A dor em membro-fantasma, que poderia ocorrer em partes do corpo que não existem mais, não é uma fantasia das pessoas que perderam um braço ou uma perna. Pode ser real. Uma das hipóteses adotadas para explicá-la sugere que as fibras nervosas próximas aos membros removidos voltariam a crescer e gerar estímulos espontâneos, interpretados como dor. Outra possibilidade, que emerge agora, é que, depois do rompimento das fibras nervosas que transmitem os estímulos à medula espinhal, os neurônios da medula teriam se tornado tão sensíveis que enviariam para o cérebro sinais de dor mesmo na ausência de estímulos reais.
Francisco Javier Ropero Peláez, professor da Universidade Federal do ABC, em Santo André, cogita essa segunda explicação para a dor do membro-fantasma com base em sua proposta de ajustes em uma teoria clássica sobre as bases fisiológicas da dor, apresentada há 50 anos. Sua abordagem oferece novas explicações também para um distúrbio neurológico conhecido como disestesia, em que um toque pode ser entendido como um estímulo capaz de gerar a sensação de dor intensa, como ocorre nos casos de fibromialgia, com dores musculares generalizadas e crônicas.
Em um artigo publicado na Science em 1965, o psicólogo Ronald Melzak, da Universidade McGill, Canadá, e o neurocientista inglês Patrick Wall, então no Instituto de Tecnologia de Massachusetts, Estados Unidos, conciliaram abordagens anteriores, detalhando um caminho que já havia sido cogitado pelo filósofo francês René Descartes em 1664, e apresentaram a chamada teoria do portão da dor. Hoje comum em livros de neurologia, essa abordagem explica como os neurônios processam os diferentes estímulos que serão percebidos pelo cérebro como dolorosos ou não dolorosos. De acordo com essa proposta, há dois tipos de estímulos: o primeiro provém dos neurônios nociceptivos, que inervam a pele, os músculos, os ossos e as vísceras, formam fibras nervosas com diâmetro estreito e registram estímulos aversivos como o calor do fogo ou a dor causada por um corte com uma faca (ver Pesquisa FAPESP nº 155); o segundo tipo de estímulo se origina nos terminais de fibras nervosas de diâmetro largo, que registram estímulos mecânicos como toque, pressão ou vibração.
Os dois tipos de fibras conduzem o estímulo até dois tipos de neurônios da medula espinhal, localizada no interior da coluna vertebral, que agem como portão da dor, bloqueando ou liberando os estímulos. Se receber estímulos dos dois tipos de fibras, o primeiro neurônio, chamado interneurônio, vai inibir a passagem do estímulo para o segundo neurônio, que envia o sinal para o cérebro. O interneurônio só vai liberar o sinal para o segundo neurônio se o estímulo vier da fibra nociceptiva. Essa teoria explica por que se consegue usar os aparelhos elétricos de depilação, que puxam os pelos ao cortá-los, gerando um estímulo mecânico, sem sentir dor, porque os aparelhos, ao mesmo tempo, massageiam a pele, cancelando a eventual sensação de dor.
Hipóteses
Lorne Mendell, da Stony Brook University, Estados Unidos, comentou em 2014 que o modelo apresentado na Science “não está correto em todos os detalhes”. Um ano antes, dois pesquisadores do Canadá relataram simplificações excessivas e falhas na apresentação da arquitetura neural da coluna espinhal e na localização e a interação das fibras nervosas. Para Peláez, o que mais incomodava era a indicação de que a fibra nociceptiva poderia inibir um neurônio e estimular outro. Não poderia haver inibição, ele pensou, porque as substâncias responsáveis pela transmissão ou inibição dos estímulos nervosos, identificadas depois da publicação do artigo na Science, não podem gerar efeitos opostos nos terminais de um mesmo neurônio.
A indicação de um provável equívoco e as evidências da capacidade de adaptação dos neurônios motivaram Peláez e a farmacologista Shirley Taniguchi, professora da Faculdade Israelita de Ciências da Saúde Albert Einstein, a elaborarem um modelo neurocomputacional no qual a sensibilidade dos neurônios e a força das conexões entre eles podem variar, de acordo com os estímulos recebidos, como detalhado na revista Neural Plasticity de novembro de 2015. Em 1996, pesquisadores da Universidade de Bath, Inglaterra, ao proporem um modelo matemático para explicar alguns fenômenos ligados à dor, já tinham observado a variação da sensibilidade dos neurônios, que podem reagir de modo não proporcional a estímulos de intensidades diferentes.
A produção de dor gerada a partir de estímulos táteis, verificada em alguns dos tipos de disestesia, segundo Peláez, poderia ser uma consequência do fato de as fibras nervosas responsáveis pela condução dos estímulos mecânicos perderem a camada de revestimento e, em consequência, processarem os sinais em velocidade menor, como as fibras dos estímulos aversivos, confundindo os neurônios da medula sobre a origem do estímulo. “Há várias outras hipóteses para explicar a hipersensibilidade à dor”, disse o farmacologista Thiago Cunha, professor da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo (FMRP-USP). Segundo ele, há indicações de que o interneurônio poderia perder o poder seletivo – ou até mesmo morrer – e deixar os estímulos passarem mais facilmente rumo ao cérebro. Outra possibilidade é que haveria uma redução dos níveis ou da atividade do neurotransmissor Gaba, que inibe os estímulos nervosos, ou os receptores celulares específicos para o Gaba começariam a funcionar de modo inverso, estimulando, em vez de inibir, os outros neurônios.
Encerrada a etapa de elaboração e publicação das propostas de ajustes da teoria do portão da dor, Peláez começou a debater sua abordagem com pesquisadores da área biomédica, a enfrentar as reações de estranhamento diante de uma abordagem matemática de fenômenos biológicos e a mostrar como esse trabalho poderia ser útil. Segundo Shirley, coautora do artigo na Neural Plasticity, a nova abordagem explica a ação de medicamentos como a gabapentina, que congela a sensibilidade dos neurônios. De acordo com essa proposta, segundo seus autores, a dor-fantasma poderia ser controlada com a aplicação de gabapentina logo após a amputação do membro, antes de os neurônios da medula se tornarem hipersensíveis e dispararem sinais de dor mesmo sem estímulos reais.
Artigos científicos
MELZACK, R. e WALL, P. D. Pain mechanisms: a new theory. Science. v. 150, n. 3699, p. 971-9. 1965.
MOAYEDI, M. e DAVIS, K. D. Theories of pain: from specificity to gate control. Journal of Neurophysiology. 109, n. 1, 5-12. 2013.
PELÁEZ, F. J. R. e TANIGUCHI, S. The Gate Theory of pain revisited: Modeling different pain conditions with a parsimonious neurocomputational model. Neural Plasticity. v. 752807, p. 1. 2015.
MENDELL, L. M. Constructing and deconstructing the gate theory of pain. Pain. v. 155, n. 2, p. 210-6. 2014.