de Londres
O que há por trás do sorriso de Mona Lisa? A resposta talvez desaponte os fãs de códigos secretos: a tentativa de Leonardo da Vinci (1452-1519) de romper limites e aproximar arte e ciência na Renascença. Mais do que um pintor que se “aventurava” em questões científicas, Leonardo desejava a criação de uma “ciência visual”. A anatomia foi o campo escolhido por Da Vinci para sua síntese de arte e ciência, como revelam a exposição Leonardo da Vinci: anatomist, que reúne os mais de 200 desenhos feitos pelo pintor do corpo humano, em cartaz em Londres até 7 de outubro, e o estudo A natureza, a razão e a ciência do homem: edição dos estudos de anatomia de Leonardo da Vinci, do historiador Eduardo Kickhöfel, professor da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). O projeto prevê a edição comentada da série “anatômica” de Leonardo, analisando a posição do artista como anatomista na história da filosofia natural, ajudando a descrever como se deu o desenvolvimento dos termos “arte” e “ciência”.
Entre 1490 e 1513, o pintor dissecou mais de 30 corpos e retratou o que viu com precisão, um verdadeiro tratado que, se publicado, teria transformado o estudo da anatomia na Europa muito antes e melhor do que em De humanis corporis fabrica (1543), de Vesalius. “Não havia desenhos de anatomia na época de Leonardo. O conhecimento anatômico era o texto, em especial o livro de Mondino de Liuzzi, um anatomista do século XIV, que era lido nas demonstrações realizadas nas universidades. Como faria Vesalius, mais tarde, Da Vinci preconizava a experiência direta e criou uma pintura tão informada pelas ciências naturais que ela própria passava a ser uma ciência. Não há nada na Renascença italiana que se assemelhe ao legado dele”, explica Eduardo. “A maioria das estruturas que ele descreveu só seria retratada séculos mais tarde. Se ele tivesse publicado o seu tratado de anatomia, hoje seria conhecido como um dos maiores cientistas da história”, avalia o historiador Martin Clayton, curador da exposição londrina, em exibição na Queen’s Gallery.
É difícil não se impressionar com sua técnica, como se pode ver pelos desenhos reproduzidos nestas páginas, todos da exposição inglesa. Em especial, Clayton se emociona com a criança dentro do útero, exceção dentre a série anatômica de Da Vinci pelo uso da cor. “O tom vermelho funciona como sugestão do potencial de vida do bebê, embora seja baseado na dissecação de uma vaca prenhe”, conta o curador. “Ele chegou perto de descobrir a circulação do sangue um século antes de Harvey, mas embora tivesse estudado latim por conta própria, Leonardo nunca se sentiu confortável com a linguagem dos escritos científicos contemporâneos e se ressentia do seu status ‘inferior’ em face dos professores das universidades, ainda que se gabasse de ser um ‘discípulo da experiência’”, nota Clayton.
Essa “timidez”, ao lado do seu perfeccionismo, da dificuldade de conciliar suas observações com as crenças estabelecidas, bem como certa dose de azar impediram que terminasse o tratado. Após sua morte, por um caminho tortuoso de vendas e compras, os manuscritos acabaram nas mãos do rei Charles II, em 1690, e foram guardados na Royal Collection. Apenas em 1900 foram publicados. Então o seu poder de afetar o progresso do conhecimento da anatomia já desaparecera. “Ainda assim, no seu tempo, ele reforçou a passagem de uma cultura de memória e instrução para uma cultura de descoberta e invenção, que gerava a tensão entre autoridade e experiência, algo que apareceu em Vesalius e culminou com a condenação de Galileu”, observa Eduardo Kickhöfel. “As razões por que ele não terminou o seu projeto são muitas, mas, essencialmente, a cultura do período não permitia a síntese proposta por Da Vinci entre a arte, que produzia usando matéria imperfeita e corruptível, e a ciência, que demonstrava, por textos, os princípios e causas eternos e imateriais. A ‘arte-ciência’ de Leonardo, com seus desenhos e textos, foi um esforço de ‘produzir-demonstrar’, algo impensável pelos seus contemporâneos”, nota o pesquisador.
E que esforço: “Você pode ser detido pela ânsia de vomitar. O medo de viver à noite na companhia desses homens mortos, desmembrados e dissecados, é algo terrível de suportar”, anotou num desenho, com o hábito de se descrever na terceira pessoa, mostrando a árdua tarefa de dissecar corpos num tempo sem refrigeração ou formas de preservação. Ao menos não faltavam corpos. Aos artistas eram entregues à vontade cadáveres, enquanto os médicos só recebiam dois corpos por ano. “O ensino da medicina, então, era a leitura de textos em latim por um professor, distante do corpo numa cátedra, durante as dissecações, feitas por cirurgiões-barbeiros. O objetivo não era corrigir a tradição, muito menos servir para investigações independentes, mas confirmar doutrinas e as teorias”, diz o pesquisador. Já os artistas se interessavam apenas pela descrição superficial do corpo para realizar desenhos ou esculturas. “É difícil imaginar que um médico universitário nunca tenha pensado em usar o trabalho de um artista para ilustrar um livro de anatomia.” Mas, pela tradição aristotélica, os saberes mais elevados eram os mais afastados dos sentidos: a vita contemplativa.
Apenas em meados do século XIV entraram em cena os valores da vita activa e, aos poucos, o conhecimento dirigia-se para a vida do homem numa sociedade em movimento. “Ainda assim o preconceito com atividades manuais continuou e a ciência ainda era basicamente expressa por textos, embora alguns médicos começassem a dissecar e partir para uma cultura de descoberta e invenção, como mostram alguns livros de fins do século XV, com poucas e cruas ilustrações anatômicas”, nota Eduardo. Surgiram aplicações tímidas entre ciências e artes, como pintura e escultura, cujo objetivo era, porém, apenas dizer quanta ciência havia em suas obras e elevar, assim, o estatuto social do artesão. Em 1435, o arquiteto Leon Alberti idealizou, no tratado De pictura, um pintor que era uma espécie de homem letrado que criava a partir do conhecimento de princípios e causas: “Primeiro, o pintor colocará cada osso do animal em sua posição, e após seus músculos e então suas carnes”, escreveu. “Ele queria a verossimilhança, mas não a descrição das partes do corpo, pois ciência e arte não se uniam”, nota Eduardo.
Artesão e pouco letrado, como Leonardo, o escultor Lorenzo Ghiberti escreveu, entre 1447 e 1455, o tratado I comentarii, em que avisa que seus colegas deveriam conhecer anatomia, mas apenas os ossos e músculos, pois “das outras coisas da medicina nós não precisamos tanto”. “Ghiberti sabia dos limites da tradição em que estava”, observa o pesquisador. Leonardo também, mas resolveu ir bem mais adiante. Em 1489 iniciou suas buscas a partir de um crânio. Apesar do traçado impecável da cabeça, Leonardo tentava encontrar por meio dos seus desenhos o que Aristóteles chamou de “senso comum”: essa busca da posição exata da “alma” ao lado de uma observação “científica” marcará o paradoxo de sua relação com a anatomia, como um mosaico de concepções velhas e novas. “Seu projeto de um catálogo, datado de 1489, já revelava as tensões que o perseguiram: entre a tradição textual e a dissecação anatômica, base de conhecimento real; entre as repetições da tradição e as fantasias de sua época e as descobertas, como a concepção mecânica do corpo humano, só pensado em tempos mais recentes”, analisa Eduardo. Daí, entre outros “pecados”, ter deixado “escapar” o entendimento da circulação sanguínea.
Afinal, a existência de válvulas de sentido único era incompatível com as crenças antigas de que o coração só bombeava sangue para dentro e fora dos ventrículos, gerando calor e “espírito vital”. “Ele não foi capaz de conciliar o que observou com aquilo que acreditava ser a verdade, ficando num impasse”, diz o pesquisador. Ao mesmo tempo, após dissecar um homem centenário ele fez as primeiras observações da história da medicina sobre a oclusão coronária e a arteriosclerose. Sua descrição detalhada da cirrose do fígado só seria refeita no século XIX. Mas importam menos as descobertas do que sua concepção da anatomia, a meio caminho entre a universidade e o ateliê, inovando ao mostrar as matérias anatômicas numa progressiva elaboração da “ciência visual” em oposição àquela meramente textual.
“Ele não ilustrou as matérias da anatomia, mas concebeu-as com o desenho, bem ao espírito de sua formação no ateliê de Verrochio, num contexto semiletrado, em que a expressão usual era visual, e não a palavra. Leonardo passou a identificar arte e ciência de forma inédita e a pensar numa concepção mecânica do corpo”, fala Eduardo. Ao contrário de Alberti, para quem investigar a aparência do corpo era suficiente para o pintor, para Da Vinci as representações dos afetos exigiam o conhecimento das suas causas. “Se o pintor de Alberti era um douto para ser eloquente e verossímil, o pintor de Leonardo queria ser um douto para dizer a verdade no sentido de demonstrações de matérias da filosofia natural nos moldes aristotélicos, para a qual a sensação é o fundamento de toda cognição. Ele insistia na necessidade da experiência.” A distinção entre arte e ciência desaparecia.
“A palavra ‘demonstrar’ é comum nos estudos anatômicos de Leonardo e seu sentido é próximo de ‘figurar’, com produtos que eram ‘desenhos-conceitos’ que mostravam a vera notizia ou intera cognizione de partes do corpo, tratados o mais mecanicamente possível, precursores de diversos ‘mecânicos’ do século XVI e apontando para a ciência do século XVII”, explica o pesquisador. Sua arte era uma ciência.
Havia, porém, alguns problemas com seus métodos. Ele iniciava com a experiência investigativa, o contato dos sentidos como material anatômico. A partir da experiência investigativa, ele pôde elaborar, com o auxílio de textos que leu ou com o eventual contato com investigadores da anatomia (como Marcantonio dela Torre, professor de anatomia da Universidade de Pádua), o conhecimento sobre as formas e funções das partes do corpo. Desse conhecimento surgia a experiência construtiva, ou seja, a reelaboração com o desenho seguido de escrita, ação quase sempre feita distante do material anatômico. “Leonardo desenhou muitas anatomias sem jamais as haver visto. Ele acreditava que uma vez alcançado certo conhecimento, não era mais preciso ter contato com os corpos. A experiência construtiva de Leonardo se pretendeu ciência e os resultados eram sínteses a partir de várias dissecações particulares, não cópias da realidade. Isso permitiu a ‘ciência visual’, codificação de conhecimentos feita a partir de conceitos desenhados que podiam ser conhecidos pelo seu observador.”
“A ideia central do seu tratado era: para o anatomista, a experiência visual é fundamental, mas a elaboração do conhecimento deve acontecer depois, sem contato direto com o material anatômico, para que se possa, retornando a ele, controlar os resultados dessa elaboração”, diz Eduardo. Para o pesquisador, Da Vinci desenhou muitas formas longe da experiência visual, o que gerou resultados artificiais ou fictícios. “Se ele tivesse visto e desenhado ao mesmo tempo, poderia comparar a dissecação e o esboço, o que teria possibilitado um ‘ver melhor’. A distância entre as duas experiências, ver e elaborar, fez com que ele pudesse sintetizar as partes dos corpos, elaborando ‘conceitos desenhados’. Mas, por outro lado, essa distância fez com que ficasse vulnerável a teorias errôneas, próprias ou da tradição, em geral uma mistura das duas”, observa o autor. “O momento de codificar o conhecimento anatômico, porém, não apenas gerou ideias para novas investigações, mas também para novas demonstrações. Provavelmente, Leonardo não teria feito o que fez se tivesse apenas lido e dissecado: suas descobertas e métodos demonstrativos foram sendo refinados ao longo dos anos.”
Não houve comunhão de interesses entre artistas e anatomistas das universidades até meados do século XVI. “Se tivesse havido, a ilustração anatômica teria se desenvolvido bem antes do programa de Vesalius.” Mas uma forma de conhecer baseada sobre as ciências naturais que tinha que ser realizada em conjunto com a arte não tinha lugar, ou seja, uma ciência que produzia aparências, mesmo que idealizadas, era uma contradição nos seus próprios termos”, explica o historiador.
Leonardo ousou a operação que outros artífices não haviam feito e tentou superar a distância que havia entre artes e ciências. Trazendo para a pintura conhecimentos da filosofia natural, modificou o significado da pintura, pois esta passou a representar um número maior de conhecimentos, num contexto de cultura que não permitia que houvesse uma ciência cujos resultados dispensavam o discurso. “Os objetos técnicos sobre os quais ele trabalhava como ‘engenheiro’ foram modelos para ele pensar o corpo como um conjunto de alavancas e seus moventes”, afirma o pesquisador. Na Renascença, a ideia do homem como um mecanismo estava no contexto de cultura em que as máquinas começavam a fazer parte do cotidiano.
Numa curiosa ironia, arqueólogos italianos encontraram no mês passado, no convento de Santa Úrsula, situado na cidade de Florença, um altar que possivelmente pode abrigar os restos mortais de Lisa Gherardini, a suposta modelo da Mona Lisa. Leonardo teria adorado ver de perto os ossos que deram o sorriso mais celebrado da história.
O Projeto
A natureza, a razão e a ciência do homem (nº 2012/01124-2); Modalidade Auxílio Pesquisa; Coordenador Eduardo Kickhofel – Unifesp; Investimento R$ 16.000,00 (FAPESP)