Léo RamosFoi a vontade de se tornar pesquisadora e fazer uma química voltada para entender o funcionamento da natureza que levou Vanderlan da Silva Bolzani a deixar a casa dos pais em João Pessoa, Paraíba, em meados dos anos 1970, rumo a São Paulo para fazer seu mestrado. “Vim com a cara e a coragem”, lembra Vanderlan, que anos mais tarde se tornaria professora do Instituto de Química da Universidade Estadual Paulista (Unesp) em Araraquara e pesquisadora internacionalmente reconhecida por seus trabalhos na área de química de produtos naturais. “Na época eu não trabalhava e, para manter uma filha em São Paulo, a família precisava ter dinheiro. Meus familiares fizeram uma reunião e meu pai falou que faria o maior sacrifício para me bancar nos primeiros meses e que depois eu deveria dar um jeito de me manter”, lembra a pesquisadora.
Formada em farmácia pela Universidade Federal da Paraíba, onde havia inicialmente cursado medicina, Vanderlan é filha de uma descendente de portugueses que se casou com um descendente de índios. Ela atribui o seu interesse pela química da natureza à herança genética paterna, consolidado durante a graduação, quando teve professores que despertaram sua paixão pela área da química que mais se aproxima da biologia.
Idade: |
64 anos |
Especialidade: |
Química de produtos naturais |
Formação: |
Universidade Federal da Paraíba (UFPB), graduação (1972); Universidade de São Paulo (USP), mestrado (1978) e doutorado (1982); Virginia Polytechnic Institute and State University, pós-doutorado (1992-1994) |
Instituição: |
Instituto de Química de Araraquara da Universidade Estadual Paulista (Unesp) |
Produção científica: |
198 artigos científicos, citados 2.377 vezes. Orientou 19 dissertações de mestrado e 20 teses de doutorado. Supervisionou 20 estágios de pós-doutorado |
Já na chegada a São Paulo, alguns sustos. O pesquisador que havia aceitado orientá-la no mestrado, Paulo de Carvalho, morreu vítima de um infarto fulminante e sua colega de quarto teve uma crise epiléptica. O apoio da família foi fundamental para que não desistisse naquele momento nem mais adiante, quando, fazendo o doutorado e com dois filhos pequenos, seu marido, o sociólogo Jorge Bolzani, sofreu um acidente vascular cerebral (AVC) aos 38 anos que o impossibilitou de trabalhar pelo resto da vida – ele morreu em 2011 aos 60 anos.
Essas e outras adversidades não acanharam essa “nordestina tímida”, que, sob a orientação de seu grande mestre, o químico Otto Gottlieb, um dos pioneiros em química de produtos naturais no Brasil, conquistou reconhecimento nacional e internacional, inclusive o Distinguished Women in Science, em 2011, conferido pela American Chemical Society (ACS) e pela International Union of Pure and Applied Chemistry (Iupac).
Além da dupla jornada como mãe (hoje também avó) e pesquisadora, Vanderlan tem forte atuação na política acadêmica, buscando ampliar a cooperação internacional e entre áreas da ciência e reduzir o ranço cultural que atrapalha a ascensão da mulher aos cargos de direção na academia. Ela foi presidente da Sociedade Brasileira de Química (SBQ) de 2008 a 2010 e é vice-diretora da Agência de Inovação da Unesp, onde coordena um grupo de pesquisadores que já investigaram cerca de 170 extratos de plantas e isolaram 640 substâncias, algumas com potencial interesse farmacológico.
A seguir, leia os principais trechos da entrevista concedida à Pesquisa FAPESP.
Qual o prêmio mais significativo entre os que você já recebeu?
O Distinguished Women in Science, um prêmio mundial, numa competição com mulheres de todos os continentes. Foram eleitas algumas de cada continente. Elas foram indicadas pelas sociedades científicas e por pesquisadores. Eu fui indicada pelo professor Adriano Andicopulo e por Alejandra Palermo, da Royal Society of Chemistry e mais colegas estrangeiros, entre eles Gerard Bringmann, da Universidade de Würzburg, na Alemanha, e Leslie Gunatilaka, da Universidade do Arizona, nos Estados Unidos, da área de produtos naturais.
Quando foi isso?
Em 2011, o Ano Internacional da Química, que também prestou uma homenagem às mulheres na ciência e comemorou o centenário do Nobel concedido a Marie Curie. Fui a única representante da América Latina numa premiação mundial para químicas e engenheiras químicas, sendo da área de produtos naturais. No Brasil, destaco a medalha Simão Mathias, também em 2011, destinada a pesquisadores que deram grande contribuição à química. Agora em 2014 recebi o Capes-Elsevier, em função da produção acadêmica. É um prêmio para mulheres de diversas áreas da ciência, e acho importante ter sido conferido a alguém de produtos naturais, porque na química, como nas outras ciências, é comum a competição de áreas que se acham mais relevantes do que outras.
Como surgiu seu interesse pela química de produtos naturais?
Deve ser uma herança atávica. Nasci em uma cidade muito pequena, próxima a João Pessoa, Santa Rita, que tinha uma indústria de tecelagem e mais nada. Minha mãe era de uma família que não era pobre. Meu pai, descendente de índio, muito pobre e muito inteligente, era mecânico de motores a diesel. Sem nunca ter feito um curso técnico, tinha quase o conhecimento de um engenheiro mecânico. Quando eu estava na fase de alfabetização, mudamos para Cabedelo, uma cidade portuária, e minha mãe decidiu que eu iria estudar numa colônia de pescadores, na praia Formosa – era linda, com um coqueiral enorme. A escola era na beira da praia e eu, muito curiosa, perguntava à professora por que o mar enchia e depois vazava. Ela dizia que a gente era muito criança para entender. Eu perguntava a mesma coisa à minha mãe e ela, muito católica, dizia que era coisa de Deus. Acho que assim começou meu gosto pela natureza.
Mas como isso a levou para a química?
Meu pai queria que todos os filhos se formassem. No ensino médio, escolhi o curso científico. Eu me identificava mais com medicina e meu pai ficou supervaidoso, imagine, ter uma filha médica! Em João Pessoa surgira o Colégio Universitário, semelhante aos colégios de aplicação, e quem passasse teria direito a um cursinho de graça. Passei. Minha mãe, à sua maneira, me ajudou muito para entrar na medicina. Ela bordava colchas, vestidos, fazia à mão bordados portugueses, para ajudar financeiramente o meu pai, e nessa fase bordava até de madrugada, numa cumplicidade materna para eu estudar até tarde.
E como foi cursar medicina na UFPB?
Fiquei decepcionada. As primeiras aulas, de fisiologia, de anatomia, eram muito teóricas, e eu queria prática. Ao mesmo tempo, no ciclo básico, fiquei fascinada com as aulas de bioquímica. No final do segundo ano, deixei o curso.
Houve influência dos professores em sua ligação com a bioquímica?
Eles foram muito importantes. Eu tinha um professor de hematologia, Jackson Medeiros, que falava da bioquímica e da química de uma forma tão empolgante que fiquei mais apaixonada pela química do que pela hematologia. Quando entrei em farmácia, me encontrei.
Sua família reclamou?
Só meu pai teve um pouco de resistência. Perguntou como eu ia deixar de ser médica para ser farmacêutica se eles não tinham dinheiro para eu montar uma farmácia. Para uma pessoa mais simples, sem muita informação, medicina, engenharia e direito são as carreiras de mais status.
Você já tinha claro que faria pesquisa?
Não, fiz análises clínicas, dei plantão em pronto-socorro, e para mim só se tornou claro que eu queria fazer pesquisa quando comecei a estudar farmacognosia, uma disciplina básica do curso de farmácia. Naquela época a universidade passava por transformações e vieram à Paraíba professores visitantes de química orgânica. Tive aulas com Lauro Barata, da Unicamp, que na época devia ser pós-doc na Universidade Federal do Rio de Janeiro [UFRJ], com Therezinha Tomassini, então professora na área de produtos naturais na UFRJ, e com Roberto Cisne, professor do Instituto Militar de Engenharia [IME] no Rio. Eram muito bons, falavam com muita paixão da química de plantas e aquilo despertou meu interesse. A tendência que eu já tinha se consolidou, então, na graduação.
Quando você decidiu vir para São Paulo?
Essa decisão também foi inspirada por meus mestres, entre eles um professor de análises clínicas, Wilmar Nunes de Brito, um dos poucos da UFPB que então tinham mestrado. Ele o fizera no Instituto de Química da USP [IQ-USP], orientado por Paulo de Carvalho. Era intelectualmente fascinante, meio paizão, e me estimulava dizendo que eu tinha jeito de cientista. Ele mandou uma carta de recomendação ao professor Carvalho, que respondeu dizendo que seria um prazer me receber como mestranda, mas que eu teria de passar numa prova. Esse foi o primeiro passo. Havia aquela discussão no Nordeste: ir para São Paulo ou para o Rio? O professor Paulo de Carvalho me disse que São Paulo tinha uma estrutura de pesquisa mais sólida. Aí vim, com a insegurança de quem, aos 22 anos, deixa o aconchego familiar.
Você conseguiu uma bolsa de estudos?
Não, vim com a cara e a coragem. Meus familiares fizeram uma reunião e meu pai falou que faria tudo para me bancar nos primeiros meses e que depois eu deveria conseguir uma bolsa ou trabalhar para me manter. Ao chegar, fui para um hotelzinho na rua Teodoro Sampaio. Depois passei algumas semanas na Fradique Coutinho, na casa de Edna, irmã de Maria Coeli e cunhada de Saulo Almeida de Ataíde, hoje diretor do Hospital Napoleão Laureano, o hospital do câncer em João Pessoa. Finalmente fui para o Crusp [Conjunto Residencial da USP].
Isso foi em 1975?
Exatamente. Quando fui me matricular no mestrado do IQ-USP encarei a dura realidade que até hoje contrapõe o Sudeste rico ao Nordeste pobre. Na USP, assim como em São Paulo, enfrentei o preconceito contra os nordestinos. Achavam que nossa formação era inferior – a minha não era, tive uma excelente formação educacional. Vim para fazer mestrado sob orientação de Paulo de Carvalho, mas ele não trabalhava com química de produtos naturais, fazia química farmacêutica. Eu, entretanto, queria fazer mestrado de qualquer jeito na USP e, no Crusp, dividi apartamento com uma gaúcha, da biologia, que já era professora assistente. Um dia estávamos conversando e ela teve uma crise epiléptica. Quase morri, não sabia o que fazer. Era um final de semana, lá era muito isolado, fiquei num estresse tremendo. Outro fato trágico é que, logo depois que cheguei, Paulo de Carvalho morreu, vítima de infarto fulminante. Aí fiquei desesperada com a morte dele.
E desamparada.
Falei: “Vou voltar”. Mas não podia, seria fracassar. Na época, telefonar era uma dificuldade e minha mãe me mandou um telegrama: “Tenha calma e fique firme”. Voltei ao Instituto de Química para falar com a coordenação e escolher outro orientador. Aí, coisas do acaso, uma pessoa no corredor me perguntou se eu estava procurando alguém. Era o professor Mário Motidome, professor de química de produtos naturais. Ele me convidou a ir à sala dele e contei o que tinha acontecido. Ele e o professor Carvalho eram muito amigos e no departamento estavam todos traumatizados. Os laboratórios de pesquisa ficavam todos no bloco 11, o B-11: em cima, a química farmacêutica e, embaixo, a química de produtos naturais com o professor Otto Gottlieb, já muito famoso. Foi com Motidome que iniciei os primeiros passos de pesquisa, com uma planta de nome difícil, Mikania hirsutissima. Parecia que os horizontes tinham se aberto, foi um período muito bom. Como eu tinha que estudar para entrar no mestrado, ele disse que eu podia passar um tempo lá para ir conhecendo o ambiente. Fui para a graduação e cursei físico-química e química inorgânica para me preparar para a prova. Nesse período, topei várias vezes com o professor Otto Gottlieb e pensei que queria fazer mestrado com ele. Mas, para me apresentar ao mestre, tinha que mostrar que era boa aluna e passar na prova.
Como era a rotina?
Eu estudava, preparava os dados, fazia plaquinha cromatográfica, aprendi a purificar substâncias, algo preliminar, mas fundamental para o que queria fazer. O professor Otto, chefe do laboratório, era brilhante, muito rígido e metódico, características importantes para ser cientista. O laboratório era uma bagunça, mas as plaquinhas e tudo tinham que ser anotados. Eu tinha um caderno de pesquisa com tudo anotado, que guardo até hoje. Engraçado que eu sou meio bagunçada, mas imponho organização aos meus alunos, que têm de ter cadernos. São Paulo foi uma grande escola e me mostrou toda a contradição que temos no país, incluindo professores excelentes e maravilhosos que conheci e de quem sou amiga. Um deles foi Hans Viertler, que também atuou na FAPESP e está aposentado. Ele dava aula de estereoquímica, importante para se ter noção do arranjo molecular no espaço e de suas propriedades. Saía para tomar cerveja com a gente, dava uma aula maravilhosa. Muitas vezes ficávamos até tarde falando de muitos assuntos extracientíficos e até de futebol. Ele jogava no terrão em frente à Química com Jorge, com quem me casei. Era um professor fascinante e solidário. Nesse processo de morar sozinha no Crusp, com pouca verba, peguei pneumonia e ia trancar a matrícula, mas ele disse para eu não trancar. Ficaria de repouso, tomando remédios e me alimentando bem e ele me passava as aulas que eu tentava deixar em dia. Não perdi a disciplina nesse período por causa da sua generosidade.
O amparo foi importante?
Muito. O mestrado foi um período de intenso crescimento pessoal. Conheci Jorge e tive discussões enriquecedoras no Rei das Batidas, perto da USP.Mesmo sendo farmacêutica e uma estudante de química, tinha cabeça aberta, espírito político, noção social, e amigos da geografia, da sociologia, da Poli, da química. A discussão com colegas de áreas distintas era rica, informação com formação, o que nos diferenciava de alguns alunos de hoje, que têm muita informação e pouca formação.
Qual foi o tema de sua dissertação de mestrado?
Uma Euphorbiaceae da Amazônia, diferente das usuais Lauraceae e Myristicaceae que o professor Otto investigava.
O que elas têm?
São ricas em dímeros de C6-C3, oslignoides, substâncias fenólicas biologicamente importantes. Os monômeros de C6-C3 são moléculas que formam a estrutura de sustentação das plantas, as ligninas. Otto inclusive diferenciou os lignoides, classificando-os em lignanas e neolignanas, de acordo com a via de biossíntese. Massuo Kato, do Instituto de Química da USP, tenta provar essa classificação estudando as Piperaceae. São importantes na defesa das plantas. Como essas substâncias são biologicamente ativas, algumas são modelos de fármacos.
O que Gottlieb queria entender era a estrutura das lignanas?
Não só a estrutura, mas relacionar a química a aspectos biológicos e taxonômicos. Como químico, ele já entendia naquela época os metabólitos secundários como essenciais para entender a biologia e a filogenia das plantas. Foi um grande defensor da quimitaxonomia e mostrou que a química corrobora a taxonomia. Com isso, contribuiu muito para a filogenia de plantas. Ele foi um pioneiro nesse estudo no Brasil. A química de produtos naturais moderna deve muito ao professor Otto, aqui, e aos professores Bem Gilbert e Walter Mors, na UFRJ. Os três formaram toda uma geração de pesquisadores no Brasil. O professor Otto foi o único brasileiro indicado para o prêmio Nobel duas vezes. Quando entrei no laboratório, ele era um full professor e tinha os assistentes, que tomavam conta dos alunos – em meu caso, papel de Marden Alvarenga, pessoa importante em minha formação. Era incisivo e, como eu era nordestina e tímida, ele me dava força. Estudei uma planta da Amazônia do gênero Croton, da família Euphorbiaceae, que voltei a estudar agora por causa de seus peptídeos. Ela fugia ao foco de Otto.
E por que você chegou a ela?
Marden tinha feito sua tese com essa família de plantas e descobrira alguns terpenos muito distintos, contendo bromo, comum em organismos marinhos. Consegui isolar uma substância desconhecida, e ele insistia: “Purifique porque está impura”. Naquela época, elucidar a estrutura de uma substância nova era um enorme desafio. Como trabalhávamos com compostos fenólicos, os sinais vistos nos espectros de ressonância magnética nuclear (RMN) a 60 mega-hertz pareciam impurezas. Quanto mais eu purificava, mais ficava sem material e as feições espectrais da ressonância magnética eram as mesmas. Depois de uns seis meses veio para a UFRJ o professor Gabor Lukacs, especialista em RMN de carbono 13, que estava começando. Passei uma semana no Rio e, quando voltei, propus a estrutura do diterpeno e mandamos a substância para Hugo Gottlieb, filho do professor Otto, que já era professor no Instituto Weizmann, em Israel. Veio a resposta de que não tinha impureza, a substância tinha um núcleo furânico e era um terpeno completamente diferente. Defendi minha dissertação com essa substância, inédita e muito diferente. Levou um tempo para determinarmos e publicarmos a sua estrutura correta. A essa altura, nos Estados Unidos já estavam começando a compilar dados de produtos naturais para montar os softwares de estruturas de produtos naturais. O famoso professor Carl Dejerassi mandou uma carta ao professor Otto solicitando os dados do diterpeno para incluir essa molécula, a diasiína, na compilação de dados espectrais para editar os softwares de prognóstico de estruturas moleculares.
O que é a diasiína?
É a substância que isolei, um diterpeno labdânico rearranjado, uma classe de moléculas com 20 átomos de carbono. Diterpenos são metabólitos secundários, adjetivo que se deve à crença de que eram dejetos das vias metabólicas primárias e não tinham função. Essas substâncias são importantes para regular o funcionamento e a defesa de plantas e outros organismos. A natureza não gasta energia para produzir coisas sem função. Por vias metabólicas distintas se formam os produtos naturais como lignanas, flavonoides, diterpenos, alcaloides, iridoides, entre outros, muito importantes para regulação, defesa e equilíbrio da natureza. Essas vias metabólicas não são aleatórias. As características genéticas influenciam os tipos de reação química que ocorrem nas diferentes espécies e tornam possível classificar as plantas com base nos metabólitos que produzem. Há determinadas classes de compostos que só ocorrem em certas espécies de plantas e funcionam como marcadores. Foi isso o que fiz no doutorado em quimiotaxonomia, uma ferramenta valiosa para entender as plantas e sua filogenia.
Emendou o doutorado no mestrado?
Casei e terminei o mestrado grávida da minha primeira filha. Nessa época surgiu uma oportunidade de trabalhar na Universidade Federal da Paraíba. Minha filha nasceu em março e fui em 5 de maio, como professora colaboradora. Era uma maneira de voltar para a minha universidade e para a minha família. Fomos morar na praia, uma coisa maravilhosa. Mas aí começou o problema de adaptação: Jorge reclamava que o jornal do dia chegava à noite, que a livraria não tinha os livros que queria… Ele era paulistano e, para um paulistano, morar em João Pessoa no final dos anos 1970 não era fácil. Então apareceu uma oportunidade de voltar, ele arranjou um emprego na Phebo. Liguei para o professor Otto e disse que faria meu doutorado. Aí minha história acadêmica se confunde com a pessoal: eu estava no voo de volta para São Paulo com minha filha no colo e sentou ao meu lado uma senhora, Maria Aparecida Pouchet Campos, que era da Capes e diretora da Faculdade de Ciências Farmacêuticas da Unesp em Araraquara. Mariana era um docinho e ela começou a brincar com o bebê. Depois me deu um cartão e disse que tudo o que ela queria na farmacognosia era alguém que trabalhasse com Otto Gottlieb. Como viríamos para São Paulo de qualquer jeito, decidi ir a Araraquara ver. Ao chegar lá, encontrei o pessoal da química que fazia mestrado na minha época. Ficaram entusiasmados. Fui para o curso de farmácia então.
Como conciliou o doutorado na USP com as aulas em Araraquara?
Eu não tinha começado ainda. Fomos a Araraquara onde havia uma chance de se criar o mestrado em sociologia rural e urbana e Jorge queria ser orientado por Maria Aparecida de Moraes Silva, que estava em São Carlos. Era a chance de os dois voltarem juntos, com emprego, para São Paulo. O pai dele tinha uma empresa de cosméticos em Diadema, que faliu. Enfim, Jorge disse que conciliaríamos as coisas porque era perto – era nada, mas éramos moços e achávamos isso.
Como foi o início da vida acadêmica em Araraquara?
Entrei em farmácia entusiasmada para fazer meus projetos. O primeiro foi com Rubiaceae, a planta que eu já estudava no mestrado. Aí não deu certo, porque tinha que fazer doutorado e o professor Otto falou: “Como você tem criança e não pode viajar toda hora, faça um estudo teórico. Vamos ver o que essas moléculas informam sobre a evolução, a filogenia das plantas, que contribuições podemos dar para a botânica, para a taxonomia, a biologia”. Então saí do laboratório e fui fazer um trabalho teórico, o que foi bom para minha formação. Foi um período promissor. Em 1990 ganhei uma bolsa do Serviço Alemão de Intercâmbio Acadêmico [DAAD] e passei um mês na Alemanha.
O que foi seu trabalho de doutorado?
Estudei a ordem Gentianales completa e fizemos um belo estudo sobre a evolução de alcaloides indólicos na natureza. O trabalho com o taxón Rubiaceae nessa linha que publiquei com o doutor Otto foi um sucesso. Tinha um taxonomista famoso, Elmar Robbrecht, que estava criando uma nova taxonomia para as rubiáceas, algo complexo do ponto de vista biológico, para essa família de plantas que ocorre no mundo inteiro e tem produtos de grande valor econômico. Ele ficou encantado porque, usando só os dados químicos, chegamos à mesma conclusão que ele em sua nova taxonomia. Ele escreveu um artigo em uma revista famosa, citou nosso trabalho e nos convidou para um congresso internacional, na Bélgica. Fui tremendo porque foi a primeira vez que saí para fazer uma conferência de 50 minutos e eu ainda era quase uma estudante.
Esse trabalho direcionou sua carreira de pesquisadora?
Eu estava cada dia mais decidida a ter uma linha de pesquisa. Conversando com o professor Otto, ele disse que não tinha ninguém trabalhando com ambiente marinho e que eu poderia fazer um pós-doutorado nessa área e direcionar a pesquisa para algo completamente diferente. Fiquei entusiasmada, mas aí aconteceram os infortúnios: Jorge teve um AVC isquêmico aos 38 anos e ficou muito mal. Tive de parar tudo. Pedi afastamento da universidade e, quando voltei, não quis mais saber de ambiente marinho.
Nessa fase você ficava aqui ou em Araraquara?
Aqui e lá. Primeiro, Jorge ficou no Hospital Albert Einstein. Depois foi para a casa da mãe porque tinha que fazer fisioterapia e receber cuidados. Toda sexta-feira eu vinha e voltava na terça. Numa das viagens, tive um acidente com o carro, que capotou não sei quantas vezes. Não morri porque não era a época. Nesse período, passei muito tempo na USP, no laboratório do Massayoshi Yoshida.
Você pediu afastamento das aulas em Araraquara e ficou fazendo pesquisa?
Nos primeiros seis meses pedi afastamento completo. Eu tinha Mariana e Tiago, pequenininhos. Achei que ia perder a carreira e continuei dando aulas, praticamente parei minhas pesquisas. Mas Jorge melhorou muito e disse que eu não devia estragar minha carreira. Fiquei na dúvida, mas concordei e fui com os dois meninos para os Estados Unidos em 1992, uma experiência ótima também para eles. Fiz então meu pós-doc com David Kingston, na Virginia Tech.
Seu marido não voltou a trabalhar?
Não conseguiu. Fazia muito trabalho voluntário, porque tinha horas em que estava perfeito e podia falar da obra de Karl Marx de ponta a ponta. De repente, dava uns brancos e ele não conseguia. Morreu com 60 anos. Foram 22 anos nessa luta. No final, ele ficou meio hippie aventureiro. Amava a Bahia e foi morar em uma pousada em Valença. Em 2011, no Ano Internacional da Química, eu estava em Paris quando ele passou mal na Bahia e uma amiga ligou avisando. De lá foi transferido para Salvador e, depois de um infarto, teve de vir para São Paulo. Desse período até a morte dele, em setembro daquele ano, fiquei praticamente aqui.
Enquanto isso, você desenvolveu toda uma carreira.
Foi uma luta, mas foi gratificante. A pós-graduação estava se estruturando e decidi que ia fazer um laboratório-modelo de química de produtos naturais. Para isso precisava de uma equipe. Arregacei as mangas e fui a primeira a trabalhar com química de produtos naturais com essa visão de filogenia no IQ-Unesp. Se você tem ciência básica de qualidade, pode trabalhar a química de produtos naturais com o que ela tem de melhor e fazer colaboração com o pessoal da farmacologia, da toxicologia e da biologia para verificar se pode encontrar alguma biomolécula que tenha aplicação. Com esse foco, começamos a estruturar os projetos.
Isso foi quando?
Em 2000. Trabalhei um tempo com Aristolochiaceae com a professora Lucia Xavier Lopes, mas mudei logo para uma linha com Rubieaceae e ganhei meu primeiro Auxílio à Pesquisa da FAPESP. Depois chegaram Marcia Nasser e Maysa Furlan e os outros colegas, hoje são sete, que compõem o NuBBE, Núcleo de Bioensaios, Biossíntese e Ecofisiologia de Produtos Naturais. Aqui a química de produtos naturais era bem tradicional: isolar, determinar estrutura e publicar. Queríamos entender melhor a natureza, tentar encontrar a relação entre a biossíntese e a função das macromoléculas nas plantas e também sua função farmacológica. Cada dia nos convencíamos mais de que a natureza, ao longo da evolução, não produziu um laboratório químico tão sofisticado para sintetizar centenas e centenas de substâncias sem função. Há compostos biologicamente ativos que podemos usar como protótipos para fármacos. Mas ela não fez isso para o ser humano. Ela produz para a sua preservação e equilíbrio. Com esse foco, começamos a estruturar nosso laboratório. Com Alberto Cavalheiro, que é brilhante em métodos de separação, o NuBBE criou uma excelente plataforma analítica voltada para produtos naturais, principalmente porque nosso laboratório agora é verde. Angela, Dulce e Ian completam o time do NuBBE.
O que é um laboratório verde?
Um laboratório sustentável. Não usa clorados, nem solventes tóxicos. Todo mundo falava mal da química de produtos naturais, porque era uma química suja. Para isolar alguns miligramas de uma substância pura, usava muito solvente clorado e orgânico, que é tóxico e se acumula na natureza. Os métodos de separação usando etanol, água e acetona foram recentemente estabelecidos com sucesso pelo Cristiano, um pós-doc que é supervisionado pelo Alberto.
Desde quando vocês são verde?
Há três anos. Temos um laboratório muito bem montado em consequência do programa Biota. Em 1998, quando estávamos estruturando o laboratório, fazendo as primeiras reuniões com Sonia Dietrich, ela me convidou para ir a Campinas a uma reunião do programa Biota. Disse que eu tinha tudo para submeter um projeto só de química de produtos naturais dentro do Biota.
Era o BioProspecta?
Virou depois. No início era um projeto único de bioprospecção de substâncias da Amazônia e do cerrado. Foi meu primeiro projeto temático, conseguimos fazer coletas muito bem organizadas e compramos equipamentos de espectrometria de massa de alta resolução.
Vocês faziam as análises.
Fazíamos a parte química e o pessoal da farmácia e da botânica, as análises de atividade.
Em animais ou em células?
Fazíamos teste in vitro. Foi nesse período que conseguimos formar recursos humanos altamente qualificados e parcerias internacionais. Conseguimos fazer estudos não só em fitoquímica, de compostos produzidos pelas plantas, mas também com fungos endofíticos, que vivem no interior das plantas, e com algas marinhas coordenados por Angela e Dulce. Não trabalhamos só com a parte analítica, mas também com biossíntese, sob a coordenação de Maysa, e com ecologia, a cargo de Alberto e Ian. Estamos interessados em ver como essas substâncias se comportam nas plantas. Agora, antes de me aposentar, estou montando um grupo interessado em peptídeos produzidos por plantas. Pouca gente estuda isso no Brasil. Os peptídeos desempenham muitas funções importantes. Alguns são antimaláricos, antichagásicos e antitumorais. Estou interessada em ver sua função nas partes em que são produzidos nas plantas. Estamos trabalhando com plantas da caatinga, um ambiente muito seco. Se conseguirmos provar que esses peptídeos são os responsáveis pelo funcionamento dos estômatos e permitem que essas plantas sobrevivam nesses ambientes, será muito importante para entender o ecossistema.
Se você chegar à conclusão de que, de fato, os estômatos evitam a perda de água, se terá entendido um mecanismo de preservação em ambientes extremos.
Isso. É muito importante mostrar como as plantas resistem nesses ambientes. Há poucos estudos com relação às nossas plantas e nossos ambientes.
Além das parcerias internacionais, você trabalhou também multidisciplinarmente. Como foi a experiência?
Sempre achei que a química é uma ciência central e plural. E ninguém domina tudo, por isso a colaboração é fundamental. Fizemos colaborações nacionais na área da biologia, da física e principalmente da farmacologia. Com o grupo de Glaucius Oliva, que é físico, foi interessante porque ele trabalha com síntese de proteína e tem larga experiência em base de dados. A parceria com ele veio muito em função da colaboração com Adriano Andricopulo. Um dia falei para ele que queria fazer uma base sobre as substâncias que já isolamos, aquelas 640. Queria colocar todas as informações para que as pessoas, empresas e universidades pudessem consultar.
Como chama a base?
NuBBE Database. Ela faz o maior sucesso no exterior, mas tem poucos acessos feitos a partir do Brasil.
Essa base começou a ser formada recentemente?
Há um ano e meio. Eu tinha a ideia, mas não sabia como fazer, daí a importância da colaboração. Tinha uma aluna brilhante que ia fazer doutorado em química medicinal. Conseguimos um profissional de informática e ele fez o sistema computacional. Criamos um sistema aberto em que podemos pôr muitas informações. Existem muitas bases de produtos naturais tradicionais que têm os dados da espécie e da família das plantas, da estrutura dos compostos e informações físico-químicas. As bases de química medicinal geralmente têm outras propriedades importantes para a farmacologia. Nosso diferencial foi colocar nessa base as duas coisas juntas.
Vocês têm interesse em fazer essas moléculas chegarem à indústria de cosméticos e medicamentos?
Falei com João Batista Calixto, da Universidade Federal de Santa Catarina, que está interessado em algumas delas. Ele coordena o CIEnP, um centro de pesquisa pré-clínica, e quer iniciar testes com plantas que estudamos. Não posso falar agora. Pedimos o registro de patente de uma e estamos em processo de fazer prova de conceito. Já tivemos parcerias com empresas. Uma morreu na praia.
Era com a molécula com potencial efeito contra o mal de Alzheimer, não?
Essa molécula é um inibidor reversível da enzima acetilcolinesterase. Fechamos uma colaboração com a Apsen, empresa farmacêutica que fabrica produtos contra doenças neurodegenerativas. Eles investiram nos primeiros estudos extra-acadêmicos, mas decidiram pela descontinuidade. Isso acontece com muitas moléculas. Aqui e lá fora.
Havia alguma complicação na fase industrial?
Uma coisa é desenvolver um fitoterápico, que é um extrato, uma mistura padronizada que passou por testes de farmacologia, eficácia, segurança. Outra é fazer o escalonamento de produção de um fitomedicamento, uma substância pura. Para não devastar a natureza, a síntese em laboratório de uma substância com arranjo molecular complexo que a planta produz em miligramas é fundamental, mas não trivial. Acho que por isso o projeto com essa molécula morreu.
E como fica?
Eles descontinuam o trabalho e permitem apresentar a outra empresa. Calixto se interessa por ela se fizermos modificações para usá-la no combate à dor neuropática. Mas não tivemos mais condições de coletar a planta para obter material e fazer a alteração estrutural.
Vocês interagem com a indústria de cosméticos?
Tivemos dois projetos com a Natura, um Finep e outro FAPESP. A prova de conceito é importante para que a empresa absorva o que temos. Eles começam, mas desistem.
O problema são os ensaios pré-clínicos?
São. É mais difícil fazer no Brasil. Agora, com esse laboratório que tem padrão internacional de qualidade, talvez seja mais fácil fazer também essa fase. Empresas brasileiras podem se interessar, e multinacionais também. Não vejo problema nisso, desde que os contratos sejam bem estruturados. É o que a China faz.
Por que não avançamos?
Falta uma política. Na esfera estadual existe a FAPESP, com os Pipes, Pites e agora os Cepids. Na União existe a Lei do Bem, que dá benefícios fiscais para quem faz inovação, mas é preciso despertar uma nova mentalidade no setor empresarial brasileiro. Na área de cosmético tem a Natura, uma empresa nacional importante com bastante projeto, mas até agora não fez inovação radical no sentido de lançar produtos baseados na hard science. A L’Oréal, que está se instalando no Rio, sempre teve foco em síntese, está tentando mudar no Brasil. Ela tem laboratórios muito sofisticados na União Europeia, nos Estados Unidos e na Ásia e pesquisadores muito gabaritados que publicam seus resultados em revistas científicas da área. Nossa biodiversidade é um grande arsenal que poderia ser usado. Na reunião da SBPC fiz uma conferência sobre o desenvolvimento sustentável da Amazônia, que é puramente extrativista. Precisamos dar aquele passo além do extrativismo e não damos. Nosso setor farmacêutico é muito pequeno. As multinacionais dominam e fazem pesquisa em laboratórios nos seus países de origem.
Não poderíamos chegar lá?
Poderíamos, mas teríamos de ter um programa do Estado brasileiro. A Fapesp criou um projeto de cooperação de 10 anos com a GlaxoSmithKlein, que começa a fazer pesquisa básica e aplicada e avança. Tem também um modelo que é o dos INCTs. Talvez no futuro possamos chegar lá. Somos o país do futuro.
Faltam peças no meio de campo?
Agora tem as agências de inovação que fazem a ponte. Temos no estado de São Paulo o ambiente que propicia fazer pesquisa de qualidade e chamar as empresas para dar o salto. A indústria farmacêutica é de altíssimo risco. O custo Brasil é muito elevado e desestimula o empresário a investir no risco o tempo todo.
Seria preciso chegar ao estudo clínico para as empresas se interessarem?
Quanto mais avançados, mais fácil a parceria. Por que lá fora se consegue? Por que uma empresa nacional não monta uma estrutura de pesquisa e dá esse passo? Seria um diferencial enorme para ela e para o Brasil. As multinacionais têm laboratórios muito bem montados lá fora.
Mas só os grandes conseguem isso?
Se houvesse um mecanismo que diminuísse o custo, poderia gerar emprego para os doutores bem formados, porque não tem mais espaço nas universidades, e tornaria possível ter pesquisa na própria empresa, como se vê na Glaxo, na Merck. Algumas estão começando, como Natura e Cristália, mas falta muito para avançar nesse ambiente competitivo. Quem ganha? A China.
Mas China e Índia não fazem muito me too, medicamentos produzidos a partir de moléculas já conhecidas que são alteradas, e não medicamentos inovadores?
Mas mesmo para fazer me too precisa ter expertise. Nesse ponto, a China investe muito. A base é grande e eles trabalham como formigas, assim como no Japão, que agora cria coisas boas, mas antes só copiava. Tem a ver com nossa desorganização cultural e nossa base de pessoal qualificado ainda é pequena.
Em paralelo às pesquisas, há sua atuação política na comunidade científica. Você foi presidente da Sociedade Brasileira de Química.
A primeira mulher. Na nossa área, há muita mulher na graduação, no mestrado e no doutorado. Mas o número que ascende na carreira é pequeno.
Esse cenário não deve mudar com o aumento do número de mulheres na base do sistema?
A base vem crescendo nos últimos 40 anos e não se chega lá. Há um componente cultural machista, que é nosso, das mulheres também. Conheço mulheres que são muito boas, mas maneiram para deixar o homem aparecer mais. É uma cumplicidade para a manutenção do casamento e da família.
As mulheres não vão à luta para ocupar os cargos ou são barradas?
Elas ascendem, mas talvez sejam menos competitivas que os homens. Ou menos eficazes na competição. Acho que há um componente cultural em barrar a criatividade da menina e dizer que física, química e matemática são coisas de menino.
Como foi a presidência da SBQ?
Foram dois anos muito gratificantes. Estreitamos as parcerias internacionais. Temos vários programas com a American Chemistry Society, a Royal Society of Chemistry e a Iupac [International Union of Pure and Applied Chemistry]. Vamos trazer a reunião da Iupac em 2017 para o Brasil. Esse é o congresso mais importante e é a primeira vez que vem para a América do Sul. Será em São Paulo.