Pesquisadores do Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP) e da empresa paulistana Politron desenvolveram e construíram um novo amplificador de ondas de radiofrequência que deverá funcionar no principal laboratório de fusão nuclear controlada da atualidade, o Joint European Torus (JET), ou Comitê Europeu Toroidal, mantido pela União Europeia na cidade de Culham, no Reino Unido. O nome do laboratório vem da câmara da máquina que tem forma toroidal, semelhante a uma câmara de pneu, ambas com um furo no meio.
A fonte de radiofrequência está sob a responsabilidade da parceria entre pesquisadores da USP, da Escola Politécnica Federal de Lausanne (EPFL), na Suíça, e do Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT), nos Estados Unidos. Eles constataram que uma fonte com amplo espectro de frequência, flexibilidade e robustez necessária para satisfazer as condições extremamente estritas de operação no JET não existia no mercado mundial. As usinas de fusão nuclear são a promessa de produção de energia elétrica sem deixar resíduos radioativos e com menos probabilidade de acidentes. O sistema é diferente do atual, de fissão nuclear, que ainda gera desconfiança em relação à preparação de seu combustível e do armazenamento do lixo atômico. Na fissão, a reação nuclear continua mesmo com o reator desligado. Para atingir a tecnologia necessária a uma usina nuclear de fusão comercial até meados deste século, vários experimentos estão sendo realizados no mundo.
O amplificador de ondas de rádio é essencial nesse processo e a única indústria procurada por essa parceria internacional que se interessou em desenvolver o equipamento foi a Politron, que agora está elaborando uma patente da invenção com a USP. “É um caso paradigmático de colaboração entre universidade e empresa para inovação”, diz Ricardo Galvão, professor e coordenador do Laboratório de Física de Plasmas da USP. Em 2014 será iniciada a fase mais avançada de medições e capacitação de todo o sistema do JET e os amplificadores são componentes essenciais. “Nosso aparelho opera em condições não atendidas por equipamentos comerciais”, diz Galvão. Fundada em 1950, a Politron foi a pioneira no país no desenvolvimento de máquinas geradoras de ondas de radiofrequência, usadas nas linhas de produção das mais diversas indústrias, de calçados a mineração.
A empresa é de médio porte e exporta para toda a América Latina. Para Maria de Oliveira, diretora administrativa, a empresa vem sofrendo nos últimos anos com a concorrência chinesa, que inundou o mercado com máquinas de qualidade relativamente inferior fornecidas pela metade do preço no mercado brasileiro. Como é impossível concorrer em escala global, a Politron procura nos últimos anos oferecer produtos para clientes com necessidades específicas. “Já produzimos máquinas sob medida para laboratórios de várias universidades brasileiras como UFRJ [Universidade Federal do Rio de Janeiro], UFMG [Universidade Federal de Minas Gerais], Unicamp [Universidade Estadual de Campinas], USP e UFSCar [Universidade Federal de São Carlos]”, conta Maria. “O desafio é construir um amplificador que sempre funcione dentro das especificações”, explica o engenheiro Alessandro de Oliveira Santos, gerente de pesquisa e desenvolvimento da empresa, que abraçou o projeto por dois anos. O amplificador é resultado de um convênio firmado em 2009 entre o Brasil e a Comunidade Europeia de Energia Atômica (ver Pesquisa Fapesp nº 186).
Mercado potencial
Entre setembro e outubro deste ano, a engenheira britânica Margaret Graham, do JET, esteve no Brasil e trabalhou com a equipe da USP e da Politron na avaliação final da versão industrial do amplificador. “Os testes foram muito bem-sucedidos”, ela contou. “Só faltam alguns pequenos detalhes que acertaremos na Inglaterra.” No dia 29 de outubro, Francesco Romanelli, diretor do JET, confirmou por um memorando que o laboratório inglês estava pronto para receber o amplificador e pedia formalmente o aparelho à USP. “O amplificador e mais sete outras unidades serão enviadas posteriormente ao laboratório europeu”, diz Galvão. A expectativa da Politron e dos pesquisadores da USP é que, caso corra tudo bem com as experiências na Inglaterra, outros laboratórios de fusão no mundo se interessem em adquirir os novos amplificadores. Principalmente o reator experimental termonuclear internacional (Iter), oito vezes maior que o JET, em construção desde 2007 em Cadarache, na França. O projeto é financiado por um consórcio formado por União Europeia, China, Coreia do Sul, Estados Unidos, Índia e Japão. As obras do Iter estão atrasadas e a previsão é que ele fique pronto em 2020.
O combustível dos reatores de fusão é formado por dois tipos de hidrogênio pesado, o deutério, que pode ser extraído da água do mar, e o trítio, produzido a partir de lítio. Uma mistura de deutério e trítio é injetada em um tokamak – uma máquina inventada pelos soviéticos nos anos 1960 e que vem sendo aperfeiçoada para ser o reator das novas usinas nucleares. Dentro da câmara da máquina, o hidrogênio é aquecido até seus elétrons se libertarem dos núcleos atômicos, formando um gás eletricamente carregado, chamado de plasma. Campos magnéticos aprisionam o plasma dando voltas no toro, impedindo que ele esfrie e danifique a parede da câmara ao tocá-la (ver no infográfico abaixo). Se a temperatura do plasma alcançar os 150 milhões de graus Celsius (10 vezes mais que a temperatura do centro do Sol), os núcleos de deutério e trítio começam a se fundir depois de colidirem, produzindo hélio e nêutrons, ambos altamente energéticos.
Os núcleos de hélio permaneceriam dentro do plasma, ajudando a aquecê-lo e sustentando mais reações de fusão, enquanto os nêutrons, por serem imunes ao campo magnético, escapariam, colidindo com as paredes do Tokamak e produzindo o calor para mover as turbinas de um gerador elétrico. A fusão seria mais segura que a fissão porque, como o plasma esfria muito rápido, a reação é interrompida imediatamente com o desligamento dos campos magnéticos. Entretanto há muitos desafios tecnológicos a serem superados para realizar o conceito da fusão nuclear.
Lenha úmida
O JET possui o maior Tokamak já construído, capaz de confinar 80 metros cúbicos de plasma. Em operação desde 1983, conseguiu a primeira reação de fusão controlada da história, em 1991, que durou apenas alguns segundos. A reação de fusão ainda não persiste o suficiente para gerar mais energia elétrica do que consome. “É como fazer uma fogueira com lenha úmida”, compara Galvão. “Assim como é preciso vencer toda a umidade para que a própria energia do fogo sustente a combustão da madeira, os núcleos de hélio precisam permanecer no plasma por tempo suficiente para que a própria energia da reação mantenha o plasma aquecido. Para que isso ocorra será necessário aumentar o tamanho da ‘fogueira’ de plasma.”
Ana Paula CamposA equipe de Galvão colabora desde 2011 com o JET no projeto de pesquisa, iniciado pelos suíços e pelo MIT, para estudar um tipo de onda que se propaga no plasma usado na fusão, as ondas Alfvén. A preocupação maior são aquelas produzidas pelo movimento dos núcleos de hélio (partículas alfa) criados na fusão. Não se sabe ao certo quanto tempo duram essas ondas e o quanto elas podem atrapalhar a continuidade das reações no JET. Ao excitar as ondas Alfvén, as partículas alfa perdem energia, esfriando o plasma e dificultando a continuidade das reações de fusão. Os pesquisadores produzem as ondas Alfvén por meio de ondas de radiofrequência no plasma. Desde 2009, a equipe suíça da EFPL trabalha em melhorias de um sistema de oito antenas de radiofrequência no interior do JET, que servem tanto para gerar ondas Álfven quanto para detectá-las. Porém os pesquisadores da USP notaram um problema grave no sistema. O sinal de radiofrequência fornecido às antenas era gerado por um amplificador comercial por meio de um cabo de 100 metros. As simulações e testes feitos pela equipe de Galvão verificaram que, ao variar a frequência, as ressonâncias naturais da linha de transmissão provocavam sinais refletidos de alta amplitude que forçavam o desligamento do amplificador.
“O sistema antigo não tem como alimentar as antenas”, explica o físico ucraniano Leonid Ruchko, que trabalha no Brasil com Galvão desde 1995. Baseado em soluções que criou para as experiências com ondas Alfvén da equipe brasileira realizadas no tokamak existente na USP em São Paulo, Ruchko criou um novo conceito de amplificador, baseado em transistores de alta velocidade e capaz de amplificar uma faixa de radiofrequências, de 10 quilohertz a 1 megahertz. A rapidez e a robustez do amplificador impedem que ele seja afetado por pulsos de alta tensão refletidos. “Ele tem uma boa proteção contra reflexão”, diz o físico. Ruchko propôs que cada uma das oito antenas fosse alimentada por um amplificador. Cada uma geraria um pulso curto e preciso de onda. Controlando a forma e duração desses pulsos por computador, seria possível combiná-los para produzir dentro do plasma as ondas Alfvén com as propriedades desejadas.
Depois do conceito de Ruchko e do protótipo construído pela equipe da USP ser aprovado, começou a procura por uma empresa que resultou na aprovação da Politron e no financiamento do projeto pela FAPESP e Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. O custo total do equipamento foi de R$ 150 mil. “Tornar operacional o projeto do Leonid para conseguir que o equipamento funcionasse com total segurança, imune a sinais refletidos, foi excepcional. É essa robustez que vale uma patente”, diz Santos.
Projeto
Núcleo de excelência em física e aplicações de plasmas – FAPESP-MCT/CNPq-pronex-2011 (nº 2011/50773-0); Modalidade Projeto Temático; Coord. Ricardo Galvão/USP; Investimento R$ 1.633.433,66 e US$ 705.552,82 (FAPESP).