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Parasitologia

Parceiros inseparáveis

Associação simbiótica entre protozoário e bactéria ajuda a entender a origem de organelas celulares

Microscopia eletrônica de varredura mostra a divisão de Angomonas deanei, um protozoário com bactéria simbiótica

Carolina Catta-Preta / UFRJ Microscopia eletrônica de varredura mostra a divisão de Angomonas deanei, um protozoário com bactéria simbióticaCarolina Catta-Preta / UFRJ

Os protozoários tripanossomatídeos são famosos por atacar seres humanos, além de plantas e animais de interesse econômico. Destacam-se os parasitas Trypanosoma cruzi, responsável pela doença de Chagas, T. brucei, da doença do sono na África, e os do gênero Leishmania, que causam as leishmanioses. Mas para a parasitologista Cristina Motta, do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), esse não é o aspecto mais interessante desses seres unicelulares. Alguns tripanossomatídeos albergam em seu interior uma bactéria sem a qual são incapazes de viver na natureza. E vice-versa: a bactéria também não sobrevive sozinha. Essa relação de endossimbiose pode ajudar a entender a origem dos eucariotos (organismos com material genético compartimentalizado no núcleo da célula), cujas organelas – como a mitocôndria e o cloroplasto – resultam de associações com bactérias.

O que se observa nesses organismos é um passo intermediário na evolução das organelas. “São dois seres diferentes que se encontraram, viveram em harmonia e agora formam um só ser, já que um não existe sem o outro”, diz Cristina. Intrigante é o fato de cada protozoário conter apenas uma bactéria: elas se dividem mais depressa que o tempo de geração do hospedeiro, de seis horas, e poderiam ser numerosas dentro da célula. “Mas isso não ocorre, o que indica fortemente que o protozoário controla a proliferação do endossimbionte.” Esse controle rigoroso é importante porque, sem ele, a bactéria pode tornar-se um parasita e dominar, ou até matar, o hospedeiro. Cristina e seus colegas vêm estudando esse controle, como mostram os resultados com as espécies Strigomonas culicis e Angomonas deanei, publicados em junho deste ano na revista Frontiers in Microbiology como parte da tese de doutorado defendida este ano por Carolina Catta-Preta. Usando compostos que inibem o ciclo celular do hospedeiro, mas normalmente não afetam bactérias, os pesquisadores mostraram que a divisão do endossimbionte também é impedida. É mais um indício de que a bactéria perdeu o controle da maquinaria que causa a sua fissão, agora a cargo do hospedeiro. Com o bloqueio feito em pontos diversos do ciclo celular do protozoário, em alguns casos o endossimbionte começa o processo de replicação do seu material genético, sem conseguir fazer a divisão final, formando assim um longo filamento que contém várias cópias do material genético bacteriano.

Normalmente, quando as bactérias se dividem, primeiro duplicam todo o seu conteúdo, inclusive o DNA. Depois se formam o septo e um anel que, por constrição, promovem a formação de duas células-filhas. No caso do simbionte estudado, essas estruturas típicas da divisão bacteriana não se formam. Com sua especialidade em microscopia, anos atrás Cristina já observara a ação coordenada da replicação de Angomonas deanei e da bactéria que vive dentro dele. O primeiro DNA a se replicar no organismo composto é o do endossimbionte, que se alonga apoiado no núcleo do protozoário até dividir-se em dois. Segundo Cristina, o núcleo funciona como referência topológica e a bactéria precisa estar bem posicionada para se dividir e garantir que cada novo protozoário carregue um simbionte. Em seguida se divide o cinetoplasto, região especializada da mitocôndria que contém o DNA e está associada à estrutura locomotora do protozoário conhecida como flagelo. Quando o núcleo enfim se divide, o protozoário está pronto para se separar em dois com uma bactéria em cada um, conforme descrito em artigo de 2010 na PLoS One. Falta agora esmiuçar os mecanismos moleculares envolvidos nessa divisão sincronizada de estruturas. Cristina conta com o avanço tecnológico e dos conhecimentos científicos, que proporcionam o desenvolvimento de projetos com genomas, transcriptomas e mesmo com redes metabólicas. “É uma visão mais integrada, que nos permitirá entender mais profundamente essa relação simbiótica”, diz Cristina.

O simbionte (verde) lidera o processo de divisão junto ao núcleo (azul). O cinetoplasto (vermelho,/em>) se divide em seguida

carolina catta-preta/ufrj O simbionte (verde) lidera o processo de divisão junto ao núcleo (azul). O cinetoplasto (vermelho), se divide em seguida. Estruturas aparecem em reconstrução tridimensional…carolina catta-preta/ufrj

Parcerias
A amplitude do trabalho exige a reunião de especialidades diferentes. No Rio de Janeiro, Cristina conta com colegas da UFRJ e do Instituto Oswaldo Cruz. Mas ela também ampliou os horizontes geográficos e mergulhou nos aspectos celulares e genéticos com a ajuda, em parte, de colaboradores de São Paulo, onde encontrou interlocutores interessados na questão evolutiva. Um deles é o parasitologista Erney Plessmann de Camargo, da Universidade de São Paulo (USP). Renomado por suas pesquisas com T. cruzi (ver entrevista em Pesquisa FAPESP nº 204), desde os anos 1980 ele se interessa pelo estudo da endossimbiose em tripanossomatídeos e mais recentemente empreendeu o sequenciamento de cinco espécies que contêm bactéria simbiótica em parceria com o Laboratório Nacional de Computação Científica (LNCC), em Petrópolis, na serra carioca. Em estudo publicado em 2013 na PLoS One, Cristina fez análises dos genomas de duas dessas espécies e mostrou perda de genes nas bactérias. “É um genoma reduzido, mas bastante funcional, capaz de completar vias biossintéticas essenciais do protozoário hospedeiro”, comenta, comparando a uma árvore bonsai.

Esses resultados ajudam a explicar algo que chamou a atenção de Cristina quando tinha 18 anos e começava um estágio no Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho: a baixíssima exigência nutricional de um parasita de insetos quando comparada à de outros tripanossomatídeos. Já naquela época, o microscópio eletrônico ajudou a flagrar a bactéria simbiótica. Mais tarde, o genoma de protozoários e respectivos endossimbiontes corroborou dados obtidos em estudos nutricionais e bioquímicos, indicando uma intensa troca metabólica entre os dois organismos.

Estruturas aparecem em reconstrução tridimensional e ao microscópio eletrônico de transmissão

modificada de catta-preta et al., 2015, Frontiers in microbiology … e ao microscópio eletrônico de transmissãomodificada de catta-preta et al., 2015, Frontiers in microbiology

Graças à bactéria, o protozoário consegue produzir praticamente todos os aminoácidos necessários, enquanto os tripanossomatídeos sem simbionte precisam ter o meio de cultura suplementado. O mesmo vale para o heme, composto à base de ferro, que faz parte de proteínas como a hemoglobina do sangue. “As bactérias sintetizam heme, que acaba sendo importante para o crescimento do protozoário”, conta o biólogo Sergio Schenkman, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), coautor do artigo. “Os protozoários que causam doenças não fabricam heme, por isso precisam ser parasitas.” Para o pesquisador, essa lacuna cria neles um ponto fraco que pode ser usado como arma contra a doença ou para entendê-la.

A autossuficiência em relação aos nutrientes pode ser essencial nas sete espécies caracterizadas pela endossimbiose. Elas infectam apenas insetos, de nutrição inconstante. “Protozoários que parasitam vertebrados encontram um ambiente nutricional, no sangue ou no interior das células, mais rico”, compara Cristina. Sua associação com o grupo de Schenkman e o da bióloga Carolina Elias, do Instituto Butantan, tem cerca de uma década e busca elucidar aspectos do ciclo celular do protozoário e entender como a bactéria pode coevoluir com a célula hospedeira. “O ciclo celular só era conhecido em T. brucei, que não tem endossimbionte”, lembra o pesquisador da Unifesp. Em sua visão, só é possível compreender um organismo quando se detalha o seu processo de divisão celular para reprodução, a mitose, e quais moléculas o regulam. No caso dos protozoários e seus endossimbiontes, eles ainda não chegaram lá. “Não sabemos como o hospedeiro controla a formação do anel que provoca a divisão das bactérias.”

O objetivo é refinar cada vez mais a compreensão desse sistema integrado. Um enfoque na parceria com Schenkman, parte do trabalho de Carolina Catta-Preta, é usar o sistema de interferência de RNA, o RNAi, para influir no ciclo celular de A. deanei. É uma ferramenta mais precisa para manipular pontos exatos do controle da divisão celular, uma vez que sejam identificadas as sequências-alvo no organismo. Resultados ainda não publicados mostram que esse é um caminho promissor para corroborar e aprofundar o que já foi descrito com a ajuda de drogas que bloqueiam a divisão das bactérias, entre outros aspectos.

Em colaboração com colegas franceses, das universidades de Lyon e de Bordeaux e do LNCC, Cristina também está detalhando a rede metabólica e o metabolismo energético desses organismos por meio de análises em computador das sequências genéticas identificadas.

Origem
Ainda há um longo caminho a trilhar para compreender esses organismos compostos, mas o olhar de Cristina vai muito além deles. “Usamos a endossimbionte em tripanossomatídeos para entender como surgiram as organelas na célula eucariota e também a sua estrutura e funcionamento otimizados”, conta. “Estabelecer como o protozoário controla a divisão da bactéria tem relação direta com a origem da mitocôndria na célula eucariota.”

Os estudos evolutivos mostram que as bactérias simbióticas das diferentes espécies de tripanossomatídeos têm um único ancestral, conforme mostra o estudo de 2013 na BMC Evolutionary Biology, cujo primeiro autor é o biólogo João Alves, do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP. O estudo indica ainda a transferência de genes de bactérias para o núcleo da célula hospedeira – tanto das endossimbiontes como de outras já perdidas. Algumas dessas transferências gênicas completam vias de síntese de aminoácidos essenciais para o protozoário.

A origem única do endossimbionte em tripanossomatídeos é mais um paralelo com o surgimento das organelas, como a mitocôndria, que deriva de um único encontro entre microrganismos. A teoria conhecida como endossimbiótica, que descreve esse acontecimento, se popularizou a partir dos anos 1970, com a publicação do livro Origem das células eucariotas, da evolucionista norte-americana Lynn Margulis, mas é bem mais antiga que isso. Em 1905, o biólogo russo Konstantin Mereschkowski propôs que estruturas de células vegetais teriam surgido de uma cianobactéria.

De lá para cá uma infinidade de estudos corrobora essa ideia, mas investigar e descobrir como esse processo pode ter acontecido é um privilégio de poucos. Os endossimbiontes dos tripanossomatídeos estão no meio do caminho evolutivo entre bactérias de vida livre e organelas. Tendo perdido a maior parte do seu material genético e da sua parede celular, eles não têm existência autônoma na natureza. Na prática, a associação já funciona como um organismo único, embora seja possível “curar” o protozoário por meio de tratamento com antibióticos. Uma cura útil na pesquisa, mas pouco desejável do ponto de vista do organismo, já que o condena a uma vida em laboratório, com nutrientes fornecidos pelos pesquisadores.

“Vejo a endossimbiose em tripanossomatídeos como um caso de amor eterno e isso sempre me incentivou a estudar essa história”, diz Cristina, comparando o casamento entre os dois microrganismos ao interesse que a move.

Mesmo dedicando a maior parte de seu tempo ao microscópio, ao laboratório e a análises em computador, Cristina afirma que sua ferramenta principal de trabalho é o pensamento. Por isso, há mais de 10 anos ela também se dedica a cursar especializações em filosofia e até ministra disciplinas de filosofia para a pós-graduação em biofísica. Esse olhar multidisciplinar vai além da ciência de bancada e lhe dá uma visão ampla. “O parasitismo também é uma forma de simbiose, porque o termo simbiose significa viver junto”, afirma, tornando mais abrangente o fascínio por seu objeto de estudo. “São dois lados da moeda em um único ser: o protozoário é ao mesmo tempo parasita do inseto e hospedeiro do endossimbionte.”

Artigos científicos
CATTA-PRETA, C. M. et al. Endosymbiosis in trypanosomatid protozoa: the bacterium division is controlled during the host cell cycle. Frontiers in Microbiology. v.6, artigo 520. 2 jun. 2015.
ALVES, J. M. P. et al. Endosymbiosis in trypanosomatids: the genomic cooperation between bacterium and host in the synthesis of essential amino acids is heavily influenced by multiple horizontal gene transfers. BMC Evolutionary Biology. v. 13, p. 190. 9 set. 2013.
MOTTA, M. C. M. et al. Predicting the proteins of Angomonas deanei, Strigomonas culicis and their respective endosymbionts reveals new aspects of the Trypanosomatidae family. PLoS One. v. 8, n. 4, e60209. 2 jun. 2013.
MOTTA, M. C. M. et al. The bacterium endosymbiont of Crithidia deanei undergoes coordinated division with the host cell nucleus. PLoS One. v. 5, n. 8, e12415. 26 ago. 2010.

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