Fabio OtuboOs dois desenhos animados que Ghislain Saunier mostrou a seus voluntários num experimento feito em 2008 na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) não eram nenhuma obra de arte. Com alguns segundos de duração, cada sequência de imagens mostrava 10 pequenos círculos brancos se deslocando sobre um fundo preto. Em uma delas, o movimento dos círculos formava figuras que lembram uma pessoa caminhando – os círculos brancos, na realidade, marcavam as articulações das pernas, dos braços e do tronco de alguém filmado enquanto andava. Na outra, os círculos se moviam de maneira embaralhada.
Os dois filmes, criados por Saunier durante seu doutorado no laboratório da neurocientista Cláudia Vargas na UFRJ, foram exibidos dezenas de vezes, em ordem aleatória, a 16 participantes do estudo. Os voluntários assistiam às animações enquanto um aparelho de eletroencefalografia registrava a atividade elétrica do cérebro. Os participantes em geral reconheciam a primeira sequência de imagens rapidamente, mas tinham dificuldade de dar sentido ao que viam no segundo filme. Com esse experimento, Saunier e Vargas tentavam descobrir se o processamento cerebral das duas imagens diferia significativamente. “Um debate-chave da neurociência é entender como o cérebro codifica e segmenta os objetos em uma cena visual por meio da combinação dos atributos que os compõem”, comenta Sergio Neuenschwander, pesquisador da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) que estuda a resposta de pequenos conjuntos de neurônios de animais expostos a diferentes estímulos visuais.
Hoje é cada vez mais comum experimentos como esse, que começam com o registro da atividade cerebral de animais e de voluntários em laboratório, prosseguirem em uma simples sala de reuniões onde neurocientistas, matemáticos e especialistas de outras áreas discutem, com o auxílio de papel e caneta, a melhor forma de processar, analisar e explicar os dados. Um prédio de três andares no Instituto de Matemática e Estatística da Universidade de São Paulo (IME-USP) tornou-se nos últimos anos a sede de uma rede multidisciplinar que funciona nesses moldes: o Centro de Neuromatemática ou NeuroMat, um dos 17 Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid) financiados pela FAPESP (ver Pesquisa FAPESP nº 208).
Coordenado pelo matemático Antonio Galves, o NeuroMat reúne matemáticos, neurocientistas, médicos, físicos, cientistas da computação e estatísticos com um objetivo ambicioso: desenvolver uma nova teoria geral do cérebro, capaz de explicar como a atividade coordenada de um sistema composto por dezenas de bilhões de neurônios e outras células pode dar origem a comportamentos complexos que permitem interagir com um ambiente em constante transformação. Além de gerar novas formulações abstratas para fenômenos como a neuroplasticidade (capacidade de as células cerebrais se reconectarem), essa linha de pesquisa pode gerar impactos clínicos e aprimorar os métodos de avaliação e tratamento de pessoas com lesões no sistema nervoso.
Em um workshop realizado em janeiro deste ano no NeuroMat, Vargas, uma das pesquisadoras principais desse centro, e seus colaboradores no projeto apresentaram a análise mais recente do experimento iniciado em 2008. Essa análise usou ferramentas de uma área da matemática conhecida como teoria dos grafos e permitiu começar a observar como diferentes áreas do cérebro interagem nas duas situações do teste: ao assistir ao filme que representava o movimento biológico (pessoa caminhando) e ao ver a animação do movimento não biológico (círculos embaralhados).
Depois das sessões dos filmes foram necessários anos de trabalho, usando estratégias diferentes de interpretação dos dados, até se chegar aos resultados atuais, apresentados também em janeiro na revista PLoS One. Os sinais elétricos coletados por Saunier não permitiram identificar de imediato diferenças significativas entre o funcionamento do cérebro durante a exibição dos filmes. Vargas e Saunier – em colaboração com os pesquisadores Thierry Pozzo, Elisa Carvalho Dias, José Magalhães de Oliveira e Eduardo Martins – conseguiram avanços ao somarem os registros feitos pelos 20 eletrodos em todas as vezes em que os participantes assistiram a um dos filmes.
Essa estratégia revelou haver um padrão de ativação cerebral ligeiramente distinto associado a cada tipo de movimento – biológico e embaralhado. No entanto havia limitações.
“Essa forma de analisar os dados gerava uma descrição fragmentada da atividade neuronal, eletrodo por eletrodo, sem oferecer uma visão sistêmica”, comenta Vargas. Mas não tornava possível inferir como as diferentes regiões cerebrais interagiam entre si em cada situação. O desafio, então, era desenvolver um modo de medir a interação entre as áreas cerebrais.
Por meio do NeuroMat, Vargas e seus colaboradores estabeleceram uma parceria com o físico Daniel Fraiman, da Universidade de San Andrés, em Buenos Aires, especialista em processamento de sinais eletrofisiológicos cerebrais. Para interpretar os dados, Fraiman adaptou para a eletroencefalografia um método antes usado com dados de ressonância magnética. Essa nova estratégia usa ferramentas da teoria dos grafos, que estuda as maneiras como os pontos ou nós de uma rede podem se conectar. A ideia central é considerar os eletrodos como vértices de um grafo e unir por arestas os pares de eletrodos que registrarem sinais com alta correlação numa certa janela de tempo.
Dessa maneira, foi possível construir grafos representando como as áreas do cérebro associadas à percepção e ao controle dos movimentos do corpo conversavam entre si e interpretavam as animações do experimento original. “Essa é uma maneira inovadora de usar a eletroencefalografia para mapear grafos de interações que refletem a atividade de uma rede cerebral a partir de estímulos visuais”, afirma Vargas, coordenadora do grupo que publicou os resultados na PLoS One.
“A neurociência contemporânea é cada vez mais quantitativa”, afirma Sidarta Ribeiro, diretor do Instituto do Cérebro da UFRN e membro do NeuroMat, que conta com a participação de grupos da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), da Universidade Federal do ABC (UFABC), da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), do Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada (Impa) e de centros internacionais. “Temos a necessidade de interagir com matemáticos e estatísticos do mais alto nível”, disse Ribeiro.
Teoria dos grafos
O estudo quantitativo da organização do cérebro – das ligações entre os neurônios às conexões entre as diferentes regiões cerebrais – avançou na última década graças à teoria dos grafos e a outras áreas da matemática cujo desenvolvimento faz parte do projeto científico do NeuroMat. A teoria dos grafos permitiu analisar a estrutura das chamadas redes funcionais do cérebro – conjuntos de partes distintas ativadas simultaneamente durante uma atividade, como a percepção de estímulos visuais. A aplicação dessa teoria a imagens de ressonância magnética funcional (fMRI) já produziu evidências de que as redes funcionais do cérebro parecem ter uma estrutura do tipo “mundo pequeno”, em que dois conjuntos quaisquer de neurônios se conectam por meio de alguns poucos intermediários, e possuem apenas algumas dezenas de hubs, áreas muito mais conectadas com o restante da rede do que as demais. “Mas os mapas que temos das conexões do cérebro ainda têm uma resolução muito baixa, comparável à dos mapas-múndi que tínhamos no século XVI”, diz o neurologista Marcio Balthazar, da Unicamp, que pesquisa redes funcionais de pacientes com a doença de Alzheimer no Instituto de Pesquisa sobre Neurociências e Neurotecnologia, outro Cepid voltado para a neurociência, coordenado pelo neurologista Fernando Cendes, da Unicamp (ver Pesquisa Fapesp nº 215). Galves discorda dessa analogia. “A comparação com um mapa-múndi não é feliz, pois, no caso das navegações, a costa além-mar efetivamente existia; no caso dos modelos de conexão do cérebro, trabalhamos com construções teóricas destinadas a representar em um nível mais elevado de abstração um conjunto de fenômenos observados experimentalmente”, explica.
Gráfico: Ana Paula Campos / Ilutsração: Fabio OtuboAs redes funcionais ligadas aos estímulos visuais estudados pela equipe de Vargas, por exemplo, só puderam ser observadas quando os pesquisadores conseguiram representar os dados de eletroencefalografia na forma de grafos. Assim, os pesquisadores desenvolveram critérios para avaliar como o sinal de cada um dos 20 eletrodos se relacionava com os demais a cada instante.
Desse modo, conseguiram construir sequências de grafos, de modo que cada um deles representava a rede de interações entre os eletrodos em intervalos de 300 milissegundos. A simples visualização dessas redes, porém, revelou que elas eram altamente variáveis. Não somente variavam entre os indivíduos e ao longo do tempo, mas também variavam entre as apresentações do mesmo estímulo para um mesmo indivíduo (ver infográfico).
Para encontrar diferenças significativas entre as redes ativadas durante a exibição de cada vídeo, foi necessária uma análise quantitativa das conexões de cada ponto da rede (nó), medindo, por exemplo, se alguns destes eram mais conectados com seus vizinhos ou com o restante da rede do que outros na condição embaralhada em comparação à condição em que o voluntário era capaz de identificar a imagem biológica (boneco caminhando).
Uma das conclusões da equipe foi que, quando os voluntários viam o desenho dos círculos embaralhados, os sinais cerebrais captados pelo eletrodo F7, instalado um pouco acima do meio do caminho entre o olho e a orelha esquerdos, se correlacionavam mais fortemente com outros eletrodos do que no caso em que os voluntários assistiam ao desenho da pessoa caminhando. Na rede funcional do movimento embaralhado também se destacava a atividade de uma região do córtex visual em volta do eletrodo O2, colocado no lado direito da parte de trás da cabeça, que se comunicava intensamente com regiões vizinhas. É como se o cérebro usasse um modelo mais complexo quando não consegue dar sentido facilmente àquilo que está acontecendo. A rede funcional ativada, ao assistir ao desenho da pessoa caminhando, em comparação com a recrutada durante a visualização dos pontos embaralhados, era mais concentrada em torno dos eletrodos Pz e P3, que correspondem genericamente a uma região cerebral que realiza a integração entre a visão e os movimentos corporais.
Lacunas e soluções
A cooperação entre neurocientistas e matemáticos no experimento iniciado por Saunier em 2008 na UFRJ continua, agora com o desafio de encontrar modelos matemáticos que expliquem as variações e as constâncias das sequências de grafos observadas pela equipe. “Apesar de muito variáveis, as sucessões de grafos obtidas durante o processamento do movimento biológico deve ter características estáveis que são distintas daquelas observadas no processamento do movimento não biológico”, diz Galves. “A questão científica que se coloca é como identificar o conjunto de características estáveis dentro da sucessão variável de grafos obtidos.”
O próximo passo, ele conta, seria aplicar um procedimento estatístico para selecionar os modelos matemáticos que melhor expliquem as sequências de grafos. Ele e seus colaboradores dizem, porém, que esses modelos matemáticos ainda não existem e terão de ser desenvolvidos. A equipe do NeuroMat imagina que esses novos modelos são o que os matemáticos chamam de processos estocásticos, evoluções temporais submetidas à influência do acaso. Esses processos representam a atividade global de um sistema com muitas componentes interagindo entre si ao longo do tempo.
Galves e colaboradores internacionais, incluindo a matemática Eva Löcherbach, da Universidade de Cergy-Pontoise, na França, têm trabalhado no desenvolvimento de uma nova classe de processos estocásticos que permitiriam encontrar essas regularidades em sistemas interativos complexos. Em um artigo de 2013 no Journal of Statistical Physics, Galves e Eva introduziram, de modo simplificado, uma nova classe de processos estocásticos, generalizando propriedades de outras classes já conhecidas, como o fato de um próximo passo em uma cadeia de eventos ser influenciado por um número variável de passos anteriores, e que apresenta comportamentos qualitativos comparáveis com resultados empíricos da neurociência.
A classe de modelos em desenvolvimento no NeuroMat, explica Galves, não se propõe a oferecer descrições detalhadas do funcionamento do cérebro, mas a encontrar regularidades nas interações neuronais que não são perceptíveis na observação dos dados experimentais. Segundo o matemático, o objetivo é construir um novo campo da matemática. “Há uma visão ingênua de que o que falta para a neurociência são mais dados e poder de cálculo, mas não é só isso”, afirma o coordenador do NeuroMat. “Na verdade, falta um quadro conceitual para expressar formalmente os fenômenos neurobiológicos.”
Esse e outros trabalhos foram discutidos pelos integrantes do NeuroMat em São Paulo, em janeiro, durante o workshop em que apresentaram resultados recentes de suas pesquisas e planejaram as próximas atividades. Um dos participantes, o neurologista Leonardo Cohen, do Instituto Nacional de Doenças Neurológicas e Derrame, dos Estados Unidos, considera a proposta do NeuroMat “muito original”. Cohen é um dos conselheiros científicos do NeuroMat e falou de seus trabalhos recentes sobre o reaprendizado de movimentos perdidos após um derrame. “O NeuroMat é bem diferente de iniciativas em andamento nos Estados Unidos e na Europa.” Cohen considera uma vantagem do NeuroMat não ter como objetivo central o acúmulo de dados biológicos, como é o do Projeto de Mapeamento da Atividade Cerebral, que pretende mapear a atividade de cada um dos 86 bilhões de neurônios do cérebro humano. “Em um projeto assim, o trabalho dos neurocientistas, engenheiros e cientistas da computação já foi predeterminado, todos já sabem o que precisavam fazer”, ele explica. “Já o NeuroMat é como uma escola, onde as pessoas estão começando a explorar ligações que não sabiam que existiam entre as suas especialidades.”
A plasticidade neuronal
No workshop, Vargas e Cohen, um dos pioneiros do estudo da neuroplasticidade em pacientes recuperando-se de lesões cerebrais, discutiram possibilidades de parceria entre suas equipes. “Queremos entender as regras da neuroplasticidade, o que o rearranjo das redes funcionais torna possível ou impossível”, diz Vargas. “Para isso precisamos de modelos matemáticos que levem em conta que o cérebro não é determinista; por exemplo, nossos modelos e experimentos precisam considerar que, a cada repetição de um movimento, o cérebro ativa uma rede parecida com a anterior, mas nova em alguns aspectos, o que requer um novo instrumental conceitual e metodológico.” Galves acredita que a chave para descrever matematicamente a plasticidade neuronal é aprender a representar essa evolução através de processos estocásticos que mostrem os grupos de interações entre regiões cerebrais após lesões ou durante o aprendizado motor.
Vargas atualmente usa a eletroencefalografia e a estimulação magnética transcraniana, além de escalas de avaliação funcional, para acompanhar no Instituto de Neurologia Deolindo Couto, da UFRJ, a reabilitação de 25 pacientes com lesões no plexo braquial, o feixe de nervos que sai da medula espinhal e inerva os braços – essas lesões são comuns nos motociclistas, em especial motoboys, que rompem alguns ou todos os nervos, perdendo parcial ou totalmente a sensibilidade e os movimentos de um dos braços.
Já se observou que alguns pacientes recuperam parte dos movimentos após uma cirurgia de restauração dos nervos e intensa fisioterapia. Mas os pesquisadores querem saber como as redes funcionais se adaptam ao rearranjo de nervos e se, a partir dessas novas informações, seria possível melhorar o processo de reabilitação.
Médicos, enfermeiros e fisioterapeutas associados ao projeto colaboram com os neurocientistas para coletar medidas funcionais dos pacientes e alimentar um grande banco de dados desenvolvido por outro grupo do NeuroMat, coordenado pela cientista da computação Kelly Braghetto, do IME-USP.
Esse banco de dados é hoje central para o NeuroMat. Os dados, etiquetados e organizados, poderão ser compartilhados com outros pesquisadores e submetidos a propostas originais de análise. Os pesquisadores do NeuroMat esperam aplicar a mesma abordagem nas unidades da Rede de Reabilitação Lucy Montoro, dirigida pela fisiatra Linamara Battistella, da USP, onde pacientes com lesões cerebrais causadas por derrames já participam de estudos clínicos.
Um dos projetos compara a recuperação dos movimentos dos braços de pacientes tratados com duas técnicas de reabilitação. Os estatísticos Jesús García e Verónica González-López, ambos da Unicamp e ligados ao NeuroMat, colaboram para eliminar redundâncias nos questionários de avaliação clínica e otimizar as escalas de avaliação da capacidade motora dos pacientes.
A evolução dessa capacidade também vem sendo monitorada com medições da atividade cerebral por eletroencefalografia e estimulação magnética transcraniana. “As medidas permitem entender melhor as mudanças funcionais que ocorrem no sistema nervoso e correlacionar essas modificações com a melhora clínica dos pacientes com AVC”, explica o neurologista Marcel Simis, um dos pesquisadores do projeto.
Projeto
Centro de Pesquisa, Inovação e Difusão em Neuromatemática – NeuroMat (nº 2013/07699–0); Modalidade Centros de Pesquisa, Inovação e Difusão (Cepid); Pesquisador responsável Jefferson Antonio Galves – IME/USP; Investimento R$ 11.755.168,93 (FAPESP) para todo o Cepid.
Artigos científicos
FRAIMAN, D. et al. Biological motion coding in the brain: analysis of visually driven EEG functional networks. PLoS One. v. 9, n. 1. jan. 2014.
GALVES, A. e LÖCHERBACH, E. Infinite systems of interacting chains with memory of variable length – A stochastic model for biological neural nets. Journal of Statistical Physics. v. 151, n. 5. jun. 2013.