Para os animais, o ato sexual é o caminho para a perpetuação da espécie. Um objetivo primordial que está se invertendo – pelo menos para o Aedes aegypti, o mosquito transmissor da dengue. Por meio de manipulação genética, uma população de machos criados em laboratório recebeu um gene modificado que produz uma proteína que mata a prole do cruzamento com fêmeas normais existentes em qualquer ambiente. Essa estratégia pode levar à supressão de um grande número de indivíduos dessa espécie, reduzir a pulverização de inseticidas para eliminar os mosquitos e, consequentemente, diminuir a incidência da doença entre seres humanos.
A primeira liberação na natureza desses animais geneticamente modificados no Brasil foi aprovada em dezembro de 2010 pela Comissão Técnica Nacional de Biossegurança (CTNBio). A linhagem transgênica do Aedes aegypti desenvolvida pela empresa britânica Oxford Insect Tecnologies (Oxitec) deverá ser liberada no município de Juazeiro, no estado da Bahia, a partir deste mês pela bióloga Margareth Capurro, do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da Universidade de São Paulo (USP), em parceria com a empresa Moscamed Brasil, instalada na mesma cidade baiana.
A dengue é um dos principais problemas de saúde pública do mundo, especialmente em países tropicais como o Brasil. De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS), 50 milhões de pessoas contraem a doença anualmente, causando 550 mil internações hospitalares e 20 mil mortes. Hoje a única forma de controlá-la é eliminando seu transmissor, o mosquito Aedes aegypti. Os insetos transgênicos desenvolvidos pela Oxitec poderão se transformar em uma opção para essa tarefa. Os machos da linhagem OX513A, como foi denominada pela empresa, são liberados para copular com fêmeas selvagens. Os descendentes desses acasalamentos herdam a proteína letal, morrendo ainda na fase de larva ou pupa. Para que sua produção seja possível em laboratório, eles foram programados para sobreviver quando recebem o antibiótico tetraciclina. Sem esse antídoto, que reprime a síntese da proteína letal, não haveria sobreviventes para serem soltos na natureza. A cepa transgênica contém um marcador genético fluorescente que se torna visível nas larvas quando elas recebem luz ultravioleta. Isso garante um controle maior de qualidade na produção e na dispersão no campo. A liberação contínua e em número suficiente desses insetos geneticamente modificados em ambientes infestados deve reduzir com o tempo a população dos mosquitos selvagens a um nível abaixo do necessário para transmitir a doença.
A história do trabalho de Margareth com esses mosquitos começou num encontro casual, numa conferência em 2007, que ela teve com o cientista britânico Luke Alphey, da Universidade de Oxford, fundador da Oxitec. Ele propôs que ela testasse no Brasil os transgênicos que ele havia desenvolvido. Na ocasião a pesquisadora brasileira achou que não seria viável a experiência, por causa dos entraves burocráticos e legais. Pouco depois mudou de ideia e resolveu fazer a experiência. Então, ela solicitou autorização da CTNBio, responsável pela regulamentação de transgênicos no país, para importar os insetos. “A importação foi concedida no dia 21 de setembro de 2009”, recorda Margareth. “Uma semana depois recebemos da Oxitec, sem custos, um envelope com 5 mil ovos.” A pesquisadora começou então a criar o Aedes aegypti transgênico no insetário de seu laboratório no ICB. Mas para eles serem soltos e testados na natureza precisariam ser criados em grande escala. Além disso, também seria necessário um local adequado, isolado e com incidência de mosquitos selvagens, para sua liberação. Foi então que o ex-professor da USP e fundador da Moscamed, Aldo Malavasi, se propôs a produzir os mosquitos transgênicos em sua biofábrica e sugeriu que eles fossem soltos lá mesmo, em vilas isoladas de Juazeiro. Margareth aceitou a proposta. Para colocá-la em prática, foi assinado um convênio entre a empresa e a USP. A Moscamed também não está cobrando pelo trabalho. “Com esses testes ganhamos visibilidade, capacitação técnica, ao mesmo tempo que podemos ter uma alternativa para o controle desses insetos”, justifica Malavasi. A empresa dele tem experiência na criação em massa de insetos. Ela produz machos estéreis por irradiação de cobalto da mosca-do-mediterrâneo (Ceratitis capitata) e da mosca-da-bicheira (Cochliomyia hominivorax), que são soltos nas plantações de frutas da região de Juazeiro e Petrolina, Pernambuco, no Vale do São Francisco, para competir com os selvagens pelas fêmeas (ver Pesquisa FAPESP nº 133).
Insetos em massa
Quando acontece a cópula, não nascem novas moscas. Com o tempo as populações desses insetos vão diminuindo. “Como criamos insetos em massa já há algum tempo, vamos entrar com essa experiência e a infraestrutura da Moscamed para a multiplicação dos mosquitos transgênicos”, explica Malavasi. “Para isso construímos um laboratório para trabalhar com transgênicos que já foi aprovado pela CTNBio.”
A equipe da Moscamed escolheu os locais favoráveis para os testes de campo na região de clima semiárido do entorno de Juazeiro. “São cinco bairros isolados, por plantações, rodovias ou áreas despovoadas, com alta incidência de Aedes aegypti”, conta Margareth. “Só numa caixa-d’água de uma residência encontramos cerca de 300 larvas do mosquito.” A pesquisadora cita outra vantagem dos locais escolhidos. “Por causa da atuação da Moscamed na região, a população local está acostumada com a liberação de insetos no ambiente”, explica. “Por isso não ficará com receio dos mosquitos que vamos liberar.” Nesse sentido, Margareth faz questão de dizer que apenas os machos, que não picam e não transmitem a doença, serão soltos. Com a autorização da CTNBio em mãos, o próximo passo será fazer um estudo de dispersão, para avaliar o tamanho das populações locais do Aedes aegypti. Isso é necessário para calcular quantos transgênicos terão de ser soltos. Margareth explica que para cada macho selvagem devem ser liberados de 5 a 10 transgênicos. A pesquisadora não espera uma diminuição significativa das populações selvagens com as primeiras liberações dos insetos produzidos em laboratório. “Para que isso ocorra é necessário que sejam soltos transgênicos em pelo menos dois verões”, explica.
A julgar pelos resultados obtidos em outros lugares do mundo, onde os mosquitos produzidos pela Oxitec foram soltos, há bons motivos para se esperar que a experiência dê certo no Brasil. Testes realizados no ano passado nas Ilhas Cayman, no Caribe, com 3 milhões de mosquitos geneticamente modificados, mostraram que houve uma supressão de 80% da população selvagem no local da liberação. Na Malásia foram obtidos resultados semelhantes. Eles motivam outros países a também realizar experiências com os transgênicos da empresa britânica. A Oxitec informa em seu site que França, Índia, Cingapura, Tailândia, Estados Unidos e Vietnã já aprovaram a importação dos insetos.
O caminho escolhido pela Oxitec para desenvolver mosquitos geneticamente modificados é apenas um dos vários que são trilhados mundo afora. Um exemplo veio a público no início de 2010, por meio de um artigo publicado na revista científica Proceedings of the National Academy of Sciences (PNAS), assinado por uma equipe de cientistas internacionais, que inclui o biólogo brasileiro Osvaldo Marinotti, ex-pesquisador da USP e atualmente professor da Universidade da Califórnia de Irvine (UCI), nos Estados Unidos. Em vez de criar machos da espécie Aedes aegypti que deixam uma herança genética mortal para seus descendentes, eles desenvolveram uma fêmea transgênica que é incapaz de voar. Para isso, eles se aproveitaram de uma diferença natural entre os sexos.
Sobram os machos
Os músculos que dão sustentação à capacidade de voar são mais fortes nas fêmeas. Não se sabe exatamente por que, mas supõe-se que isso se deva ao fato de serem os mosquitos do sexo feminino que sugam o sangue de outros animais, inclusive o homem, e carregam os ovos. Elas levam mais peso e por isso precisam de mais força nas asas. Em nível genético essa diferença se explica porque os músculos que impulsionam o voo das fêmeas dependem de uma proteína, chamada actina-4, que é codificada (produzida) por um gene bem mais ativo nelas que nos machos. Eles possuem o mesmo gene, mas que se expressa de forma mais branda. Os machos têm outro tipo de actina que atua nos músculos responsáveis pelo voo. Sabendo disso, os cientistas projetaram um gene que produz uma substância tóxica para a actina-4, impedindo que essa proteína, presente nas células dos músculos do voo, desempenhe sua função. O resultado são fêmeas que se desenvolvem normalmente até a fase de larva, mas que, ao se tornarem adultas, são incapazes de voar. Por causa disso, elas não conseguem sair da água e morrem, sem se reproduzir e se alimentar de sangue. Assim, não deixam descendentes nem transmitem a dengue. Os machos transgênicos conseguem voar, mas isso não causa problemas. Eles não se alimentam de sangue, e sim de néctar e sucos vegetais. Também continuam ativos sexualmente e cruzam com as fêmeas selvagens, passando à sua descendência o gene que impede os mosquitos do sexo feminino de voar.
Outras linhas de desenvolvimento de mosquitos transgênicos estão no foco dos estudos da própria professora Margareth. Uma para o transmissor da malária e outra para o da dengue. No primeiro caso, ela retira um gene de carrapato, que é responsável pela produção de um peptídeo, um fragmento de proteína, antimicrobiano, chamado microplusina. “Esse gene é alterado para que possa ser inserido num mosquito”, explica a pesquisadora. “Uma vez no genoma do inseto, ele passa a produzir a microplusina, que elimina o protozoário Plasmodium, microrganismo unicelular agente da malária, antes que ele seja transmitido ao ser humano.”
No caso do mosquito da dengue, em projeto financiado pela FAPESP, Margareth manipula o genoma do inseto de tal forma que, quando a fêmea transgênica é infectada pelo vírus da dengue ao se alimentar de sangue, são produzidas proteínas que aceleram o processo de morte celular (apoptose), causando também a do próprio inseto. “A presença do vírus da dengue desencadeia a ativação da proteína indutora de apoptose causando a morte celular em todos os tecidos dos mosquitos infectados, levando essa fêmea à morte, o que resulta em 100% de bloqueio da transmissão viral”, explica Margareth. Para inserir esses mosquitos transgênicos na natureza existem algumas técnicas de introdução gênica que estão sendo testadas. Uma delas recebe o nome de Medeia porque induz, por meio de sistemas biotecnológicos, a morte de filhotes não transgênicos do cruzamento de fêmeas normais com aqueles machos com genoma manipulado. “Somente a prole que carrega o transgene sobrevive. A introdução do transgene em uma população de mosquitos, via Medeia, leva apenas oito gerações.”
Se as pesquisas e o tempo mostrarem que essas estratégias, de usar engenharia genética para criar mosquitos transgênicos, são eficientes para controlar doenças como a dengue e a malária, haverá ainda outra vantagem. Essa forma de controle diminuirá a necessidade do uso de inseticidas e larvicidas. A curto prazo esses venenos podem ser mais baratos, mas com o tempo os insetos adquirem resistência a eles. Por isso, o uso de mosquitos transgênicos e estéreis parece ser uma boa opção para o futuro.
O projeto
Promovendo mortalidade em Aedes aegypti infectado pelo vírus da dengue (nº 08/10254-1); Modalidade Auxílio Regular a Projeto de Pesquisa; Coordenadora Margareth Capurro – USP; Investimento R$ 347.263,34 (FAPESP)