AbiuroAbundante nas regiões do espaço onde se formam as estrelas, em cometas e em corpos celestes pequenos no sistema solar, o ácido fórmico é considerado um possível precursor de moléculas essenciais à vida. Físicos e biólogos acreditam que, quando interage com fontes de nitrogênio, como a molécula de amônia, ele possa contribuir para formar a glicina – o mais simples dos aminoácidos e um dos blocos químicos que compõem as proteínas, encontradas em todos os seres vivos. Mas ninguém sabe ao certo se a molécula de ácido fórmico sobreviveria no espaço o suficiente para se combinar com fontes de nitrogênio e formar aminoácidos. Se estiver desprotegida, parece que não: um estudo realizado por pesquisadores brasileiros em parceria com franceses e publicado neste ano na revista Monthly Notices of the Royal Astronomical Society indica que o ácido fórmico não resiste à ação direta dos raios cósmicos. Em testes que simularam as condições encontradas no espaço, o ácido fórmico foi degradado em água (H2O), monóxido de carbono (CO) e dióxido de carbono (CO2). Mais importante do que a ausência de moléculas maiores, o experimento indica que nessas condições ele não subsiste para participar de reações com outras substâncias.
O astrofísico Alexandre Bergantini, pesquisador da Universidade do Vale do Paraíba (Univap) e autor principal do artigo, conta que o estudo simulou o que aconteceria se raios cósmicos bombardeassem, durante 2 milhões de anos e na presença de água, essas pequenas moléculas pousadas sobre grãos de poeira de até 1 micrômetro, “menor do que o menor grão de poeira encontrado na Terra”, explica o pesquisador. No experimento realizado no Grande Acelerador Nacional de Íons Pesados (Ganil) da cidade de Caen, na França, Bergantini inseriu amostras de ácido fórmico com água em uma câmara de aço inoxidável – em que um equipamento especializado suga todo o ar num processo que pode demorar até uma semana para criar um ultravácuo em baixíssimas temperaturas, cerca de -260 graus Celsius (°C) – e as bombardeou com íons pesados como os de níquel, que viajam o Universo inteiro a altíssimas velocidades, simulando a ação dos raios cósmicos. “Poucos aceleradores de partículas trabalham com íons tão pesados”, explica Bergantini justificando a parceria formada para o estudo. No Brasil, não teria sido possível realizar os experimentos.
O trabalho do grupo da Univap é um descendente do famoso experimento realizado pelos norte-americanos Stanley Miller e Harold Urey na década de 1950. Num aparato vedado, eles submeteram água, metano, amônia e hidrogênio a descargas elétricas e ao longo de dias viram o líquido mudar de cor e verificaram o surgimento de aminoácidos, como a glicina, entre outros compostos orgânicos. Ao mostrar que moléculas que compõem a vida surgem de substâncias inorgânicas em condições extremas, o experimento deu origem a um campo de pesquisa que hoje dispõe de recursos de uma precisão provavelmente inimaginável para Miller e Urey, que punham os elementos em quantidade indeterminada e observavam, em parte a olho nu, o que acontecia. “Nossos experimentos são feitos com uma ou duas moléculas, em escala nanométrica, com dosagem de radiação precisamente medida e controlada”, explica Bergantini. Em seguida às reações, a espectrometria permite detectar exatamente quais moléculas surgiram e em que quantidade.
Nessa busca por detalhar a possível trajetória do ácido fórmico no espaço, os brasileiros obtiveram resultados de certa maneira surpreendentes. “Achamos que a água fosse servir como escudo, mas ela na verdade ajudou a destruir o ácido fórmico”, conta Bergantini. E essa deve ser a situação mais comum, já que a água está disseminada pelo espaço. Mas pode não ser tão fácil assim degradar as moléculas de ácido fórmico. É que nas nuvens onde é encontrado em maior abundância, o ácido fórmico pode estar mais protegido pela matéria que existe ali e não ser destruído tão prontamente – o que lhe daria mais tempo para reagir com compostos contendo nitrogênio e gerar moléculas bióticas.
Laboratório espacial
Para entender como a evolução química do Universo acontece e dá origem à vida, o astrônomo Sergio Pilling, orientador de doutorado de Bergantini, montou no último ano o Laboratório de Astroquímica e Astrobiologia (Lasa) na Univap, em grande parte com financiamento da FAPESP no âmbito do programa Jovens Pesquisadores. “Podemos simular simultaneamente os efeitos dos fótons de ultravioleta e dos elétrons do vento solar, reproduzindo de forma mais verossímil alguns fenômenos espaciais”, conta Pilling. “É possível ainda atingir temperaturas de -263 °C e simular o efeito da radiação espacial em amostras de interesse aeroespacial e aeronáutico.” O laboratório também é mantido com recursos do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) e da própria Univap.
Outros estudos feitos no laboratório recém-instalado em São José dos Campos vêm mostrando resultados diferentes quando ácido fórmico e ácido acético são expostos a luz ultravioleta e raios X, simulando a energia emitida pelo Sol e por outras fontes. “Estamos vendo a formação de outras moléculas além das mais óbvias como CO2”, adianta Bergantini sobre os resultados ainda preliminares.
A Agência Espacial Norte-americana (Nasa) anunciou recentemente que nos próximos 20 anos pretende confirmar se há vida no Universo além da terrestre. Pilling concorda com a estimativa. “Acredito que a humanidade está muito perto desse tipo de achado”, diz. Por meio das simulações feitas no Lasa, ele pretende contribuir para essa busca, feita também a partir da análise de amostras coletadas por sondas espaciais que têm pousado em corpos celestes ou de material coletado de meteoritos que caem na Terra e também por meio de sinais detectados por radiotelescópios. “Nossas pesquisas procuram acrescentar pistas sobre a formação e a origem da vida, uma vez que simulamos ambientes espaciais onde ocorre a formação de moléculas pré-bióticas como aminoácidos e bases nitrogenadas essenciais para a vida como conhecemos.”
Projeto
Síntese e degradação de espécies moleculares pré-bióticas em atmosferas planetárias, cometas e gelos interestelares simulados (nº 09/18304-0); Modalidade Jovem Pesquisador; Pesquisador responsável Sergio Pilling (Univap); Investimento R$ 459.004,82 (FAPESP).
Artigo científico
BERGANTINI, A. et al. Processing of formic acid-containing ice by heavy and energetic cosmic ray analogues. Monthly Notices of the Royal Astronomical Society. v. 437, n. 3, p. 2.720-27. 21 jan. 2014.