Um estudo realizado por pesquisadores da Inglaterra e publicado na revista Scientometrics sugere que a produção científica dos países ricos e em desenvolvimento passou por um conjunto de mudanças nos últimos 30 anos não detectado pelos indicadores gerais. O trabalho, assinado por Slavo Radosevic e Esin Yoruk, professores do University College London (UCL), indica que o peso de grupos de disciplinas no total de artigos publicados por nações de diversas regiões do planeta sofreu alterações entre os anos 1980 e 2000, ora habilitando os países para novos desafios, ora criando desvantagens (veja quadro). O bloco de países da América do Norte, formado por Estados Unidos e Canadá, perdeu participação relativa tanto em número de artigos quanto em citações nas chamadas ciências aplicadas (como ciência da computação e engenharias), mantendo, contudo, sua proeminência em ciências da vida e ciências sociais. A Europa Ocidental ganhou participação em ciências aplicadas no período, enquanto os países do Oriente Médio regrediram em ciências sociais.
“Novas áreas científicas trazem com elas novas oportunidades de crescimento e conexões com outros campos já estabelecidos”, diz Slavo Radosevic. “Os países estão constantemente lidando com o dilema que existe entre apoiar excelência científica em áreas antigas e, ao mesmo tempo, seguir novas tendências e garantir a relevância dos seus sistemas de ciência em áreas emergentes.” O estudo mostra, ainda, que nem sempre caminham juntas as trajetórias referentes à quantidade e à qualidade da produção científica: a América Latina, por exemplo, perdeu participação no total mundial em número de artigos em ciências aplicadas, mas manteve sua posição em citações. Já a Ásia perdeu peso relativo nas citações de artigos de ciências da vida – aproximando-se do desempenho historicamente desfavorável em quantidade de artigos nesse campo.
Para chegar a essas conclusões, os autores do trabalho exploraram dados referentes ao número de artigos publicados e de citações obtidas em todas as áreas do conhecimento entre 1981 e 2011 de várias regiões do mundo, extraídos do National Science Indicators, da empresa Thomson Reuters. Em seguida, eles se concentraram no desempenho de cada região em 21 disciplinas divididas em quatro áreas: ciências da vida, ciências básicas, ciências sociais e ciências aplicadas. “O perfil disciplinar é historicamente enraizado e pouco se alterou no decorrer das décadas”, afirma Radosevic. Ainda assim, a ampliação de colaborações científicas teve grande impacto no desempenho de países emergentes, como os Brics (Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul). “Eles passaram a participar mais das atividades científicas no mundo”, diz ele.
Na América Latina, Radosevic destaca a boa atuação do Brasil e da Argentina nas ciências da vida, resultado de políticas de incentivo à pesquisa na área. A região também conseguiu ultrapassar as taxas médias de crescimento mundial em número de publicações em ciências básicas e nas engenharias. Na Ásia, ele observa, o bom desempenho em áreas tecnológicas, como engenharia dos materiais, é influenciado pelos investimentos realizados nos últimos anos pela China e pela Coreia do Sul. “O expressivo aumento das atividades científicas na China poderá resultar na liderança científica em ciências aplicadas”, diz Radosevic.
Segundo o pesquisador, para que países como Brasil e China assumam posições de liderança no futuro, é preciso que a produção científica gere conhecimentos que colaborem para o crescimento econômico. Ele menciona o exemplo da ex-União Soviética, que sempre privilegiou as ciências básicas. Com o fim do regime comunista na região, a pesquisa básica sobreviveu graças ao reconhecimento internacional das competências científicas desses países, que passaram a colaborar com o Ocidente. Mas a persistência nas ciências básicas, sem avanço nas áreas aplicadas, não é tão promissora em termos econômicos, avalia o pesquisador.
Radosevic explica que a América do Norte e parte da Europa estão se especializando em ciências da vida, campo do conhecimento que ganha importância crescente. “O perfil disciplinar tende a se alterar conforme novas áreas do conhecimento emergem e ganham dinamismo, como hoje é o caso das ciências da vida e como foi, no passado, com a física”, diz. Em um período de 30 anos, apenas uma região passou a ser forte em uma área em que anteriormente não tinha expressão: os 15 países da formação original da União Europeia (EU15) ganharam vantagem em citação, a partir de 2001, em ciências da vida e ciências aplicadas.
“O ganho de vantagem que países europeus tiveram em ciências da vida pode ser decorrência do crescimento da clínica médica na Europa continental”, diz Peter Schulz, professor do Instituto de Física Gleb Wataghin da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), que em 2012 publicou também na revista Scientometrics um artigo sobre a evolução do perfil dos sistemas de ciência e tecnologia de diversos países (ver Pesquisa FAPESP nº 198). Nesse estudo, Schulz e o professor Edmilson Manganote, também da Unicamp, mostram que os Estados Unidos e o Reino Unido seguem um padrão disciplinar muito semelhante, com a medicina respondendo por um quarto da produção científica. Já nos países da Europa continental a distribuição é diferente, com uma participação um pouco maior de física e química – e a medicina variando de 18% (Espanha) a 30% (Áustria).
Para verificar as mudanças do perfil disciplinar das regiões, os autores da pesquisa utilizaram um sistema chamado Revealed Scientific Advantage (RCA), desenvolvido na década de 1990 para avaliar o desempenho de países em relação ao número de artigos publicados. Quando o RCA é maior que 1, a região é forte em determinada disciplina. Quando é menor que 1, é mais fraca que a média dos países. O problema é que o RCA leva em consideração apenas o aspecto quantitativo, deixando de lado as citações. Por isso, o grupo desenvolveu dois coeficientes novos: o índice de vantagem comparativa para artigos publicados (RCAPAP) e o índice de vantagem comparativa para citações (RCACIT). “O estudo acerta ao fazer essa distinção, colocando lado a lado as variações em publicação e citação. Vistas isoladamente, elas podem dar uma falsa impressão do desempenho de uma região”, salienta Schulz.
Radosevic conta que foi necessário fazer a distinção no perfil disciplinar em termos de quantidade e qualidade para identificar quais são as regiões que mais produzem ciência de ponta no mundo. Regiões com índices de publicação altos, mas com impacto relativo mais baixo, como América Latina e Ásia, caracterizam-se pela maior capacidade de absorver conhecimento utilizando modelos desenvolvidos em outros países. Já as regiões com índices de citação mais elevados são aquelas que estão na fronteira do conhecimento.
De um modo geral, a ciência feita em países em desenvolvimento ainda se caracteriza pela capacidade de absorver o conhecimento produzido em outras regiões. Há, é certo, nuanças. A América Latina, por exemplo, tem desempenho modesto na publicação de artigos em ciência básica, mas sempre esteve em vantagem na área em termos de citação, o que indica a qualidade dos trabalhos publicados. Mas, segundo o artigo, os centros produtores de conhecimento de fronteira, aqueles que produzem ciência de maior impacto, continuam sendo os mesmos de antigamente: os países da América do Norte e da Europa.
Com o avanço de novos atores, a América do Norte perdeu espaço relativo na ciência global ao longo dos anos. Hoje, o bloco é responsável por 51% das citações. Na década de 1980, o índice era de 61%. Essa redução não afetou o impacto relativo da pesquisa na região, que permaneceu estável nas décadas de 1980 e 1990 em 1,40 e subiu para 1,45 nos anos 2000. O impacto relativo é a razão entre os índices de citação e de artigos publicados. A América Latina, a Ásia e o Oriente Médio apresentam trajetórias comuns: aumento considerável do número de artigos publicados, acompanhado de crescimento em citações mais moderado, mas índices de impacto ainda baixos e estáveis.
Diferentemente da América do Norte, a Europa apresentou crescimento em número de artigos publicados e em citações. Já a participação da ex-União Soviética na ciência global experimentou mudanças sensíveis com o fim do regime comunista. Entre 1981 e 1989, era responsável por 7% dos artigos publicados no mundo e por 1,2% das citações. Entre 2001 e 2011, a taxa de publicação caiu para 3,4%, mas a de citação subiu para 1,5%.
Segundo os autores do estudo, a dominância da América do Norte e de parte da Europa como centros produtores de ciência de fronteira tende a permanecer inalterada. Para Elizabeth Balbachevsky, professora do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, essa situação pode ser transformada. “O processo de absorção e acumulação de conhecimento protagonizado por países como Brasil e China é também uma etapa de ampliação de recursos humanos e institucionais, necessários para que um salto de qualidade da pesquisa seja dado no futuro”, diz ela. Mas esse resultado não é automático. Ele depende da qualidade das políticas de ciência e tecnologia e de educação. A professora lembra que, nos anos 1990, um estudo realizado pelo professor Peter Scott, da Inglaterra, a pedido do então Ministério da Ciência e Tecnologia brasileiro, ganhou notoriedade ao mostrar que a produção da pesquisa brasileira era menor do que a da Bélgica. “Hoje o crescimento da ciência brasileira supera a média mundial. Isso prova que a geografia da ciência está mudando”, ressalta Elizabeth Balbachevsky.
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