Um grupo de pesquisadores brasileiros trabalhou em conjunto em 2010 na Universidade de Maryland, Estados Unidos, para concluir um trabalho que detalhou os artifícios que o protozoário Trypanosoma cruzi adota para invadir e ocupar as células humanas, primeiro passo para começar a infecção que caracteriza a doença de Chagas, ainda relativamente comum em alguns países das Américas. As conclusões a que chegaram indicam que o Trypanosoma cruzi coloca os mecanismos de reparo celular para funcionar a seu favor e ajudam a explicar a afinidade do parasita pelas células musculares, causando a expansão do coração, uma das características da fase crônica da doença. A mortalidade causada por essa enfermidade tem se reduzido nos últimos anos, mas estima-se que de 3 a 5 milhões de pessoas ainda tenham a forma crônica do também chamado mal de Chagas.
O médico Carlos Chagas já tinha visto em 1909, por meio de um microscópio de seu laboratório no Instituto Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, o T. cruzi em células e no sangue de pessoas infectadas. Na década de 1940, Herta Meyer, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), fez um filme que mostra o parasita ocupando as células e se reproduzindo ali dentro (o filme encontra-se na página da Sociedade Brasileira de Protozoologia – depois, clique em interage e multimídia). Essa foi uma parte do trabalho desses pioneiros sobre a identificação do agente causador, do inseto transmissor e dos sintomas característicos da doença, mas as limitações de seus equipamentos não lhes permitiram ir muito além (ver Pesquisa Fapesp nº 163, setembro de 2009). Em Maryland havia não só equipamentos, mas também especialistas com interesses convergentes.
A bióloga Maria Cecília Fernandes, que fez o doutorado na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), já estava lá há quase dois anos estudando os mecanismos pelos quais o T. cruzi invade as células humanas. Ela trabalhava no laboratório de biologia celular, coordenado por Norma Andrews. Norma investiga a interação entre o T. cruzi e as células hospedeiras desde os anos 1980, quando fez o doutorado na Universidade de São Paulo (USP) com o médico e bioquímico Walter Colli, um dos maiores especialistas em doença de Chagas no Brasil. Uma de suas linhas de trabalho é justamente os mecanismos de reparo de membrana celular. Em abril de 2010, Renato Mortara, professor da Unifesp que estuda o comportamento do T. cruzi desde os anos 1980, se uniu ao grupo em Maryland.
Passo a passo
Como eles precisavam de outros equipamentos, pediram ajuda a dois brasileiros que estavam em Bethesda, a menos de uma hora de College Park: Bechara Kachar, pesquisador formado em medicina pela USP que está desde 1986 nos Institutos Nacionais de Saúde (NIH), e Leonardo Rodrigues de Andrade, pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) atualmente no laboratório de Kachar.
Com a ajuda de colegas norte-americanos, eles estudaram, filmaram e deduziram, por meio de provas e contraprovas, o passo a passo da invasão e ocupação celular pelo T. cruzi. O parasita, provavelmente por causa de sua intensa movimentação, lesiona a membrana externa da célula, causando um pequeno buraco. Por aí entram íons de cálcio, abundantes no espaço extracelular, como o grupo de Norma havia mostrado. Outros grupos também estudaram intensamente o comportamento do T. cruzi. Anos antes, por exemplo, Sergio Schenkman e sua equipe da Unifesp haviam indicado como o parasita escapava das defesas dos organismos que invade (ver Pesquisa Fapesp nº 118, dezembro de 2005).
Esse novo trabalho mostra que, no interior da célula, o cálcio iônico aciona a fusão de compartimentos conhecidos como lisossomos com a membrana externa ao redor do minúsculo buraco que o parasita está abrindo. Ao se fundirem com a membrana, os lisossomos liberam uma enzima chamada esfingomielinase, que por sua vez induz à formação de outra molécula da membrana, a ceramida. Por sua vez, a ceramida forma uma curvatura na membrana, remove a região lesionada e conserta a membrana, desse modo facilitando a entrada do parasita.
“O parasita aproveita em seu benefício a enzima e a ceramida, enfim, o mecanismo de reparo celular da lesão na membrana”, diz Mortara. “O T. cruzi tem uma afinidade pelas células musculares, que estão mais sujeitas a lesões e, por essa razão, acionam com frequência os mecanismos de reparo da membrana externa.”
Dentro da célula, em compartimentos semelhantes a lisossomos, o protozoário se movimenta intensamente. “A intensa movimentação provavelmente atrai outros parasitas para a mesma célula”, diz ele. O T. cruzi libera toxinas que lhe permitem escapar. Começa a se multiplicar e, dias depois, pode gerar uma centena de cópias. De tão abarrotada, a célula deixa de funcionar e se rompe, liberando parasitas que colonizam outras células.
Como o piloto de um avião se aproximando de uma cidade, o microrganismo precisa escolher bem onde tocar uma célula. Não há, claro, uma intenção de onde pousar, mas uma afinidade eletrostática com alguns pontos – se errar, poderá disparar os mecanismos de defesa que tendem a eliminar os visitantes indesejados. Bactérias, vírus e protozoários adotam estratégias diferentes que lhes permitem atravessar a membrana e entrar onde talvez encontrem alguma proteção e possam se reproduzir. “Os protozoários causadores da leishmaniose parecem explorar um mecanismo de reparo celular similar ao do T. cruzi para invadir os macrófagos”, observa Mortara.
Táticas diferentes
Cada microrganismo sobrevive por meio de formas próprias de fazer as células trabalharem a seu favor. Em agosto na Cellular Microbiology, Rey Carabeo, do Imperial College London, de Londres, apresentou várias estratégias de invasão adotadas por bactérias que causam problemas para os seres humanos como a Salmonella, a Escherichia coli e a Chlamydia. Em geral, essas bactérias acionam os mecanismos que produzem uma remodelação de proteínas abundantes logo abaixo da membrana celular, as actinas. Cada uma delas, ao encostar na célula hospedeira, aciona diferentes proteínas que se ligam às actinas, induzindo a construção de moléculas alongadas como pilares que esticam a célula. Formam-se assim os prolongamentos da superfície celular que engolfam o microrganismo e lhe permitem ingressar sem causar lesão à membrana. Na edição de julho da Molecular Microbiology, James Bamburg, da Universidade do Estado do Colorado, Estados Unidos, detalhou o encadeamento de moléculas que facilitam a entrada apenas da Listeria monocytogenes, uma bactéria que pode causar infecções severas, principalmente em gestantes.
A doença de Chagas já não preocupa tanto. O combate aos insetos transmissores fez o número de pessoas contaminadas cair bastante: os serviços públicos de saúde registraram menos de 200 casos e apenas três mortes atribuídas a essa doença em 2008. Não há mais tantas casas de pau a pique com buracos em que os insetos se escondem, mas ainda há razões para preocupação. Por causa da falta de higiene e de atenção, o contágio continua, por meio do consumo de caldo de cana ou de suco de açaí contaminados ou, mais raramente, da transfusão de sangue e do transplante de órgãos.
Em uma conferência em 2010, Norma comentou que essa é uma doença associada à pobreza, com cerca de 18 milhões de pessoas contaminadas nas Américas Central e do Sul. É também difícil de ser detectada: 41% das pessoas portadoras de T. cruzi são assintomáticas. Em 45% dos infectados o coração se expande e em outros 11% o esôfago ou o estômago é que se dilatam. Segundo ela, a doença de Chagas dificilmente pode ser eliminada, já que o parasita pode ser transmitido ao ser humano por cerca de 100 espécies de mamíferos, incluindo alguns mais próximos como cães, gatos e roedores. Por viverem perto das casas, esses animais se transformam em reservatórios do parasita, depois de sugados pelos insetos transmissores.
O projeto
Estudos moleculares do Trypanosoma cruzi e de sua interação com células e fatores do hospedeiro in vitro e in vivo (nº 2006/61450-0); Modalidade Projeto Temático; Coordenador José Franco da Silveira Filho – Unifesp; Investimento R$ 1.523.719,55 (FAPESP)
FERNANDES, M.C. et al. Trypanosoma cruzi subverts the sphingomyelinase-mediated plasma membrane repair pathway for cell invasion. The Journal of Experimental Medicine. v. 208, n. 5, p. 909-21. 9 mai. 2011.