direito de participar da repartição de benefícios oriundos de sua utilização. “Tínhamos que ter listas oficiais de plantas, animais e microrganismos, mas só conseguimos apresentar uma lista parcial de espécies da flora brasileira, disponível no site do Jardim Botânico do Rio de Janeiro. Para animais e microrganismos brasileiros, não temos sequer listas parciais oficialmente reconhecidas”, diz Joly, ressaltando que São Paulo, neste quesito, conseguiu avançar. Um volume especial da revista Biota Neotropica trará, em breve, a lista oficial de espécies de vertebrados, invertebrados e plantas do estado de São Paulo. Segundo o secretário do Meio Ambiente do estado de São Paulo, Pedro Ubiratan Escorel de Azevedo, que esteve em Nagoya, São Paulo deu uma contribuição significativa para as metas alcançadas pelo Brasil. “O pagamento de serviços ambientais já está previsto numa lei estadual e já havíamos criado áreas protegidas marinhas”, afirma. “São Paulo já tem 52% das áreas marinhas protegidas e 13% da área terrestre”, diz.
Nagoya sacramentou a criação da Rede de Observação da Biodiversidade Global (GEO-BON), uma estrutura global e cientificamente robusta para a observação e detecção de alterações na biodiversidade. “Esta é uma iniciativa muito importante que vai nos dar o patamar necessário para acompanhar o quanto estamos fazendo para alcançar as novas metas”, diz o biólogo norte-americano Harold Mooney, da Universidade Stanford, presidente do comitê científico da Diversitas, que virá ao Brasil em dezembro participar da conferência em Bragança Paulista. “Não há um plano claro de ação para atingir os objetivos traçados em Nagoya, ainda que muitos países estejam realmente empenhados em alcançá-los”, afirma Mooney, que também esteve em Nagoya.
Pares
O cenário pós-Nagoya também impõe um engajamento maior dos cientistas na proteção à biodiversidade. Numa reunião realizada em junho pelo Programa Ambiental das Nações Unidas (Unep, na sigla em inglês), em Busan, Coreia do Sul, representantes de 85 países recomendaram a criação da Plataforma Intergovernamental sobre Biodiversidade e Serviços de Ecossistemas (IPBES). A intenção, que precisa agora ser referendada pela Assembleia Geral da ONU, é realizar avaliações regulares e atuais sobre o conhecimento a respeito da biodiversidade e de serviços ecossistêmicos. Os estudos científicos deverão ser independentes e avaliados por pares, em moldes semelhantes ao trabalho do Painel Intergovernamental sobre as Mudanças Climáticas (IPCC). Uma tentativa anterior de criar um organismo desse tipo foi rejeitada pela diplomacia de vários países, inclusive o Brasil. Tratava-se do Mecanismo Internacional de Expertise Científica em Biodiversidade (Imoseb, na sigla em inglês), proposto pela França e visto como tentativa de intervenção dos países desenvolvidos nas estratégias dos países em desenvolvimento. “A principal razão do fracasso foi que não havia uma garantia de proporcionalidade de representação, na composição do organismo, entre os países ricos em biodiversidade e os países que possuem tecnologia para explorá-la”, explica Carlos Joly.
De acordo com o secretário Braulio Dias, o IPBES terá uma diferença fundamental em relação ao IPCC: em vez de apenas produzir relatórios, também se empenhará na capacitação de técnicos, sobretudo em países pobres. “Isso é necessário para fazer a ponte entre o conhecimento científico e sua aplicação em políticas públicas”, afirma. De acordo com Dias, a ministra do Meio Ambiente, Isabela Teixeira, já anunciou o interesse de criar uma instância nacional nos moldes do IPBES. “Sabemos que não vamos resolver o problema da biodiversidade sem uma forte base científica”, afirma o secretário.
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