Uma lei sancionada com vetos pela presidente Dilma Rousseff reúne um conjunto de medidas cujo objetivo é estimular a inovação e a interação entre centros de pesquisa públicos e privados. A Lei nº 13.243/2016, isoladamente, não chega a ser um marco legal da ciência, tecnologia e inovação, como vem sendo chamada, mas promove atualizações e aperfeiçoamentos do arcabouço jurídico sobre tais assuntos existente no país. Uma das leis modificadas é a de Inovação (nº 10.973). Em vigor desde 2004, ela já permitia, por exemplo, que laboratórios e equipamentos universitários pudessem ser usados por empresas, mediante remuneração. As novas regras, que ainda precisam ser regulamentadas, permitem, por exemplo, o compartilhamento do capital intelectual das universidades em projetos de inovação com o setor produtivo, além de desburocratizar o processo para esse tipo de cooperação.
Outra novidade atinge a carreira nas universidades federais. Novas regras ampliam as possibilidades de que pesquisadores em regime de dedicação exclusiva exerçam atividades remuneradas fora das universidades, mediante permissão da instituição. Um pesquisador sob esse regime poderá dedicar-se 416 horas por ano a projetos de pesquisa em cooperação com empresas, ou oito horas por semana. Até então, o limite era de 120 horas. “Quando o pesquisador atua como consultor nas primeiras fases de viabilização de um produto, tanto a indústria quanto a universidade ganham com isso”, avalia Naldo Dantas, assessor de relações institucionais da Associação Nacional de Pesquisa e Desenvolvimento das Empresas Inovadoras (Anpei), uma das entidades que representaram o setor produtivo nas negociações sobre a lei no Congresso. Carlos Henrique de Brito Cruz, diretor científico da FAPESP, destaca que o impacto maior deverá ser observado na esfera federal. Isso porque universidades federais não contam com um regime de autonomia efetivo como o existente nas três universidades estaduais paulistas, USP, Unicamp e Unesp. “Nas estaduais de São Paulo, o regime de dedicação exclusiva é assegurado por normas internas, provenientes de deliberações do conselho universitário. Já as federais dependem de uma lei nacional”, explica. “Pesquisadores podem usar as oito horas por semana para consultoria e colaboração com empresas. Isso acontece com frequência nas melhores universidades do mundo.”
De acordo com Sergio Gargioni, presidente do Conselho Nacional das Fundações Estaduais de Amparo à Pesquisa (Confap), a nova lei oferece uma releitura da Lei de Inovação. “É uma espécie de revisão, uma vez que muitos pontos da lei de 2004 mereciam ser atualizados”, considera. Por exemplo, o poder público (União, estados e municípios) e seus respectivos órgãos de fomento, universidades e institutos de pesquisa poderão conferir apoio à criação de ambientes capazes de promover a inovação, como parques tecnológicos e incubadoras de empresas. “Essa questão não estava contemplada na legislação anterior e houve situações em que procuradores da Justiça questionaram a legitimidade do repasse de recursos públicos de universidades para a construção de parques tecnológicos”, explica Guilherme Ary Plonski, coordenador do Núcleo de Política e Gestão Tecnológica da Universidade de São Paulo (PGT-USP), que acompanhou a tramitação do projeto de lei no Congresso.
Segundo Plonski, a lei recém-aprovada é um dos pilares do que se pode chamar de marco legal da ciência, do qual fazem parte várias outras leis, como o regime federal de compras e também a Emenda Constitucional nº 85, aprovada em fevereiro de 2015, que promoveu alterações na Carta Magna. Para Helena Nader, presidente da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), a lei flexibiliza e desburocratiza a legislação científica no país, simplificando a relação entre instituições públicas e privadas. “Um artigo da nova lei permite, por exemplo, a dispensa de licitação para a aquisição de equipamentos e insumos para a pesquisa”, explica Helena Nader.
Em 2011, quando o Confap e o Conselho Nacional de Secretários Estaduais para Assuntos de Ciência, Tecnologia e Inovação (Consecti) levaram a discussão para Brasília, o objetivo inicial era elaborar um código nacional para ciência, tecnologia e inovação. Mas a ideia foi desencorajada pelo governo federal. A justificativa dada era de que seria complicado demais juntar em uma mesma legislação assuntos tão variados e complexos como pesquisa clínica e biodiversidade, por exemplo. “Assim, o projeto inicial do código foi reformulado”, conta Plonski, que também é conselheiro da Associação Nacional de Entidades Promotoras de Empreendimentos Inovadores (Anprotec).
Outro ponto da nova lei estabelece que, para apoiar a gestão de sua política de inovação, a instituição de pesquisa pública poderá dispor de um Núcleo de Inovação Tecnológica (NIT), que pode ser inclusive constituído de personalidade jurídica própria, como entidade privada sem fins lucrativos. Até então, os NITs eram departamentos das universidades, com bolsistas temporários ou funcionários públicos realocados para trabalharem nesses escritórios. Agora, o núcleo pode configurar-se como uma fundação de apoio, uma organização social ou continuar sendo um departamento. “O gestor da universidade ganhou flexibilidade para escolher qual modelo adotar”, diz Plonski.
Carlos Américo Pacheco, atual diretor do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), que foi secretário executivo do Ministério da Ciência e Tecnologia entre 1999 e 2002, lembra que a nova lei não é autoaplicável, ou seja, depende de regulamentação e não poderá ser executada imediatamente. Ele observa que boa parte do que consta no texto são possibilidades jurídicas que não necessariamente serão seguidas por todas as instituições. “Digamos que o cardápio da política científica brasileira aumentou. Isso não significa que tudo será implementado na prática”, diz Pacheco, para quem a lei não pode ser vista isoladamente. “Para as novas regras serem praticadas, os agentes envolvidos, incluindo as agências de fomento, precisam criar condições concretas, como abrir mais editais de cooperação entre universidades e empresas e apoiar a associação de startups com grandes companhias.”
Baixa densidade
Paulo Feldmann, professor da Faculdade de Economia e Administração da USP, considera que a lei não dispõe de instrumentos para fazer com que o desenvolvimento científico e tecnológico voltado à inovação atinja níveis próximos aos de países como Estados Unidos e Coreia. “Ela não trata, por exemplo, de uma questão muito importante, que seria fazermos como na Coreia do Sul, onde os gastos das empresas com P&D [pesquisa e desenvolvimento] são abatidos diretamente da linha de ‘imposto de renda a pagar’. Além disso, há inúmeros outros desafios a enfrentar, como a baixa densidade de engenheiros e pesquisadores, a péssima relação entre universidades e empresas, a falta de incubadoras de empresas de tecnologia e a cultura do brasileiro de aversão doentia ao risco, apenas para citar alguns exemplos. A legislação é importante, mas não suficiente”, pondera.
Alguns pontos da lei, como o referente aos NITs, se tornaram alvo de críticas de sindicatos e grupos de pesquisadores. Em novembro do ano passado, um grupo de entidades publicou um documento intitulado “Carta de Campinas: Em defesa da ciência e tecnologia pública no Brasil”, no qual afirmava que o projeto de lei, à época em tramitação no Senado, implicaria mudanças regressivas à pesquisa brasileira. Assinada por grupos de instituições, dentre as quais a Associação dos Docentes da Unicamp (ADunicamp) e a Associação dos Pesquisadores Científicos do Estado de São Paulo (APqC), a carta diz que a nova lei poderia provocar “o aumento da sangria do fundo público para empresas privadas”.
O documento ainda criticou “o alto clero da comunidade de pesquisadores brasileiros, os acadêmicos empreendedores”, que, segundo a carta, atuam em favor de uma lógica privatizante. “Nos últimos anos, as linhas de pesquisa estão mais atreladas aos interesses econômicos do que aos sociais”, diz Joaquim Adelino de Azevedo Filho, presidente da APqC. “A nova lei beneficiará apenas projetos que possam trazer rentabilidade direta às empresas”, afirma Adelino. “Além disso, concursos públicos podem ser direcionados para atender exclusivamente os interesses privados.”
“Nas audiências públicas realizadas desde 2011, não discutimos carreira de docente nem concursos públicos”, salienta Gesil Amarante, professor da Universidade Estadual de Santa Cruz, na Bahia, e diretor do Fórum Nacional de Gestores de Inovação e Transferência de Tecnologia (Fortec). “Debatemos a necessidade de uma interação saudável e transparente entre academia, governo e empresas no país”, diz Amarante, que coordenou o grupo de trabalho organizado pelo deputado Sibá Machado (PT-AC) na Câmara Federal formado por representantes do governo, empresas, universidades e institutos de pesquisa com o objetivo de aperfeiçoar o projeto de lei inicial.
Vetos
Havia a expectativa de que o projeto fosse sancionado sem vetos, mas isso não ocorreu. Os ministérios da Fazenda e do Planejamento manifestaram-se contra alguns tópicos da lei, apontando “contrariedade ao interesse público”. “Não esperávamos que isso fosse acontecer. Se uma das estratégias para o país sair da crise é incentivar a produção e a inovação, com os vetos as empresas podem ser desestimuladas a investir em pesquisa”, afirma Gargioni, do Confap.
Um dos vetos removeu o dispositivo que previa a dispensa de licitação pela administração pública para contratar micros, pequenas e médias empresas com faturamento anual de até R$ 90 milhões para prestar serviços ou fornecer bens produzidos a partir da aplicação do conhecimento. Segundo Naldo Dantas, da Anpei, essa decisão diminui o poder de compra das estatais. “Com o veto, somente grandes empresas e institutos irão se beneficiar das encomendas do Estado. Já as startups, com estrutura e capital reduzidos, têm dificuldade de concorrer com empresas maiores em um processo de licitação.”
Entidades que integram a Aliança em Defesa do Marco Legal da Ciência, Tecnologia & Inovação, entre elas a SBPC, o Confap e a Academia Brasileira de Ciências (ABC), encaminharão um relatório ao Congresso com uma avaliação do impacto negativo dos vetos. A expectativa de Helena Nader, da SBPC, é de que eles sejam derrubados. “A lei foi apoiada e aprovada por unanimidade, na Câmara e no Senado, por todos os partidos. Por isso, não aceitaremos esses vetos”, diz ela.
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