O paleontólogo Mário Dantas era aluno de doutorado em agosto de 2010 quando encontrou dois pedaços de um fóssil que se encaixavam perfeitamente e formavam um cone pontiagudo. Sob o sol do Nordeste, ele e colegas se debruçavam sobre uma pilha de ossos fossilizados de animais pré-históricos encontrados na fazenda São José, no munícipio de Poço Redondo, em Sergipe. “Pensei que fosse um dente de tigre-dentes-de-sabre, mas fiquei na dúvida”, lembra Dantas, hoje professor do Instituto Multidisciplinar em Saúde da Universidade Federal da Bahia (Ufba).
Agora, após diversas análises e uma datação mais precisa, ele e seus colaboradores estão convencidos de que o fóssil é um dente de preguiça-gigante que foi trabalhado por seres humanos. Um paleoíndio que viveu naquela região teria polido o dente – originalmente ele tem o formato de um longo bastão retangular – até transformá-lo em uma ponta, logo após a morte do animal, há cerca de 12,5 mil anos.
Com esse resultado, cresce o número de evidências, todas ainda controversas, de que populações pré-históricas do Brasil conviveram com a megafauna do Quaternário, animais de grande porte como os tigres-dentes-de-sabre e as preguiças-gigantes. Esses animais teriam vivido nas Américas entre 2,6 milhões de anos e 12 mil anos atrás. Parte se extinguiu quando os seres humanos começaram a povoar o continente. “Na América do Norte há sítios bem documentados com evidências de que o homem matava ou processava o corpo de animais da megafauna”, conta o biólogo Alex Hubbe, da Universidade de São Paulo (USP), que recentemente avaliou possíveis vestígios de convívio entre seres humanos e animais da megafauna no Brasil. Na América do Sul há menos sítios, alguns na Argentina e outros no Brasil. “Aqui, as evidências são duvidosas”, afirma.
Desconfiança
Já em 2010, Dantas e o arqueólogo Albérico de Queiroz, da Universidade Federal de Sergipe, observaram algo estranho no dente fóssil. “Com lupas encontramos na lateral e nas costas do dente marcas profundas e paralelas, muito regulares para serem feitas ao acaso, indicando que alguém as fez com a intenção de moldar o objeto”, diz Dantas. “Se as marcas tivessem sido feitas pelo arrastar das águas ou pelo pisotear de animais, elas seriam rasas e teriam orientações variadas.”
Ele notou ainda que as bordas das marcas eram suaves, sugerindo que haviam sido feitas antes de o dente fossilizar. Chamou a atenção também o fato de a cor do material ser a mesma na borda e nos sulcos, o que indica que são tão antigos quanto o próprio dente.
Anos atrás Dantas mostrou seu achado ao paleontólogo Cástor Cartelle, da Pontifícia Universidade Católica de Minas de Gerais, um dos principais especialistas da megafauna brasileira. De início, Cartelle defendeu que o fóssil seria a ponta de uma presa de tigre-dentes-de-sabre. Ele só mudou de ideia após a publicação do artigo de Dantas em 2012, depois que Jorge Ferigolo, paleontólogo da Fundação Zoobotânica do Rio Grande do Sul, ajudou o pesquisador da Ufba a confirmar que a estrutura interna do dente era sem dúvida da única espécie de preguiça-gigante que viveu no Nordeste, a Eremotherium laurillardi. “O dente de preguiça é quadrado”, explica o paleontólogo Mario Cozzuol, da Universidade Federal de Minas Gerais, que orientou o doutorado de Dantas e também demorou para se convencer. “Está claro que uma lasca desse dente foi polida e trabalhada para parecer uma ponta; a dúvida era saber quando isso havia acontecido.”
Se usasse o método de datação mais comum, Dantas precisaria extrair 10 gramas de colágeno do osso fossilizado, o que destruiria o dente. Em vez disso, ele preferiu usar um método menos agressivo, a que só teve acesso no ano passado. Essa estratégia, que permite medir o carbono-14 depositado no mineral apatita, exige uma amostra bem menor (menos de 3 gramas). Por esse método, um laboratório nos Estados Unidos determinou que o dente deve ter entre 12.742 e 12.562 anos. Essa idade é próxima da mais antiga evidência de assentamentos humanos em Sergipe. Arqueólogos encontraram recentemente vestígios de fogueiras produzidas há 11 mil anos em Canindé, município vizinho a Poço Redondo e famoso por cerâmicas e ferramentas de pedra feitas por paleoíndios.
Hubbe nota que o método de datação usado por Dantas não é aceito pela maioria dos pesquisadores, por ser menos preciso. “O traçado das marcas em ossos e dentes também são evidências problemáticas”, ele diz. “Processos naturais podem imitar a ação humana.” Quanto à coloração, Hubbe lembra que o dente pode ter sido integralmente tingido de outra cor por algum processo natural que ocorreu depois que foi supostamente polido e jogado no depósito. “Tudo o que eles [Dantas e colaboradores] argumentam pode ter ocorrido”, diz Hubbe. “Mas é necessário conhecer melhor a história de formação do depósito fossilífero onde o dente foi encontrado antes que se possam considerar as conclusões robustas.”
“Encontramos no mesmo sítio fragmentos de cerâmica e ferramentas de pedra, mas tudo fora de contexto”, Dantas reconhece. O sítio de Poço Redondo é o que os sergipanos chamam de “tanque”. São depressões naturais no terreno recheadas de sedimentos acumulados durante milhares de anos. Eles guardam um tesouro para os paleontólogos: esqueletos de animais que morreram na vizinhança e foram arrastados pelas chuvas para esses tanques. Dantas e colegas encontraram fósseis de 13 espécies extintas, com idades variando de 27 mil a 11 mil anos. “Mas a água bagunça tudo, misturando fósseis e artefatos de idades diferentes”, explica o pesquisador, que espera um dia mapear as marcas no dente da preguiça com um microscópio eletrônico e reconstituir melhor a maneira como foram feitas. “Um estudo assim poria um ponto final à questão.”
Artigo científico
DANTAS, M. A. T. et al. Dated evidence of the interaction between humans and megafauna in the late Pleistocene of Sergipe state, Northeastern Brazil. Quaternary International. v. 352, p. 197-99. out. 2014.