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Ramificações ancestrais

Divergência de macacos-prego, tão antiga quanto a de seres humanos e chimpanzés, se reflete em ecologia e comportamento

eduardo cesarDesaparecidos por séculos, os macacos-prego-galegos foram redescobertos há poucos anoseduardo cesar

Os macacos-prego e caiararas existem na América Central, na Amazônia inteira, no cerrado, na caatinga e em toda a mata atlântica, chegando até a Argentina. Nessa extensão variam muito em forma, cor, tamanho, preferências alimentares e comportamento. São primatas marcantes, com um sistema social complexo e capazes de usar ferramentas, uma habilidade rara. Mesmo diante da grande variação entre espécies, até recentemente os especialistas classificavam macacos-prego e caiararas no mesmo gênero, Cebus, e boa parte deles respondia nos registros científicos pelo nome Cebus apella. Nos últimos 10 anos, a classificação desses primatas vem passando por uma revolução, com base no trabalho de pesquisadores brasileiros e de fora. “A taxonomia deles ainda seguia o trabalho dos naturalistas”, diz o primatólogo brasileiro Jean-Philippe Boubli. “A era da tecnologia molecular está permitindo toda uma reorganização.” Junto com a colega norte-americana Jessica Lynch Alfaro, da Universidade da Califórnia em Los Angeles, ele – à época pesquisador na Wildlife Conservation Society – organizou um simpósio sobre esses macacos num congresso em 2010 no Japão. Reunindo os pesquisadores que mais estavam trazendo novidades ao conhecimento sobre esses primatas, o encontro deu origem a um volume especial da revista American Journal of Primatology, publicado em abril deste ano.

Quando estudava o comportamento desses macacos em Caratinga, Minas Gerais, Jessica via diferenças entre eles e os de outros lugares, mas não tinha contexto evolutivo para avaliar de onde elas vinham. “Não sabíamos há quanto tempo os grupos estavam separados ou qual o parentesco entre eles”, conta. Agora o animal que ela estudava se chama Sapajus nigritus, diferente de como era conhecido tanto em gênero como espécie. O pontapé inicial da mudança foi sugerido por José de Sousa e Silva Júnior em seu doutorado, concluído em 2001 pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Ele propôs dois subgêneros: Cebus para os caiararas, mais esguios, distribuídos da Amazônia para o norte, e Sapajus para os macacos-prego, mais robustos e muitas vezes caracterizados por um topete na cabeça, espalhados da Amazônia para o sul. “Ele foi corajoso em propor a divisão”, avalia Boubli, “mas agora podemos ir além”.

Só agora, uma década depois, a subdivisão se ampliou em trabalho de Jessica, Boubli e colaboradores publicado em fevereiro na revista Journal of Biogeography. Por meio de amplas análises genéticas, feitas sobretudo no laboratório de Jessica mas também no de Izeni Farias, da Universidade Federal do Amazonas (Ufam), ficou demonstrado que Cebus e Sapajus são diferentes a ponto de serem considerados gêneros distintos embora de tamanho parecido, ambos com pouco mais de 2 quilogramas. Mais especificamente, o estudo mostra que as duas linhagens se separaram há mais de 6 milhões de anos – mesmo tempo que separa o surgimento de chimpanzés e de seres humanos a partir de um ancestral comum. A mudança foi aceita pela maior parte dos primatólogos e está na Lista anotada dos mamíferos do Brasil publicada em abril pela Conservation International. Mas não é unanimidade, como é costume no meio científico. Em comentário recém-publicado no site da American Journal of Primatology, Alfred Rosenberger, do Brooklyn College, em Nova York, defende que a divisão dos macacos-prego e caiararas foi apressada e até certo ponto desnecessária. Embora não critique os fundamentos genéticos, ele argumenta que uma repartição exagerada pode criar espécies raras que angariam mais recursos para conservação, mesmo que não se justifique do ponto de vista científico. A discussão envereda mais para o campo filosófico, com base na fluidez do conceito de espécie, que não tem fronteiras definidas.

Jessica está convicta de suas conclusões. Por meio de sequenciamento genético e de técnicas que permitem estimar quando aconteceram as ramificações na árvore genealógica desses primatas, tudo isso relacionado à geografia de sua distribuição atual, o grupo liderado por ela chegou a uma proposta sobre a trajetória desses animais ao longo da evolução. A formação do rio Amazonas foi responsável por criar uma separação norte-sul que isolou os primatas que ali viviam, gerando a ramificação na genealogia que deu origem a Cebus e a Sapajus. Depois disso, por cerca de 4 milhões de anos não se sabe bem o que aconteceu. Só por volta de 2 milhões de anos atrás o grupo que deu origem aos macacos mais robustos se espalhou pela mata atlântica sem deixar descendentes na Amazônia. A ocupação de toda a costa brasileira foi rápida e se deu em conjunto com uma grande diversificação de espécies. Há cerca de 700 mil anos a expansão ao sul chegou até a Argentina, próximo às cataratas do Iguaçu, e rumou para o norte ocupando o cerrado, na região central do Brasil. Em seguida, por volta de 400 mil anos atrás, eles chegaram de volta à Amazônia, onde tornaram a se encontrar com seus parentes mais delicados, que se tinham espalhado pela região norte, em torno dos Andes, e chegado até a Costa Rica, na América Central.

Essa reinvasão relativamente recente da Amazônia pelos macacos-prego explica sua baixa diversidade por ali em número de espécies, e também a competição que se estabelece entre os dois gêneros que ficaram separados por milhões de anos. “Os Sapajus conseguem usar uma variedade maior de recursos, como quebrar frutos mais duros”, explica Jessica. Isso faz com que, quando eles coexistem com seus primos do norte – como é comum no oeste da Amazônia entre C. albifrons e S. macrocephalus –, a densidade dos mais esguios fique reduzida. Boubli analisou mais a fundo a diversidade genética dos Cebus, em artigo publicado na edição especial da American Journal of Primatology, e mostrou que esses animais pouco estudados abrigam uma enorme diversidade. Para Izeni Farias, responsável pelas análises genéticas, não foi surpresa. “A distribuição é muito ampla, era de se esperar uma grande variação”, afirmou a geneticista, coordenadora de um projeto do Sistema Nacional de Pesquisa em Biodiversidade (Sisbiota) que busca amostrar a diversidade genética dos vertebrados amazônicos.

Experiente em andanças pela selva amazônica, Boubli vê o estudo genético como um ponto de partida que indica a necessidade de novos estudos. “Os interflúvios de rios como o Jaú, o Purus e outros separam populações que podem ficar isoladas tempo suficiente para se tornarem espécies”, explica o primatólogo. Um exemplo observado por ele são macacos das duas margens do rio Negro que estão separados há 1 milhão de anos, segundo dados genéticos. “Olhando, eles parecem iguais. Será que são espécies diferentes?”

Tiago falótico / ip-uspSapajus libidinosus escala paredão na serra da CapivaraTiago falótico / ip-usp

A olho nu
Na amplitude tridimensional da Amazônia, coletar material para estudos genéticos já é bastante difícil. Estudos de ecologia e comportamento são muito mais complicados, daí a quase total ignorância sobre os animais que vivem por lá. A maior parte dos estudos que envolvem observação acontece em áreas de fácil acesso, onde os macacos já estão habituados à presença humana. No Brasil, isso torna os Sapajus muito mais estudados do que os Cebus. E há bastante variação de uma espécie a outra.

Essa variação depende em parte do ambiente, como mostra um grupo liderado por Patrícia Izar, do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP-USP), em artigo na American Journal of Primatology. A equipe comparou S. nigritus do Parque Estadual Carlos Botelho, no interior de São Paulo, e S. libidinosus da Fazenda Boa Vista, no município de Gilbués, Piauí. As diferenças ecológicas são marcantes: uma espécie de mata atlântica, que passa a maior parte do tempo no alto das árvores, e outra de caatinga, usando mais o chão em meio à vegetação menos generosa.

Talvez por causa do ambiente mais aberto, os macacos nordestinos demonstravam mais incômodo com a presença dos pesquisadores, que por vezes acusavam em gritos de alarme como se fossem predadores. Essa maior percepção do risco do entorno pode estar por trás dos grupos sociais mais coesos ali do que na floresta paulista. A disponibilidade de alimento, surpreendentemente menor na mata mais exuberante, também afeta a estrutura do grupo, que em Carlos Botelho muitas vezes se dispersa em busca de uma boa refeição. As palmeiras da caatinga produzem cocos de vários tipos, ricos em nutrientes e que exigem perícia de quem deseja consumi-los: o uso de ferramentas, comportamento comum em Sapajus mas nunca observado em Cebus.

“São raríssimos os registros de uso de ferramentas em macacos arbóreos”, conta Tiago Falótico, do IP-USP. Ele mostrou, em seu trabalho de doutorado terminado em 2011 sob orientação de Eduardo Ottoni, que além do aspecto ecológico esse comportamento também é influenciado pela cultura dos grupos. “Os macacos do Parque Nacional da Serra da Capivara têm um instrumental muito mais variado que os de Gilbués”, conta, sobre dois locais no Piauí. Em Gilbués, os cocos da piaçava, do catulé e do catuli chegam a ser bastante grandes e difíceis de quebrar. Nada que desanime os Sapajus libidinosus, o macaco-prego-amarelo: eles usam pedras de até 3 quilogramas (praticamente o próprio peso), que erguem e abatem sobre o coco apoiado numa pedra plana. “As fêmeas às vezes precisam saltar com a pedra e usar a força da queda para conseguir quebrar os cocos”, diz o pesquisador.

infográfico: laura daviña; ilustração macacos: amisha gadaniMas a criatividade para por aí em Gilbués, enquanto os grupos da serra da Capivara, que não têm cocos para quebrar (mas abrem castanhas de caju a pedradas), usam o mesmo tipo de ferramenta para cavar o solo arenoso em busca de raízes e de aranhas que vivem em ninhos subterrâneos. Além disso, são também exímios na confecção e no uso de varetas para tirar mel de colmeias e desentocar mamangavas e outros insetos de ocos em troncos de árvores. Eles também usam varas compridas para expulsar lagartos de frestas nos paredões de pedra avermelhados que se erguem até 50 metros acima do solo. “A diferença de comportamento entre grupos da mesma espécie em ambiente similar indica que eles podem ter tradições transmitidas por aprendizagem social”, explica Falótico. Outro uso curioso de ferramentas está no repertório das fêmeas de apenas um grupo da serra da Capivara: elas atiram pedras nos machos para chamar atenção durante os poucos dias de duração do cio.

Outro adepto do uso de ferramentas é o macaco-prego-galego (S. flavius), estudado no Rio Grande do Norte por Ricardo Emidio e Renata Ferreira, da Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Poucos estudos foram feitos sobre essa espécie, até recentemente conhecida apenas por uma pintura do século XVIII que ninguém sabia se representava um animal existente.

Habilidades alternativas
Mesmo não usando ferramentas no dia a dia, os macacos-prego de florestas também têm habilidades manuais. É o que mostrou a equipe do primatólogo Júlio César Bicca-Marques, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), por meio de experimentos com Sapajus nigritus em que posicionou bananas dentro de caixas de acrílico em plataformas numa propriedade privada em Porto Alegre (veja o vídeo). Criado pelo antropólogo Paul Garber, da Universidade de Illinois e coautor do artigo, o experimento teve resultados semelhantes aos obtidos pelo norte-americano com Cebus capucinus na Costa Rica. Numa primeira versão do desafio, os macacos precisavam puxar uma vareta para derrubar a banana e deixá-la ao alcance das mãos. Os dois machos do grupo aprenderam o truque com facilidade. Mas quando o experimento mudou, e a vareta passou a precisar ser empurrada, o sucesso não se repetiu. Não por falta de capacidade na solução de problemas, na opinião do pesquisador gaúcho. “A associação foi muito fácil, mas eles parecem precisar de mais tempo para extinguir o aprendizado”, explica. Numa próxima oportunidade, ele pretende começar o teste pela segunda versão, para comprovar sua hipótese.

Outro tipo de ferramenta, muito diferente, é o hábito de esfregar produtos diversos, como frutos ou insetos, na pelagem. Até recentemente esse costume tinha sido observado muito mais em Cebus do que em Sapajus. “Como é um comportamento observado esporadicamente em Sapajus, quase ninguém tinha dados suficientes para publicar”, conta Jessica Lynch Alfaro, que reuniu as informações recolhidas por diversos pesquisadores em uma revisão.

Tiago falótico / ip-uspFilhotes aprendem com observação de pertoTiago falótico / ip-usp

De maneira geral, o trabalho mostrou que os Cebus têm uma tendência maior do que seus primos a esfregar no pelo quase tudo que encontram, com uma preferência por material vegetal, como frutos cítricos e folhas. O comportamento é mais raro em Sapajus, que, sobretudo na mata atlântica, restringem o uso a insetos. A escolha de material para besuntar-se não deixa de ter uma influência ecológica – o que estiver disponível –, mas uma diferença intrínseca entre os dois gêneros é decisiva. “No Parque Nacional Manu, no Peru, os Sapajus não se esfregam e os Cebus sim”, exemplifica Jessica.

Os macacos-prego da mata atlântica têm uma preferência marcada por formigas, como mostraram Tiago Falótico e sua colega Michele Verderane em estudo feito no Parque Ecológico do Tietê, em São Paulo, e publicado em 2007. Principalmente na estação seca, quando há mais carrapatos, os primatas pegam punhados de formigas e esfregam meticulosamente pelo corpo. “Elas liberam ácido fórmico, que tem ação repelente para carrapatos”, conta o pesquisador da USP. Ele e Michele comprovaram o efeito passando a substância no dedo e inserindo num frasco de carrapatos, num experimento em que contavam quanto tempo os parasitas caminhavam sobre o dedo e que distância percorriam. Falótico viu o mesmo comportamento no Piauí, onde os macacos também esfregam piolhos-de-cobra, fonte de benzoquinona, um repelente contra pernilongos.

Outras observações recolhidas por Jessica permitiram mapear a esfregação por macacos-prego e mostrar que o procedimento não se limita a uma preferência cosmética e tem uso prático e até medicinal. Um caso curioso é o dos Cebus albifrons que vivem no meio de um vilarejo da Amazônia equatoriana e costumam roubar o sabão de lavar roupa, que usam para tomar banho.

Há muito de novo no reino dos macacos-prego, mas os especialistas estão longe de satisfeitos. Para Jessica e Boubli, eles apenas revelaram a ponta do iceberg, uma indicação do quanto ainda há por descobrir. Na Amazônia, onde o comportamento e a ecologia são praticamente desconhecidos, as informações genéticas são uma pista de que talvez haja espécies às quais ninguém dá importância. “Espero que as novas populações e espécies descobertas ajudem a tomar decisões de conservação”, diz Jessica.

Artigos científicos
LYNCH ALFARO, J.W. et al. Explosive Pleistocene range expansion leads to widespread Amazonian sympatry between robust and gracile capuchin monkeys. Journal of Biogeography. v. 39, n. 2, p. 272-88. fev. 2012.
BOUBLI, J.P. et al. Cebus phylogenetic relationships: 
a preliminary reassessment of the diversity of the untufted capuchin monkeys. American Journal of Primatology. 
v. 74, n. 4, p. 381-93. abr. 2012.
IZAR, P. et al. Flexible and conservative features of social systems in tufted capuchin monkeys: comparing the socioecology of Sapajus libidinosus and Sapajus nigritus. American Journal of Primatology. v. 74, n. 4, p. 315-31. abr. 2012.
GARBER, P.A. et al. Experimental field study of problem-solving using tools in free-ranging capuchins (Sapajus nigritus, formerly Cebus nigritus). American Journal of Primatology. v. 74, n. 4, p. 344-58. abr. 2012.
LYNCH ALFARO, J.W. et al. Anointing variation across wild capuchin populations: a review of material preferences, bout frequency and anointing sociality 
in Cebus and Sapajus. American Journal of Primatology. 
v. 74, n. 4, p. 299-314. abr. 2012.

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