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Herança americana

Grupos indígenas de todo o continente compartilham alteração genética que favorece a obesidade e o diabetes

Mario Bollini

Maias da Guatemala: um dos povos portadoresMario Bollini

Os povos nativos das Américas e seus descendentes carregam em seus corpos uma característica particular que os distingue das populações dos outros continentes. Há quase 300 gerações suas células abrigam uma alteração genética que no passado permitiu a sobrevivência, mas nos últimos 40 anos vem contribuindo para que adoeçam. A mutação que uma equipe internacional de pesquisadores encontrou em 29 populações indígenas americanas, em especial do México e da América Central, aumenta a reserva de energia das células e, em tempos de calorias fartas, favorece o desenvolvimento dos problemas de saúde que mais crescem no mundo: a obesidade, o diabetes e os danos cardiovasculares, que matam 17 milhões de pessoas por ano.

A variação genética detectada até agora apenas em índios americanos contemporâneos e seus descendentes afeta um gene conhecido pela sigla ABCA1 e leva à troca de um dos 140 milhões de nucleotídeos (unidades formadoras do DNA) empacotados no cromossomo 9. Comum no organismo, esse tipo de alteração ocorre milhares de vezes enquanto as células duplicam seu material genético antes de se dividirem e quase sempre é corrigido pelos mecanismos de reparo celular. Quando escapa, não costuma interferir no funcionamento do corpo.

Esse, porém, não é o caso dessa falha no ABCA1. A substituição de um único nucleotídeo nesse gene modifica a estrutura de uma proteína da membrana celular que controla o nível de colesterol nas células. Como resultado, as células acumulam 30% mais colesterol, que entra na composição de hormônios e serve como estoque de energia.

“Essa não é a primeira alteração observada nesse gene, nem a única característica de nativos americanos”, conta Victor Acuña-Alonzo, pesquisador do Instituto Nacional de Antropologia e História (INAH), no México, primeiro autor do artigo que descreveu a frequência dessa mutação entre os ameríndios na Human Molecular Genetics de julho de 2010. “Mas, até onde sabemos, é a primeira mutação que, além de exclusiva desses povos, foi selecionada por condições ambientais, se disseminou pelo continente e afeta o funcionamento do organismo.”

Membro da equipe, na Universidade Nacional Autônoma do México (Unam), do bioquímico Samuel Canizales-Quinteros, que estuda os efeitos dessa alteração na população mexicana, Victor vem trabalhando com pesquisadores do Brasil e de outros países para mapear essa variação gênica no continente. Em sua primeira visita ao país em 2008 contava apenas com amostras de sangue de indígenas do México e da América Central. Na Universidade Federal do Rio Grande do Sul conheceu os geneticistas Francisco Salzano e Maria Cátira Bortolini, que dispunham do material genético de 5 mil índios sul-americanos e lhe propuseram uma colaboração. No mesmo ano Tábita Hünemeier, que fazia doutorado sob orientação de Maria Cátira, passou dois meses na Unam e depois seguiu para o laboratório de Andrés Ruiz-Linares, na University College London, onde caracterizou o gene ABCA1 de índios dos Andes e do Canadá.

Tábita, Victor e Teresa Flores Dorantes analisaram informações genéticas de 4.405 indivíduos de 38 povos indígenas americanos e compararam com as de 863 membros de populações da Ásia, da Europa e da África. Constataram que a alteração genética no ABCA1 que leva à substituição de um aminoácido arginina por uma cisteína inexiste nos outros continentes – ao menos, não nos grupos estudados – e afeta em média 15% dos nativos americanos. Mas sua frequên-cia varia muito. Nenhum indivíduo do povo Seri, do noroeste do México, apresentou a alteração, encontrada em 29% dos índios Cora, 21% dos Zapoteca e 20% dos Maia, na Mesoamérica. Na América do Sul, a mutação não foi detectada entre os Jamamandi e Karitiana, da Amazônia, ou os Mapuche, do Chile e da Argentina, mas é comum entre os Xavante (31%), do Mato Grosso.

AFP

A prêmio Nobel Rigoberta Menchú, descendente dos MaiaAFP

Apesar das diferenças, há um padrão nos dados: a distribuição dessa variante gênica é mais homogênea no México e na América Central, baixa nos Andes e oscila nas terras mais baixas da América do Sul, onde está o Brasil. No artigo da Human Molecular Genetics, os pesquisadores propõem duas explicações.

A primeira é que a mutação deve ter favorecido a sobrevivência dos indivíduos por ter um efeito protetor contra doenças infecciosas. Vírus como o da febre amarela e da dengue e o parasita causador da malária parecem necessitar de colesterol para invadir o organismo e se reproduzir. E seriam prejudicados por essa alteração no gene ABCA1. Experimentos da equipe de Canizales mostraram que as células com a forma alterada do gene liberam 30% menos colesterol para o sangue. Com menos colesterol à disposição dos agentes infecciosos, mais pessoas sobreviveriam e transmitiriam às gerações seguintes o gene alterado. Um dado apoia essa ideia: os povos em que a mutação no ABCA1 é mais comum vivem nas regiões onde é maior a incidência dessas infecções.

Tábita e Maria Cátira, que assinam com Victor e Canizales outro artigo ainda não publicado, acreditam mais em uma segunda explicação, a chamada hipótese do gene frugal. Segundo essa teoria, proposta em 1962 pelo geneticista norte-americano James Neel, características genéticas que de algum modo se mostrem vantajosas seriam mantidas numa população. Na linguagem dos biólogos, passariam por um processo de seleção positiva. Nesse caso, a redução no fluxo de colesterol para fora das células implicaria maior acúmulo de energia, fundamental em períodos de escassez de alimento como os que os primeiros habitantes da América – e de outras partes do globo – devem ter enfrentado com frequência antes que a agricultura se tornasse estável e animais fossem domesticados.

As pesquisadoras gaúchas veem na domesticação do milho o provável fator que catalisou a dispersão dessa forma alterada do ABCA1 na população ameríndia, em especial na Mesoamérica. Dados arqueológicos recentes indicam que o ancestral selvagem do milho – uma gramínea chamada teosinte, que produz vagens como as do amendoim – começou a ser cultivado há 8.700 anos no vale do rio Balsas, sul do México. Ali foram encontrados artefatos de pedra e microfósseis de milho, que, estima-se, tenha sido a fonte de 70% das calorias consumidas pelos povos da Mesoamérica e ainda é base da dieta na região.

Analisando alterações ao redor do ABCA1, Tábita e Maria Cátira estimam que a variante que favorece o acúmulo de colesterol nas células surgiu há 8.300 anos, quase 10 mil anos depois de os primeiros seres humanos chegarem à América (ver texto na página 20).

matt lavin / montana state university (teosinte) e usda

Teosinte, acima: ancestral selvagem do milhomatt lavin / montana state university (teosinte) e usda

Essa data coincide com a da domesticação do milho e fortalece a ideia de que o cereal pode ter contribuído para a seleção positiva dessa mutação. Na opinião de John Doe-bley, da Universidade de Wisconsin, Estados Unidos, estudioso da domesticação do milho, é razoável pensar que o início da agricultura na América tenha influenciado a seleção da forma mutada do ABCA1, assim como o consumo de leite e domesticação de boi levaram ao aumento da frequência na Europa e na África da variante genética que permite aos adultos digerir a lactose.

Mas o que havia sido uma vantagem evolutiva no passado se manteria após o início da agricultura? É provável que sim. Os pesquisadores imaginam que, depois de identificar o milho como alimento e aprender a plantá-lo, os indígenas tenham se tornado sedentários e a população, multiplicado. Christopher Gignoux, da Universidade Stanford, usou dados genéticos de povos que praticavam agricultura e grupos de caçadores-coletores para estimar o ritmo de crescimento populacional. Em estudo a ser publicado na revista PNAS, ele conclui que o surgimento da agricultura elevou em cinco vezes a taxa de crescimento das populações na Europa, na Ásia e na África.

Grupos antes formados por dezenas de pessoas passaram a abrigar milhares. Cresceu o número de braços para produzir, e o de bocas para saciar. “Imagina-se que, no início, a agricultura tenha proporcionado um sucesso apenas parcial”, diz Maria Cátira. Informações arqueológicas – calcula-se o grau de desnutrição analisando dentes e ossos – sugerem que períodos de escassez de alimento (e alta mortalidade) foram frequentes nos primeiros milhares de anos, antes de a produção estabilizar.

Só quem conseguisse armazenar energia e suportar a fome por mais tempo seria capaz de atravessar esses períodos. “Nessas épocas até 80% das pessoas que sobreviveram deveriam ser portadoras de ao menos uma cópia da forma alterada do ABCA1”, calcula Tábita. Se comprovada a hipótese de que a domesticação do milho contribuiu para espalhar a mutação na América, esse será o primeiro caso registrado de seleção natural influenciada pela agricultura entre povos nativos americanos. Mas, por ora, é só hipótese. A única convicção dos pesquisadores é que, no México e na América Central, a dispersão do gene alterado não se deu ao acaso. Já na América do Sul, em especial no Brasil, pode ter sido diferente, já que o milho não teve a mesma importância nem há evidências consistentes de terem existido grupos populacionais grandes.

Seja qual for a explicação, o certo é que o fator que permitiu atravessar tempos de fome hoje agrava a saúde dos ameríndios. Canizales e sua equipe mostraram anos atrás que essa alteração no ABCA1, presente em 20% da população mexicana, é mais comum entre pessoas obesas, com diabetes e taxas anormais de colesterol (dislipidemia). Notaram ainda que ela contribui para a obesidade, o diabetes e dislipidemias, fatores de risco para problemas cardiovasculares. Agora, ao cruzar dados genéticos com informações sobre altura, peso e nível de lipídeos e açúcares de 1.729 pessoas, o grupo viu que, entre as alterações conhecidas do ABCA1, a mutação que leva à troca da arginina pela cisteína é a que mais contribui para reduzir os níveis de HDL, a forma de dislipidemia mais comum no México.

“Embora aparentemente ausentes em outras populações, essas mutações típicas de grupos específicos podem ter um efeito funcional importante, nesse caso, sobre o metabolismo”, explica a geneticista Carla D’Angelo, da Universidade de São Paulo. “Como a alteração é compartilhada por outros povos da América, acredito que possa influenciar a saúde de pessoas no Equador, no Peru e na Bolívia, onde é grande a componente indígena da população”, afirma Victor. “A partir de agora”, diz Maria Cátira, “não é mais possível compreender os problemas metabólicos dos povos nativos das Américas sem considerar o papel dessa alteração genética.”

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