Léo Ramos
Helena Bonciani Nader, professora titular da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), foi reeleita no mês passado presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), a entidade mais representativa da comunidade científica do país, com cerca de 110 sociedades associadas e mais de 4 mil sócios ativos. Depois de cumprir dois mandatos como vice-presidente e um como presidente, seguirá à frente da entidade até julho de 2015. Nos últimos anos, ela foi uma voz importante na articulação de campanhas bem-sucedidas, como a que conseguiu derrubar um dispositivo da lei da carreira docente nas universidades federais que extinguia a exigência do título de doutor em concursos, e outras ainda não concluídas, como a que briga pela destinação de parte dos royalties do petróleo para a ciência e por mais recursos para a ciência e tecnologia. Com graduação e doutorado pela Unifesp, quando ainda se chamava Escola Paulista de Medicina, pós-doutora pela Universidade do Sul da Califórnia, a pesquisadora comanda o grupo que é referência mundial na pesquisa sobre a heparina, polissacarídeo conhecido por sua ação como anticoagulante.
O grupo foi criado por Carl Peter von Dietrich (1936-2005), orientador de doutorado de Helena, com quem ele mais tarde se casou e teve uma filha. A professora formou quase 100 pesquisadores, entre mestres e doutores, e mantém com prazer o hábito de dar aulas na graduação, onde, segundo diz, é mais fácil passar valores para os alunos. Também é coordenadora de área de biologia da FAPESP e professora honorária da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, onde ajudou a criar um grupo em pesquisa de bioquímica. Na entrevista a seguir, ela faz um balanço de sua carreira e de seu trabalho na SBPC, e fala dos planos da entidade.
Especialidade: |
Glicobiologia |
Formação: |
Universidade Federal de São Paulo (graduação e doutorado), University of Southern California (pós-doutorado) |
Instituição: |
Universidade Federal de São Paulo, Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência |
Produção Científica: |
248 artigos científicos na base Thomson Reuters, 43 orientações de doutorado e 45 de mestrado |
Quais são os principais desafios da ciência brasileira na visão da SBPC?
O Brasil está atravessando uma fase nova para a educação e para a ciência, uma fase de maior demanda e demanda qualificada. Na época em que a SBPC foi criada, 65 anos atrás, a ciência brasileira era muito pequena, restrita a algumas áreas do saber e a alguns pontos do país. Hoje a ciência está espalhada pelo Brasil e eu vejo isso como uma vitória de toda a comunidade científica. O panorama é muito bom, mas precisa de investimentos. Por isso lutamos por mais recursos para a ciência. Melhoraram os investimentos, mas estão aquém do necessário. A iniciativa privada investe, mas ainda aquém do que investe, por exemplo, o empresariado na China ou na Coreia.
E persiste uma assimetria entre os estados brasileiros?
Tem diferenças. Aqui em São Paulo o panorama é um. O Rio de Janeiro também tem um panorama extremamente favorável. Minas Gerais agora está investindo proporcionalmente mais do que o Rio. Tenho um orgulho muito grande porque o estado de São Paulo tem um papel muito importante no cenário científico brasileiro. Nós saímos na frente. A Constituição estadual de 1947 previu a criação de uma fundação de amparo à pesquisa, que cresceu com a confiança da comunidade científica e, importante, da comunidade política. A FAPESP conseguiu impor-se no cenário político, isso foi fundamental. E quando se faz a nova Constituição brasileira, em 1988, se coloca que todos os estados deveriam ter fundações e apoiar a ciência, a pesquisa e a tecnologia. A nossa FAPESP foi fundamental. Me lembro que o Flávio Fava de Moraes, que era o diretor científico da FAPESP, correu o país. O professor Dietrich e eu montamos um programa de pós-graduação na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, nos anos 1980, e encontramos o Fava numa audiência lá na Assembleia Legislativa, mostrando o impacto de se ter uma fundação. A ciência aqui era mais antiga, já tínhamos o Instituto Agronômico de Campinas e o Butantan, com mais de 100 anos.
A criação da USP foi talvez o marco principal…
O fato de termos perdido a Revolução Constitucionalista em 1932 teve um impacto na sociedade paulista muito grande. A criação da USP em 1934, numa espécie de compensação para a derrota, trouxe cientistas europeus que estavam sendo perseguidos por problemas políticos, religiosos, ideológicos. São Paulo já era um estado forte, mas com os cafezais em crise. Os nossos jovens que queriam fazer medicina iam para o Rio, para a Bahia, porque em São Paulo só tinha uma escola de medicina, que não era ainda da USP, na avenida Dr. Arnaldo. Não havia investimento federal. Outra instituição, a Escola Paulista de Medicina, nasceu em 1933 como instituição privada e permaneceu assim até meados da década de 1950. Nosso estado contaminou os outros. Tenho orgulho, como paulista, paulistana e brasileira, de dizer que o estado de São Paulo ajudou nisso. Mas também vejo que São Paulo precisa estar mais presente, pela dimensão de sua ciência, e não se afastar por razões relacionadas com a política partidária. Há um prejuízo de diálogos. Às vezes, você poderia colocar numa mesma mesa pessoas de diferentes tendências e não consegue porque um recrimina o outro. Não deve ser assim. Eu acho que isso está mudando, e é bom. Ainda bem que somos uma democracia, ainda bem que temos alternância de poder. Temos que ter bandeiras comuns, que são fundamentais para o Brasil.
Recentemente, a SBPC liderou a campanha para reverter alguns dispositivos da lei da carreira docente das universidades federais. O resultado foi satisfatório?
Quando vimos o projeto de lei, mandamos um documento assinado por mim e pelo Jacob Palis, presidente da Academia Brasileira de Ciências, em que colocamos claramente os prejuízos, mas infelizmente não fomos ouvidos. A lei foi aprovada no dia 28 de dezembro. Depois da aprovação, a SBPC foi, tenho orgulho de dizer, a peça-chave na medida provisória da presidente Dilma, voltando a exigir título de doutor para ser professor de universidade federal, porque isso tinha acabado. É um absurdo. O país tem uma pós-graduação que está sendo copiada lá fora e de repente faz-se uma lei que diz: olha, quer ser professor na federal, basta ter graduação. Foi revertido. Mas há um ponto importante que ainda não foi revertido: é preciso tornar a nova lei compatível com a Lei de Inovação, possibilitando ao professor com dedicação exclusiva desenvolver projeto em empresa, desde que sem prejuízo das atividades de ensino. Nas universidades públicas paulistas o professor em dedicação exclusiva pode destinar um dia por semana a esse tipo de trabalho.
Duas bandeiras de sua gestão foram a reação ao corte de orçamento em 2012 e os royalties do petróleo…
Nós temos hoje uma parceria com a Academia Brasileira de Ciências. Somos complementares. Com isso você tem a representatividade de toda a comunidade científica. Na visão de alguns, a academia é restrita… nós acadêmicos estamos lá no trono e lá embaixo tem a massa, o que não é real. A academia representa a elite e, no Brasil, elite é uma palavra gasta. Mas a SBPC representa todas as sociedades científicas. São 110 sociedades científicas. Quando um documento é assinado pelo Jacob Palis e por mim, tem um peso importante. Uma bandeira que assumimos foi a recomposição do orçamento depois do corte em 2012. E este ano a presidente Dilma, palavras ditas pelo ministro Marco Antonio Raupp, disse que não se pode contingenciar o orçamento do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação [MCTI], assim como o da Educação. A gente conseguiu mostrar para os dirigentes a importância da ciência e da educação.
Considera o orçamento do MCTI satisfatório?
Houve aumento para a ciência e tecnologia, e houve um aumento substancial para inovação. As parcerias entre o BNDES e a Finep geraram um aumento importante. Pode ser mais? Claro que pode.
Mas do ponto de vista da pesquisa feita em universidades…
Na nossa visão, ainda é pequeno. Temos falado isso para o ministro Raupp. Colocamos isso numa reunião que o ministro presidiu recentemente. Ele nos mostrava que aumentaram os recursos para o edital universal do CNPq, mas observamos que o financiamento para as pessoas diminuiu. Eu falei: “Ministro, antes se podia solicitar até R$ 150 mil em dois anos. Dava R$ 75 mil por ano. Para o cientista mais sênior, o total agora é R$ 120 mil divididos em três anos”. Ele não tinha percebido. Houve uma melhora, aumentou o número de bolsas de produtividade. Houve a criação de novas universidades, aumentou o número de doutores. Sem garantir investimentos, você mata o pesquisador. Temos que lutar para ter mais financiamento. As parcerias entre o governo federal e os estaduais têm dado certo e deveriam acontecer com mais frequência. Porque você soma os recursos, economiza na hora do julgamento. Precisamos ter continuidade, por exemplo, dos Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia [INCTs], que são financiados pelo CNPq e pelas FAPs estaduais. Queremos que o julgamento dos atuais INCTs, agora em julho, seja transparente e aponte quais funcionaram, senão a iniciativa cai em descrédito. Onde não está funcionando você não refinancia. Há uma demanda reprimida e a solução não é tirar de um para dar vez para outro. Vamos atrás de recursos para atender a todos. Da mesma forma o programa Ciência sem Fronteiras precisa ter uma avaliação muito clara.
Que avaliação a senhora faz do Ciência sem Fronteiras?
Encontrei bolsistas nos Estados Unidos. Minha impressão foi incrível. Havia gente da graduação, gente fazendo pós-doutorado. O entusiasmo era impressionante. Infelizmente, o que aparece no jornal é que tem bolsista em Portugal. Não é que Portugal não sirva. Tem o laboratório do imunologista Antonio Coutinho, que só publica na Nature e na Science. A SBPC gostaria que o programa fosse avaliado. Como nós também aqui em São Paulo, com os bolsistas da Bepe [Bolsas de Estágio de Pesquisa no Exterior, da FAPESP]. Nós estamos mandando muitos estudantes para o exterior, desde a graduação ao pós-doutorado. Qual é o impacto? A SBPC considera o Ciência sem Fronteiras um programa ousado, de difícil gestão, mas que poderá vir a impactar a educação e a ciência brasileira. Nossas universidades estão obsoletas. A gente está fazendo cursos de graduação com um modelo do século XIX, não é nem do século XX. O estudante que passa uma temporada no exterior volta diferente. Aqui o professor dá uma aula geral e diz para o estudante “agora vai e estuda”. Na hora em que este avalia o professor diz “o professor não cumpriu a carga”. O aluno quer aula teórica, estudar por anotação de caderno. No exterior, eu conversei com os bolsistas e eles disseram “nunca pensei que pudesse ser assim”. Os professores mandam estudar e chamam os alunos para discutir.
A barreira do inglês segue sendo um problema?
Não posso generalizar, mas não é só para o estudante. Nossos cientistas têm a dificuldade da língua. Muita gente pergunta: por que os brasileiros não publicam nas melhores revistas? Pela barreira da língua. Os chineses também não publicavam nas melhores revistas. Hoje publicam na Nature e na Science direto. Mas eles contrataram pessoas, treinadas, para escrever no modelo de revista. Há 15 anos, o chinês falava erradíssimo. Hoje fala sem sotaque. Mas eles têm uma tradição de educação que nós não temos. Esqueça a liberdade, que disso eu não abro mão, mas eles lá têm educação. A criança está na escola de fato, está aprendendo. Lá eles decidem qual universidade vai fazer ciência. Nosso pesquisador não sabe inglês como deveria. Seria importante ter, nas universidades, pessoas que ajudassem a escrever artigos, porque isso está ficando cada vez pior: estão vendendo esse serviço. Vou dar um exemplo. Mandei recentemente um paper para uma revista. Como é tudo on-line, eles viram que o IP é do Brasil. Um revisor elogiou, o outro fez críticas e o terceiro disse que precisava de extensiva revisão da língua, feita por um nativo. Eu respondi que sou formada nos Estados Unidos, e que o artigo tem dois autores, um inglês e um americano. Reclamar do idioma virou praxe, mesmo se não há problema.
Por quê?
Porque estão vendendo esses serviços. Há um comércio. É um tema relacionado à ética científica. Hoje se discute muito a integridade do pesquisador, sua relação com os estudantes. Mas a integridade vai além. Às vezes, falta integridade em editores de periódicos, em revisores. Já vi isso acontecer: artigos são negados e dados semelhantes saem na mesma revista. Coincidência? É fácil apontar a falha ética de um resultado que não se repete. De plágio é mais difícil. Como provar que o indivíduo não teve a mesma ideia? A pressão pelo financiamento é grande. O número de artigos que repetem o mesmo dado é impressionante.
A campanha pelos royalties do petróleo não foi bem-sucedida. Por quê?
Perdemos os royalties dos novos contratos, mas continuamos lutando para que parte dos recursos que vão para a educação seja destinada à ciência. Não adianta investir só na educação básica. Me lembro do que aconteceu no governo Fernando Henrique. Houve um investimento na educação básica, mas as universidades federais ficaram à míngua. Está errado, você tem que investir em todo o sistema. Só assim há uma mudança de patamar. O governo hoje, infelizmente, está olhando os royalties apenas como uma saída para alcançar 10% do PIB para educação. O que, aparentemente, a gente conseguiu foi que, nos campos de petróleo já licitados, não se acabe com o CTPetro, o Fundo do Petróleo. Mas ainda não está votado, então temos que estar atentos. Também estamos atentos ao código de ciência, tecnologia e inovação. Tenho ido nas audiências públicas. A lei que rege as universidades é a 8.666, que não foi feita para a ciência. Na verdade é anticiência.
Como assim?
Nós tivemos aqui na Unifesp que devolver dinheiro para a Finep, porque foi impossível usar os recursos. Fomos a primeira universidade a criar a medicina translacional. Mandamos um projeto, aprovado na Finep, mas não conseguimos usar o dinheiro. Todos os editais para construção tinham problemas com o Ministério Público, com o TCU. Do jeito que está a lei, ela impede o gasto. Numa audiência pública em que eu estive em Brasília, na comissão que é presidida pelo deputado Gabriel Chalita, havia representantes do Tribunal de Contas, da Advocacia Geral da União. Dei vários exemplos. Lembrei que foi preciso criar legislação específica para a Copa do Mundo e as Olimpíadas, sem a qual não seria possível realizar esses eventos. Copa e Olimpíadas são mais importantes do que educação e ciência? Vou continuar fazendo essa pergunta. Também estamos lutando por uma legislação enxuta para a biodiversidade. Veja a penalização de empresas como a Natura, com nuvens de processos. Tem mais publicações sobre a biodiversidade brasileira no exterior do que no Brasil. E nós continuamos assistindo. Eu acho que isso é anti-Brasil. Se os jovens que estão nas ruas querem algumas bandeiras, posso dar várias. Também estamos atentos à aplicação do Plano Nacional de Educação, o PNE. O salário prometido para os docentes não está sendo cumprido.
Queria falar um pouco de sua carreira. A senhora passou períodos nos Estados Unidos e não quis se fixar lá. Por quê?
Fui pela primeira vez para os Estados Unidos quando ganhei uma bolsa do programa American Field Service. Fui para a Pensilvânia, onde eu fiquei por um ano fazendo o último ano do colégio. Quando cheguei aos Estados Unidos, fiz um teste e me puseram para estudar matemática avançada, que seria o equivalente ao primeiro ano da faculdade. Tive cálculo diferencial e integral, química avançada, inglês avançado. Pude aproveitar bastante e me formei lá. Minhas notas foram muito boas, me deram uma bolsa de estudos para fazer universidade na Pensilvânia, com moradia. Mas eu tinha acabado de chegar ao Brasil e falei “não vou”. Não me arrependo. Fiz a universidade aqui, na Escola Paulista de Medicina. Sou da segunda turma do curso de ciências biomédicas. Poderia ter passado depois para o curso de medicina, isso era garantido. Não quis porque, a certa altura, concluí “quero é fazer ciência”.
Em que momento se deu conta de que queria ser pesquisadora?
No começo do curso, com os desafios de laboratório. A gente tinha muita vivência em laboratório. Ninguém dava aula. Mandavam a gente estudar: “Está aqui. É esse capítulo”. Ninguém perguntou se a classe sabia ler inglês. Era tudo em inglês. Era um curso inovador. Quanto mais exigiam, mais a gente gostava. Isso, numa turma pequena, muito integrada.
E foi no quarto ano que a senhora conheceu o professor Dietrich?
Eu estava já fazendo estágio na bioquímica, trabalhando com o professor Leal Prado, quando o professor Dietrich retornou do Canadá, onde passou seis anos e até se naturalizou. Ele era um jovem prodígio e já estava indo para professor titular aos 33 anos. O Leal não me perguntou se eu queria. Apenas disse: “Olha, você vai trabalhar com o professor Dietrich”. E me deu um monte de separatas para ler. Fiz o quarto ano biomédico, que era estágio, com ele. E aí fui para o doutorado direto. Defendi o doutorado em 1974, fiz um pós-doc na University of Southern California, em Los Angeles, e no Veterans Administration Hospital, em San Fernando Valley, por um ano e meio, com bolsa da Fogarty, dos National Institutes of Health. Meu currículo já era muito bom. Tinha muitas publicações. Na iniciação científica, foi um paper e no doutorado, acho que 10 ou 12 papers. O curioso é que escolhi trabalhar com o Walter Marx, que tinha uma pesquisa pioneira no estudo da biossíntese de heparina. Sempre estive envolvida com os glicosaminoglicanos, em especial com a heparina. Escolhi esse laboratório por referências da literatura, mas não sabia que ele estava praticamente desativado. Fui chamada para uma reunião na Fogarty e me disseram: “Você sabe que seu caso foi muito discutido aqui? Nos chamou a atenção, com um currículo como o seu, que não é comum, a escolha que você fez”. E eu disse: “Não sabia. Se vocês tinham essa informação, tinham a obrigação de ter me avisado”. Responderam que queriam ver como eu me sairia. O custo foi alto, ter de montar um laboratório quando você quer, no pós-doc, aproveitar a estrutura de um grande laboratório. Mas provei que sou capaz. Fiz uma associação com um pesquisador que estava desenvolvendo mastocitomas, deu um paper. Tive que começar do zero. Fui cortar acrílico, juntava gente para ver, e fiz minhas caixas de eletroforese.
E aí volta para o Brasil…
Voltei em 1977. Depois, em 1978, fiquei três ou quatro meses na Itália, em Modena, porque uma indústria pediu auxílio para identificar todos os componentes de um produto natural, de origem animal, vendido em toda a Europa. O desafio era, além de identificar os ingredientes, obter 100 gramas de cada um deles. Noventa por cento era ácido nucleico. Imagine que eu tinha que tirar 100 gramas dos outros. Adquiri uma vivência de análise de heparina que é reconhecida. Somos referência. O professor Dietrich é que montou. Eu tive o privilégio de começar com ele e de continuar como parceira. Antes de ele falecer, muita gente achava que a Helena produzia ciência porque estava junto com o Dietrich. Ele ficava muito chateado com isso. Nós casamos, tivemos uma filha. Então a minha produção era porque ele era um top scientist. E ele dizia: “Esse pessoal não entende nada, o privilegiado sou eu”. Eu respondia: “Então somos os dois”. A gente se complementava. Eu sinto muita falta dele. Muita, muita mesmo. Porque era meu amigo, trocávamos ideias. Mas a produção continua.
Falando de sua contribuição relacionada à heparina, ela começa quando?
Começa na minha tese de doutorado. O professor Leal tinha trazido para o Brasil o professor Gordon, de uma universidade em Londres. Ele era um dos pioneiros da eletrofocalização, uma técnica usada até hoje para separar proteínas e peptídeos pelo ponto isoelétrico. Você tem uma mistura de proteínas e via a separação delas. Elas iam parando em momentos diferentes, na eletroforese. E eu falei: “Poxa, vou fazer isso com a heparina”. Foi o primeiro trabalho na literatura mostrando que na heparina são diferentes componentes com diferentes pesos moleculares e ela é o único composto com essas características entre os glicosaminoglicanos. Esse método foi utilizado na indústria para a caracterização da heparina. Esse trabalho é de 1974. Fomos o primeiro laboratório que mostrou que a função da heparina biológica não tem nada a ver com atividade farmacológica. Publicamos um trabalho, aí eu já estava orientando estudantes, no caso a Anita Straus Takahashi, mostrando a distribuição da heparina em alguns tecidos. Teve também uma publicação com o pessoal do Instituto Biológico. O Osvaldo Sant’Anna tinha os camundongos, que ele selecionava para resposta imune. O camundongo que produzia bastante anticorpo tem pouca heparina na pele. E o que fazia pouco anticorpo tem muita heparina. E mais, as fêmeas têm o dobro de quantidade dos machos. Mostramos até a distribuição ligada ao sexo. Foi um trabalho muito legal. A gente viu que isso estava relacionado a mecanismos de defesa do organismo contra patógenos. Houve um experimento em que demos endotoxina e aquele camundongo que produzia muito anticorpo morria rapidamente. E o nosso amigo que não sabe fazer anticorpo sobrevive. Aí chegamos na heparina de invertebrados. O vôngole, que você come na macarronada, está repleto de heparina e com a mesma distribuição tecidual dos vertebrados, substituindo pulmão por brânquia. Nosso laboratório fez a árvore filogenética dos glicosaminoglicanos. Heparina e heparam são os dois carros-chefes do laboratório.
Em que ponto está essa pesquisa?
Em relação ao heparam sulfato, temos um foco muito grande com o papel dele no endotélio. Porque o endotélio é um sistema per si antitrombótico, porque o sangue passa obrigatoriamente ali. Heparam, heparina e os nossos compostos agora viraram vedetes, há até um exagero. A gente tem muita colaboração dentro do Brasil e na nossa universidade. Tenho orgulho disso. Muitos estudantes da medicina e médicos estão aqui desenvolvendo seus trabalhos. Tenho colaboração com a oftalmologia. O estudante que fez o doutorado comigo ganhou um prêmio internacional, depois foi para o New England Eye Institute e Tufts Medical School. E hoje é médico assistente da Escola Paulista de Medicina e professor assistente da Tufts Medical School. Mostramos, num modelo que ele montou de neovascuralização da coroide, o papel de um glicosaminoglicano que extraímos do descarte da produção de camarão como inibidor de angiogênese. Estou trabalhando com câncer via angiogênese. Tenho colaboração com a ortopedia. Também com a plástica, a própria morfologia, a nefrologia, a cirurgia cardíaca, a urologia, entre outras.
Quantos pesquisadores já formou?
Quase uma centena, entre mestres e doutores, sem contar os pós-docs e iniciação científica. Vários que fizeram só mestrado comigo estão em laboratórios de empresas. Os doutores estão em laboratórios de pesquisa e universidades espalhados pelo Brasil e no exterior. É bom ver que estão tendo sucesso e te superando. Vibrei quando a Selma Jerônimo, que fez o mestrado e o doutorado comigo, publicou recentemente na Nature Genetics. Comentei: “A filha supera a mãe”. O trabalho tem coautores internacionais, mas os experimentos são do laboratório da Selma no Rio Grande do Norte. Acho que isso é uma herança.