Com água, detergente para lavar louça e uma ponteira a laser, daquelas usadas em palestras, o casal de físicos Adriana e Alberto Tufaile criou um modelo experimental e forneceu uma nova explicação para um fenômeno natural que fascina a humanidade há pelo menos 2,3 mil anos, desde os tempos de Aristóteles: o aparecimento de um conjunto de efeitos luminosos em torno do Sol denominado tecnicamente parélio. Em zonas frias, a luz solar interage com pequenos cristais de gelo em suspensão na atmosfera e, sob certas condições, faz surgir pares de manchas brilhantes (os chamados falsos sóis ou cães de Sol), um halo (círculo parélico) e linhas retas (pilares do Sol) ao redor do astro. Em ocasiões ainda mais raras, essas formações também ocorrem nos arredores da Lua.
Os professores do Laboratório de Matéria Mole da Escola de Artes, Ciências e Humanidades (EACH) da Universidade de São Paulo (USP), campus da zona leste, realizavam em meados de 2013 ensaios sobre o espalhamento da luz em espuma formada por sabão, um dos seus campos de estudo, quando se depararam com essa mesma série de figuras projetadas ao fundo do experimento. “Não tínhamos ideia do que poderia ser”, diz Alberto. “Fizemos uma longa pesquisa e o único fenômeno semelhante era o parélio, que não conhecíamos.” A descoberta foi relatada em artigo publicado em 9 de dezembro na versão eletrônica da revista científica Physics Letters A. “Até hoje as explicações para o fenômeno atmosférico só levaram em conta a ótica geométrica, que trata a luz como partícula e segue as ideias de Newton”, afirma Adriana. “Mas nosso estudo sugere que o círculo parélico é fruto principalmente da característica ondulatória da luz.”
As figuras praticamente análogas às manchas brilhantes, linhas retas e círculo que se formam ao redor do Sol foram observadas em laboratório quando os físicos iluminaram com o feixe de laser a chamada borda de Plateau, exatamente o ponto de contato entre três finos filmes de bolhas de detergente. A região de intersecção recebe esse nome em homenagem ao físico belga Joseph Plateau. No século XIX, ele observou que as bolhas sempre se encontram em trios e formam uma espécie de quina, que sustenta suas tênues paredes. Mudando o ângulo de incidência da luz sob a borda de Plateau, formada no interior de uma caixa de acrílico fechada (célula de Hele-Shaw) que abriga uma solução de água e detergente, Adriana e Alberto notaram que apareciam mais ou menos figuras, de diferentes tamanhos e com distinta nitidez. Intrigada com o padrão luminoso gerado pelo laser no experimento feito na USP Leste, Adriana resolveu um dia tentar reproduzir o ensaio em casa. Botou água com sabão em um pires, agitou a mistura para formar bolhas e apontou uma ponteira de laser na direção da borda de Plateau, o ponto de encontro de três filmes de espuma. Não deu outra: as manchas luminosas, as linhas e o círculo surgiram na parede de sua casa. “Em ambiente aberto, a borda de Plateau se desfaz mais rapidamente”, explica a física. “Por isso usamos a célula de Hele-Shaw.”
Uma das chaves para entender a similaridade entre os dois fenômenos, o atmosférico e o das bolhas de sabão, está ligada à simetria extremamente parecida dos cristais de neve e das bordas de Plateau, segundo a dupla da USP, cujos estudos fazem parte do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Fluidos Complexos (INCT-FCx), financiado pela FAPESP e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Os cristais têm formato hexagonal e as bordas são triangulares. Essas duas figuras geométricas exibem uma íntima relação: um hexágono regular pode ser visto também como a junção de seis triângulos equiláteros. Portanto, ao incidir sobre essas duas estruturas, a luz do Sol ou a do laser se espalha de acordo com o mesmo princípio. “É muito difícil estudar em detalhes a formação das imagens nesse raro fenômeno atmosférico”, explica Alberto. “E capturar os cristais de gelo envolvidos no fenômeno é praticamente impossível.” Como tinham identificado um análogo do parélio do Sol em seus ensaios com bolhas de detergente e laser, o casal de pesquisadores decidiu investigar a fundo o mecanismo por trás da formação desse padrão de imagens luminosas.
Depois de repetir o experimento várias vezes no laboratório, usando inclusive lasers de três cores diferentes (verde, azul e vermelho) para se certificar de que o comprimento de onda de luz não interferia no resultado, e estudar a literatura científica sobre o fenômeno atmosférico, Adriana e Alberto chegaram à conclusão de que a explicação das figuras formadas passava essencialmente pelo caráter ondulatório da luz. Mais especificamente eles acreditam que, ao se chocar com o ponto de encontro das três bolhas de sabão, o feixe de laser espalha a luz por meio de dois processos similares, interferência e difração, em especial o segundo. A difração é um fenômeno visto durante a propagação de diferentes tipos de ondas, como as sonoras, as eletromagnéticas e até as formadas na água. Ocorre quando o som ou a luz encontra um obstáculo ou uma fenda de dimensões diminutas, mais ou menos do mesmo tamanho do seu comprimento de onda, e esse choque altera o seu ângulo de propagação. O resultado da difração é provocar um desvio no caminho do feixe de ondas ou o seu espalhamento. O fenômeno é mais fácil de ser observado com as ondas sonoras, maiores do que as da luz visível.
No caso do laser que ilumina as bolhas de sabão, o feixe de luz incide sobre a borda de Plateau, uma região de alguns nanômetros de comprimento que forma um pequeno tubo triangular capaz de espalhar a luz. A luz chega no ponto de junção das três bolhas na forma de um único feixe de laser, reto e concentrado. Depois de se chocar com o tênue obstáculo, ela dá origem a uma série de feixes menos potentes e mais finos que vão formar o padrão luminoso associado ao fenômeno. Uma parte do laser inicial praticamente passa reto pela borda e origina, numa superfície branca situada atrás do experimento, um ponto luminoso mais forte, o equivalente ao Sol original que se vê na versão atmosférica do fenômeno. A luz dessa mancha se reflete nas bolhas de sabão e produz duas ou quatro imagens espelhadas, menos vigorosas que a original, os tais falsos sóis no caso da ocorrência celeste. “É interessante notar que esses pontos luminosos sempre se formam sobre a linha que delimita o círculo”, afirma Adriana.
Até esse ponto, a explicação da dupla de brasileiros é mais ou menos igual às ideias de outros pesquisadores para dar conta do parélio solar. Sua contribuição ganha importância quando eles introduzem a questão da difração da luz causada por finos filmes de espuma. As linhas retas, em geral três, que cortam o ponto principal, o “sol original” do experimento, são formadas pela difração de parte da luz que incide na estrutura triangular da borda de Plateau. É como se a parede de cada uma das três bolhas que se encontram encostadas umas nas outras desse origem a uma linha reta. Para que também o halo do fenômeno se forme, é necessário um requisito extra: o laser tem de incidir de forma oblíqua na borda de Plateau. Dessa forma, outra fração da onda de luz difratada se espalha num formato cônico, formando assim um círculo perfeito. “Nossa explicação é mais simples do que as outras teorias que usam apenas reflexão e refração da luz, e não seu caráter ondulatório, para explicar o fenômeno atmosférico”, diz Alberto.
O Sol e suas réplicas de menor intensidade são uma ocorrência celeste que tem fascinado o homem há tempos, de acordo com registros escritos e até representações pictóricas desse evento. No século IV a. C., Aristóteles faz referência a esse tipo de evento no livro Meteorologica. Considerado como a primeira representação de Estocolmo, o quadro Vädersolstavlan, de 1535, retrata o fenômeno em sua plenitude nos céus da capital sueca. Ainda no século XVI, o dramaturgo inglês William Shakespeare faz referência ao parélio na terceira parte da peça Henrique VI. O francês René Descartes foi a Roma em 1629 para ver o fenômeno e também escreveu a respeito dele. Em alguns momentos, certas culturas chegaram a associar a ocorrência do parélio com a iminência de guerra. Adriana e Alberto, quando viram a versão a laser e com bolhas de sabão do fenômeno em seu laboratório na USP Leste, avaliaram que estavam diante de um interessante – e milenar – tema de pesquisa.
Projeto
Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Fluidos Complexos (INCT-FCx) (nº 2008/57685-7); Modalidade Projeto Temático – INCT; Pesquisador responsável Antônio Martins Figueiredo Neto (IF-USP); Investimento (em todo o INCT): 2.522.238,07 (FAPESP) e 2,5 milhões (CNPq).
Artigo científico
TUFAILE, A. e TUFAILE, A. P. B. Parhelic-like circle from light scattering in Plateau borders. Physics Letters A. 4 dez. 2014.