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Luiz Hildebrando P. da Silva

Luiz Hildebrando Pereira da Silva: Virando o jogo da malária

Investigação científica, controle de áreas endêmicas e ação coordenada de instituições reduzem os casos da doença em Rondônia

Malaria_DSC02921TONY KATSURAGAWAA incidência da malária em Rondônia reduziu-se acentuadamente nas duas últimas décadas em ritmo mais acelerado que no resto da Amazônia. Mas no município de Porto Velho, capital do estado, ao contrário, o número de casos tem se mantido e mesmo sofrido ligeiros aumentos nos últimos anos. Como explicar essas contradições? Deve-se registrar que no conjunto da região amazônica passou-se de mais de 600 mil casos em 1999 a menos de 300 mil em 2011. Em Rondônia, nas décadas de 1980 e 1990, o número de casos representava 40% do total de registros na Amazônia e hoje equivale a 12%. Esse resultado deve ser creditado às medidas de controle, que melhoraram sensivelmente nos últimos anos, à introdução de novos medicamentos como o Artesunato, à assessoria técnico-científica das autoridades sanitárias, à atuação do Centro de Pesquisas em Medicina Tropical (Cepem), da Secretaria da Saúde do Estado, de um núcleo avançado do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da Universidade de São Paulo (USP), do Instituto de Pesquisa em Patologias Tropicais de Rondônia (Ipepatro), e à obstinação de Luiz Hildebrando Pereira da Silva.

A FAPESP participou desse esforço em combater a malária, apoiando projetos de pesquisa de Hildebrando e de dois pesquisadores do ICB-USP, Erney Plessmann de Camargo e Fabiana Piovesan Alves. Ela desenvolveu de outubro de 1999 a dezembro de 2002, como projeto de doutorado, um estudo sobre a presença de malária assintomática vivax em áreas hipoendêmicas da Amazônia, orientado por Erney, profesor titular na USP. E ele ampliou sua pesquisa de doenças tropicais negligenciadas para o levantamento da fauna de carrapatos de Rondônia e determinação da prevalência nesses artrópodes dos micro-organismos Rickettsia, Erlichia e Borrelia, que podem causar infecções em seres humanos. O projeto de Erney, que se estendeu de 2000 a 2004, envolveu também o diagnóstico dessas infecções e o estabelecimento de um sistema de vigilância sanitária em Monte Negro. Quanto a Hildebrando, seu projeto   apoiado pela FAPESP nesta área foi o estudo de antígenos variantes de Plasmodium falciparum e sua relação com formas graves de malária, de 1999 a 2001. Em valores da época, os dois auxílios à pesquisa mais a bolsa de doutoramento concedidos pela Fundação para esses estudos totalizaram um  investimento de R$ 876 mil.

Luiz Hildebrando estuda doenças tropicais desde a década de 1950, publicou 80 artigos científicos sobre malária e foi responsável pela criação do Cepem e do Ipepatro. Ele foi professor de parasitologia na Faculdade de Medicina da USP e, ao longo de 32 anos, exilado na França, dirigiu as unidades de diferenciação celular e de parasitologia experimental do Instituto Pasteur e investigou a biologia molecular do parasita da malária na Guiana Francesa, em Madagascar e no Senegal. Aposentou-se em 1997 e no ano seguinte voltou ao Brasil e se fixou em Rondônia, onde até hoje, aos 84 anos, estuda a imunologia e a epidemiologia da doença.

Pesquisa FAPESP o entrevistou duas vezes nos últimos dez anos: em 2002, quando o repórter Marcos Pivetta o visitou em Porto Velho, e em 2007 em São Paulo. Agora, Hildebrando poupou o trabalho da repórter e respondeu de próprio punho às perguntas que seriam utilizadas em reportagem que pretendia atualizar o avanço das pesquisas com malária em Rondônia. Ele nos conta que resultados recentes de pesquisas das equipes de Rondônia em inovações nos métodos de controle o fazem pensar que é mesmo possível erradicar a malária amazônica na próxima década. Autor do livro Crônicas Subversivas de um Cientista, recentemente lançado, Luiz Hildebrando é senhor absoluto de suas histórias.

012-019_malaria entrevista-01Em março de 2002, o senhor contou que o Cepem identificara que vítimas do P. vivax, sem sintoma de malária, podem transmitir a doença. Isso se confirmou?
Esse trabalho foi publicado na inglesa Lancet, em 1999, e referia-se a portadores assintomáticos da malária vivax. Os estudos avançaram bastante nos últimos anos. Infelizmente, em 1997, a USP decidiu retirar o ICB de Porto Velho e implantá-lo no interior do estado de Rondônia. Ao mesmo tempo foi criado em Porto Velho o Instituto de Pesquisa em Patologias Tropicais (Ipepatro), que obteve recursos do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) para desenvolver pesquisas em malária com o Cepem. Foram mantidas as colaborações com pesquisadores do departamento de parasitologia e com vários outros da USP de São Paulo e de Ribeirão Preto e com as universidades federais do Rio de Janeiro (UFRJ) e de Mato Grosso (UFMT). Verificou-se, nessa nova fase, que havia, nas áreas endêmicas de Rondônia, em particular nas áreas ribeirinhas, portadores assintomáticos de parasitas da malária vivax e da malária falciparum. As pesquisas de 2005 para cá deram origem a 16 publicações, três teses de doutorado e 12 de mestrado no programa de pós-graduação em biologia experimental mantido com a Universidade Federal de Rondônia. Demonstrou-se o papel importante da mobilidade das populações amazônicas na manutenção e disseminação das áreas endêmicas da malária. Além de mostrar que os portadores assintomáticos de parasitas são fontes de infecção na manutenção da endemia, demonstrou-se o papel das recaídas de malária vivax, mesmo após a utilização da Primaquina no tratamento completo. Foi analisado o papel de anofelinos de diferentes espécies na transmissão, concluindo-se pelo papel dominante, quase exclusivo do Anopheles darlingi na transmissão da endemia e foram descritos os ciclos de variação sazonal da densidade dos vetores.

Atualmente, qual é a pauta de pesquisa?
Nos últimos anos, temos nos concentrado no estudo de dois fatores relacionados ao processo de manutenção dos níveis elevados de incidência da malária na região: 1) o papel dos portadores assintomáticos de parasitas, tanto na malária falciparum como na malária vivax; e 2) no problema das recaídas na malária vivax. Nos últimos cinco anos, assiste-se a uma queda apreciável no número total de casos de malária, em particular da malária falciparum, que representava, até o fim da década de 1990, cerca de 20 a 25% do total de casos e que, atualmente, está representando apenas 10% a 15%. Esse sucesso se deu graças aos esforços do Ministério da Saúde e à introdução do tratamento com dois medicamentos associando derivados do Artesunato. A partir dessa tendência, nossas pesquisas demonstraram o efeito positivo suplementar do tratamento de pacientes assintomáticos portadores de Plasmodium falciparum em um projeto-piloto em localidades em que a transmissão de malária falciparum foi zerada por cerca de um ano e reintroduzida apenas por contaminação externa. O mesmo sucesso, no entanto, não foi obtido com a malária vivax. Ao contrário: não houve variação significativa da incidência após tratamento dos portadores assintomáticos devido, essencialmente, a recaí-das clínicas (sintomáticas), observadas mesmo entre portadores assintomáticos tratados. Essa verificação levou à demonstração original de que a imunidade clínica em malária vivax é variante específica e não espécie específica, devido essencialmente ao caráter policlonal da população de hipnozoitas hepáticos (formas latentes de P. vivax no fígado dos pacientes infectados). Finalmente, nos últimos anos foi possível desenvolver novo procedimento na prevenção das recaídas: o tratamento de pacientes com formas clínicas assintomáticas e sintomáticas é associado a um curto período de tratamento preventivo das recaídas por cloroquina, que age não sobre os hipnozoitas hepáticos, mas sobre as formas assexuadas sanguíneas oriundas do fígado na primeira infecção ou nas recaídas. Com esse procedimento, inspirado em ações realizadas na Nova Guiné e na África subsaariana denominadas IPT (Intermitent preventive treatment), realizamos uma adaptação às condições amazônicas que denominamos SIPT (Selective interrupted preventive treatment) e obtivemos grande sucesso, reduzindo a transmissão da malária a níveis extremamente baixos em localidades ribeirinhas piloto. Trata-se agora de reproduzir esse procedimento em áreas mais extensas e, simultaneamente, em um maior número de localidades. Registre-se que o sucesso da operação é dependente do bom funcionamento das estruturas do Programa de Saúde da Família (PSF) nas localidades em que é aplicado.

Qual a taxa atual da malária assintomática?
Nas localidades ribeirinhas estudadas do rio Madeira e do rio Machado, elas variaram de 10% a 40% dos residentes adultos.

012-019_malaria entrevista-02Quais são as áreas pesquisadas?
Em trabalhos anteriores mostramos que a incidência de malária é particularmente elevada em áreas ribeirinhas, onde a população anofélica, na estação chuvosa, sobe a níveis elevados de densidade HBR (Hour bitting rate) superiores a 20 ou 30 (picadas por pessoa por hora). O desenvolvimento da imunidade clínica natural, responsável pela condição de portador assintomático, está diretamente relacionado à frequência da exposição a picadas infectantes e, portanto, ao tempo de residência nas áreas de transmissão. É, portanto, essencialmente nas áreas ribeirinhas de Rondônia que temos realizado os estudos sobre portadores assintomáticos de parasitas da malária. Estas áreas se situam ao longo do município de Porto Velho (35 mil quilômetros quadrados), que ocupa uma nesga de terra de 500 quilômetros de extensão e cerca de 60 quilômetros de largura ao longo do rio Madeira, da fronteira de Rondônia com Mato Grosso até a fronteira com o estado do Amazonas.

Quantos exames o Cepem realiza anualmente?
Os exames de malária são realizados por nossa equipe de microscopistas instalada na unidade de atendimento do Cepem para diagnóstico e tratamento da malária, situada em anexo ao Hospital Cemetron, uma unidade da Secretaria de Saúde do Estado (Sesau) especializada em patologias infecciosas e parasitárias e que funciona 365 dias por ano, 24 horas por dia, incluindo domingos e feriados. Essa atividade de prestação de serviços e assistência à população também é útil para as pesquisas em fisiopatologia, imunopatologia e quimioterapia da malária desenvolvida em colaboração direta e financiamento do Ipepatro/Fiocruz-Rondônia. Nesse caso, são selecionados pacientes voluntários, que participam de vários programas de pesquisa, atendidos por médicos e técnicos que dispõem de equipamentos para exames hematológicos, bioquímicos, sorológicos, imunológicos e moleculares como FACS (fluorescent cell sorter), microscópio de fluorescência, equipamentos para análises por Elisa, PCR e PCR em tempo real. O Cepem dispõe de uma equipe especial de controle ético de estudos envolvendo seres humanos.

Houve nos últimos anos uma redução de 50% no número de casos de malária atendidos no Cepem e de mais de 85% no número de casos de malária falciparum. Isso reflete a situação geral de evolução da malária no conjunto da Amazônia, em Rondônia e em Porto Velho em particular. O número de casos em Rondônia, que nas décadas de 1980-90 chegou a representar mais de 40% do total de casos da Amazônia, passou a representar em 2006 apenas 18,5%, caindo ainda mais em 2011, para 12%. Entretanto, os dados do Sivep Malária registram uma situação particular de aumento relativo da incidência da malária em Porto Velho, que representava 34,3 % do total de casos do estado de Rondônia em 2006, passando em 2009, 2010 e 2011 a representar, progressivamente, 49,8%, 53,4% e 54,9% do total de casos no estado. Essa situação se deve em grande parte ao movimento de populações provocado nos últimos anos pelas obras das hidrelétricas do rio Madeira.

Além dos exames no Cepem, são realizados exames nos trabalhos campo, essencialmente nas áreas ribeirinhas do rio Madeira para estudos epidemiológicos e de controle. Equipes de microscopistas são instaladas nas localidades de Vila Amazonas, Cachoeira de Teotônio e São Sebastião. As amostras de sangue são transportadas para o Cepem, onde são processadas, por meio de frota de viaturas, utilizada igualmente para os trabalhos de campo em entomologia e que foi bastante ampliada após a integração do Ipepatro à Fiocruz.

Em 2007, o senhor estava preocupado com o efeito da migração para a expansão da doença. Essa preocupação se confirmou?
Em 2009, publicamos na PLoS ONE um artigo sobre a dinâmica da transmissão e a distribuição espacial da malária nas áreas ribeirinhas de Porto Velho. Chegamos a conclusões importantes: 1) apesar da transmissão poder ocorrer intra e extradomicílio, a manutenção da malária nas áreas endêmicas é essencialmente dependente da transmissão intradomiciliar na constituição, entre os residentes do foco da endemia, reforçado pela presença das fontes de infecção permanente (assintomáticos); 2) a mobilidade das populações amazônicas é o fator essencial da difusão e extensão da endemia malárica. No caso de duas localidades ribeirinhas, visitantes e moradores temporários (pescadores sazonais) eram responsáveis por um aumento de 2,6 vezes no número de casos registrados. Em 2007 tinha havido 102 casos de malária entre os 379 residentes e 265 casos entre visitantes e residentes provisórios (pescadores), em particular nos meses de piracema, quando os peixes sobem o rio para desovar e são mais facilmente pescados. Ora, esses pescadores eram moradores da periferia de Porto Velho e veiculadores de malária para as áreas periféricas da cidade. Os resultados nos colocaram em posição de contestar as proposições do programa Global Malária da OMS que, com base no mapa mundial elaborado pelas equipes da Universidade de Oxford e considerando a “baixa incidência da malária falciparum na Amazônia”, propunham a utilização dos meios tradicionais para o controle, em particular o uso de mosquiteiros impregnados associado ao tratamento da malária sintomática. Passamos a defender uma proposição diversa para o controle, a de identificar os focos de alta endemicidade para concentrar os instrumentos de controle tanto vetorial nos domicílios, como o tratamento dos residentes permanentes dos focos, incluindo os portadores assintomáticos de parasitas.

1Marcia MinilloCom a construção da Usina Hidrelétrica de Santo Antônio, no rio Madeira, e a consequente migração, a incidência da doença cresceu?
Na verdade, o conteúdo do artigo da PLoS ONE foi fruto dos estudos e pesquisas que realizamos de 2006 a 2007, já com a preocupação das obras da construção da Usina Hidrelétrica de Santo Antônio. Fizemos o mapeamento das localidades ribeirinhas em toda a área de impacto da hidrelétrica, com residências e residentes identificados e projetamos a instalação das unidades de vigilância e controle que julgávamos necessárias para as operações de controle na área. Em meados de 2007, preparamos um longo documento, com 10 proposições para prevenir o possível agravamento e difusão da malária na região ribeirinha de Porto Velho e arredores. Convencidos de que o perigo provinha dos focos de alta endemicidade existentes nas localidades ribeirinhas da área de impacto das hidrelétricas, o documento propunha a instalação de cinco unidades de atendimento e vigilância ao longo da área ribeirinha do Madeira, com equipes PSF, além de uma unidade denominada Centro de Coordenação Operacional, com unidades móveis, centro de formação, laboratório de entomologia para vetores e anexos operacionais. A proposta sugeria a constituição de um processo legitimando um mecanismo multiinstitucional de cooperação técnica e corresponsabilidade executiva, reunindo os serviços de saúde do município, do estado e das empresas construtoras, a partir do qual seria o constituído o setor puramente técnico de supervisão da saúde na área de impacto da hidrelétrica. Infelizmente, a proposta não foi adiante porque cada setor via interesses políticos ou financeiros prioritários. Evoluiu-se para uma fragmentação da autoridade e dos instrumentos de ação. O consórcio da hidrelétrica ficou com a autoridade sobre o canteiro de obras; o município, a título de compensações, solicitou recursos para a implantação de serviços de saúde básica, dentro e fora da área de impacto; o estado, com os mesmos argumentos, solicitou recursos para obras hospitalares fora da área de impacto; o ministério designou responsável para “supervisionar” as ações de controle que, pela dispersão de atores e responsáveis, se tornou difícil de realizar. Isso sem falar do direito à extraterritoriedade dos atores, conferido às empresas privadas (as hidrelétricas), de decidir no domínio da saúde, além do que iriam fazer com seus empregados (o que é legitimo), ficar livre para utilizar as medidas de controle vetorial em áreas de residências das populações locais, utilizando métodos que não são adotados pelo controle vetorial do Ministério da Saúde. Com a dispersão da autoridade, ninguém ficou responsável pelo saneamento, medida que devia ter sido prioritária para o controle de vetores nas áreas de impacto, urbanas, suburbanas e rurais vizinhas, que teria permitido o controle da malária nessa área e igualmente das patologias de transmissão hídrica como as diarreias infantis, a febre tifóide, a amebiase, a leptospirose, a hepatite A, entre outras endêmicas na área.

Essa situação de falta de coordenação entre as instâncias federais, estaduais e municipais em saúde, como também sua interação com o setor privado,  que deveriam atuar inteiramente coordenadas segundo a política do SUS, continua a dar origem a desacertos. Quando obtivemos do Fundo Global da OMS, em 2010,  recursos para o controle da malária,  fomos forçados pelo doador  – o Fundo –  a reservar US$ 20 milhões do auxílio para a compra e instalação de mosquiteiros impregnados de inseticidas nas campanhas de controle. Ora, o uso de mosquiteiros impregnados, tão apreciados pelo Fundo Global da OMS, não tem nenhuma comprovação de utilidade para o tipo de malária que temos na Amazônia. Independentemente disso, receber auxílio financeiro carimbado com o tipo de medida a ser financiada e utilizada contraria  os mais básicos princípios de autonomia  administrativa da República. Mais grave ainda é o fato de a OMS exigir que a gestão dos recursos fosse feita não pelo Ministério da Saúde, mas por uma entidade privada que foi montada e credenciada. Curiosamente, depois de transferir uma primeira parcela do auxílio, a OMS descobriu que o Brasil era a sexta potência mundial em termos de PIB e não devia receber auxílios;  rompeu o acordo e não transferiu a segunda parcela. Entretanto, o setor correspondente do Ministério da Saúde já estava  organizando a distribuição de mosquiteiros impregnados e agora pretende obter recursos públicos  (inclusive do fundo setorial de CT&I do MS) para averiguar se os muitos  milhares  de mosquiteiros impregnados, comprados, distribuídos e  instalados, serviram para alguma coisa em relação à malária, sendo que, por outro lado, a larga utilização de luz elétrica atrai toda a entomofauna circulante. Com efeito, não se sabe o impacto deste equipamento na entomofauna da Amazônia. Os mosquiteiros impregnados estão sendo instalados sem prévio estudo de impacto no interior da maior biodiversidade do planeta. Durma-se com um barulho desses.

Em 2007, o senhor contou que estava prestes a registrar a patente de um quimioterápico baseado em drogas desenvolvidas a partir da biodiversidade. A patente foi depositada?
Existem duas linhas de pesquisa. A primeira delas é a produção de anticorpos a partir de camelídeos e a segunda busca fonte, a partir da biodiversidade brasileira – principalmente da amazônica –, para a identificação de protótipos/produtos para prevenção e tratamento das doenças negligenciadas. Neste último caso, estamos concentrando nossos esforços em malária, leishmaniose e Chagas. Temos dois pedidos de patentes aceitos pelo nosso núcleo de gestão da tecnologia, mas para ser registrada definitivamente exigem-se ainda detalhes relativos à toxicidade da droga. Existem duas substâncias ativas promissoras contra Leishmania sp, extraídas de plantas regionais, que se mostraram ativas tanto contra formas epimastigotas como contra as formas amastigotas intracelulares. As pesquisas mostram que essas substâncias inibem enzimas da via de biossíntese de ácidos nucleicos do parasita. Essas substâncias estão sendo nanomontadas em nanoestruturas para dispersão controlada e os resultados são muito promissores, principalmente para as lesões cutâneas. Num futuro próximo, teremos o prazer de anunciá-los. Com relação ao estudo dos anticorpos de camelídeos, há resultados promissores para neutralização da raiva e efeito local de envenenamento de toxinas animais. As pesquisas sobre novos compostos ativos obtidos a partir da biodiversidade, contra agentes de doenças negligenciadas, tiveram um grande desenvolvimento a partir da implantação do Centro de Estudos de Biomoléculas Aplicadas à Medicina (Cebio), sob direção de Rodrigo Stabeli. Criado com recursos obtidos inicialmente pelo Ipepatro e pela Finep, foi instalado em colaboração, com a Universidade Federal de Rondônia. Quando o Ipepatro foi transformado em Fiocruz-Rondônia, essa linha de pesquisa se tornou estratégica, coordenando assim um conjunto de pesquisas sobre a biodiversidade para o isolamento e o desenvolvimento de protótipos de fármacos e insumos imunológicos ativos contra malária, leishmaniose, Chagas, raiva e outras patologias negligenciadas como as produzidas por arbovírus e toxinas animais. O Cebio desenvolveu uma série de novas tecnologias, utilizando aparelhos de nanossensoriamento, espectrometria de massa e eletroforese bidimensional, contra alvos moleculares definidos para o isolamento e identificação de produtos naturais bioativos ou imunobiológicos. Já produzimos enzimas recombinantes por engenharia genética, correspondendo a três enzimas-chave como alvos moleculares de Plasmodium falciparum para o isolamento de produtos naturais ativos. Produzimos enzimas recombinantes de Leishmania amazonensis com a mesma finalidade. O Cebio é o único a demonstrar resultados de nanossensoriamento a partir de enzimas triméricas no Biacore (dados ainda em fase de proteção patente). A partir da técnica de Phage display, temos produzido anticorpos do tipo monomérico VHH, isolados a partir de camelídeos (lhamas e alpacas) contra os vírus da febre amarela e da raiva e contra toxinas de serpentes. As pesquisas dos anticorpos se concentram sobre a capacidade dos anticorpos VHH isolados de inativar os vírus e as toxinas in vivo.

Em Candeias, Rondônia, o pano vermelho é o sinal de que há um caso suspeito de malária

EDUARDO CESAREm Candeias, Rondônia, o pano vermelho é o sinal de que há um caso suspeito de maláriaEDUARDO CESAR

Alguns desses resultados têm perspectivas de chegar ao mercado?
Respondo citando o exemplo da Spirodolona, uma das únicas novas drogas que a indústria farmacêutica internacional está propondo contra a malária para entrar em fase de ensaios clínicos, com a previsão de um mínimo de três a quatro anos para chegar ao mercado, se tudo der certo. Uma publicação na Science, em dezembro de 2011, descreve o processo no qual colaboraram 29 signatários, entre os quais vários especialistas em malária, de 12 conceituadas instituições suíças, inglesas, americanas, tailandesa e singapurana, além de pesquisadores da Novartis. Para chegar à Spirodolona, partiu-se de 12 mil produtos sintéticos e naturais com indícios de atividade antimalárica, dos quais foram selecionados, num primeiro ciclo, 275 com toxicidade menor que 50% contra células humanas na concentração de 10uM e com atividade antimalárica a uma concentração menor que 1uM. Dos 275 produtos, foram isolados 17 mais ativos, a partir dos quais foram sintetizados 200 análogos, com pequenas variações de estrutura, testados in vitro e in vivo para chegar à Spirodolona, que inibe seletivamente a síntese proteica de Plasmodium falciparum. Em várias publicações recentes verifica-se que, entre as indústrias farmacêuticas de ponta, um produto novo demora em média 13,5 anos, desde a primeira descoberta até a proposição no mercado, e necessita de dezenas ou centenas de técnicos e especialistas para estudos seletivos progressivos, consome centenas (ou milhares) de animais de laboratórios e exige a utilização de equipamentos extremamente dispendiosos de última geração

Essa digressão tem por objetivo destacar as dificuldades das instituições científicas e acadêmicas de desenvolver, no Brasil, estudos equivalentes, contando apenas com alunos e estagiários que preparam memórias de graduação ou de pós-graduação e a quem os orientadores não podem dar como tema atividades de rotina para selecionar nas diferentes etapas, através de manipulações repetitivas as moléculas sobreviventes dos screenings progressivos. Como nossa indústria farmacêutica não tem recursos suficientes para investir em pesquisa “prometedora” e as instituições de fomento financiam, em geral, apenas a formação de iniciação científica e de mestres e doutores, esse problema tem que encontrar soluções por meio do desenvolvimento de bolsistas e cargos permanentes de apoio técnico. Sem isso, nossas descobertas de produtos promissores ficarão sempre no nível da primeira descrição e, obviamente, quem sofrerá as consequências seremos nós mesmos, uma vez que os insumos relacionados às doenças locais ficaram cada vez mais escassos, até que o surto desta ou daquela doença hoje negligenciada comece a dar lucro. Não podemos seguir ou ficarmos reféns do mercado farmacêutico diagnóstico local. O Brasil possui ótimas cabeças ligadas ao desenvolvimento de insumos para a saúde pública. É necessária uma política pública estratégica para o desenvolvimento coordenado desta área.

Os projetos
1. Antígenos variantes de Plasmodium falciparum: participação no fenômeno de citoaderência e repercussões na patogenia da malária grave (nº 1998/12107-2) (1999-2001); Modalidade Linha regular a auxílio a projeto de pesquisa; Coordenador Luiz Hildebrando Pereira da Silva – ICB/USP; Investimento R$ 392.269,81
2. Levantamento da fauna de carrapatos de Rondônia e determinação da prevalência de Rickettsia, Erlichia e Borrelia nesses artrópodes (nº 1999/08589-4) (2000-2004); Modalidade Projeto temático; Coordenador Erney Felicio Plessmann de Camargo – ICB/USP; Investimento R$ 398.242,50
3. Estudo de malária vivax assintomática em áreas hipoendemicas da Amazônia Brasileira (nº 1999/06603-0) (1999-2002); Modalidade Bolsa de doutorado; Coordenadora Fabiana Piovesan Alves – ICB/USP; Investimento R$ 85.459,53

Artigos científicos
ALVES, F.P. et al. Asymptomatic carriers of Plasmodium spp. as infection source for malaria vector mosquitoes in the Brazilian Amazon. Journal of Medical Entomology. v. 42, p. 777-9, 2005.
LABRUNA, M.B. et al. Rickettsia bellii and Rickettsia amblyommii in Amblyomma Ticks from the State of Rondônia, Western Amazon, Brazil. Journal of Medical Entomology. v. 41, p. 1073-81, 2004.
GBOTOSHO, G. O. et al. Different Patterns of pfcrt and pfmdr1 Polymorphisms in P. falciparum Isolates from Nigeria and Brazil: The Potential Role of Antimalarial Drug Selection Pressure. The American Journal of Tropical Medicine and Hygiene. v. 86, p. 211-13, 2012.

De nosso arquivo
Da malária às doenças emergentesEdição nº 73 – março de 2002

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